domingo, 1 de setembro de 2024

Alegria contra a raiva

Uma consequência profunda, embora pouco assinalada, da vaga populista dos últimos anos é a contínua e persistente degradação do debate público, cada vez mais reduzido a trocas de acusações. Ainda por cima, quando estas são formuladas, quase sempre, através de um vocabulário direto e sem outra preocupação que não seja a de fazer despertar emoções básicas, que conduzam à repulsa do adversário ou à adesão irracional àquilo que se transmite. O resultado está à vista: todo e qualquer acontecimento ou assunto é depressa transformado num motivo de indignação e qualquer caso menos esclarecido é imediatamente alcandorado à categoria de escândalo. Nessa voragem, em que se repetem acusações e indignações sempre pontuadas por uma profusão de pontos de exclamação, é fácil perder a noção da realidade e lançar a confusão sobre o peso e a função específica de cada palavra.


Perante a nossa apatia e sem sequer nos incomodarmos verdadeiramente, enquanto comunidade, tudo passou a ser uma “vergonha” e qualquer motivo é suficiente para alguém decretar que estamos perante uma “invasão” ou prestes a entrar em “guerra”. Sabemos que essa escalada é potenciada pelas redes sociais, com os seus algoritmos ensinados a identificar e a exponenciar as polémicas mais ruidosas e que melhor alimentam o negócio das partilhas e visualizações. Mas o problema é que esta pulsão não se manifesta apenas no mundo virtual, em que todos podem debitar a sua opinião e são, em simultâneo, também alvos fáceis para os exércitos profissionais de bots e para as milícias de vigilantes que se aglomeram na net, sempre prontas a arrasar quem as contraria ou pensa de maneira diferente. Este clima permanente de confronto, de polarização e da mais absoluta ausência de tolerância está hoje presente em todo o lado. Tornou-se norma. E, aos poucos, vai contaminando todo e qualquer debate, como se as discussões acaloradas entre apoiantes de clubes rivais de futebol fossem a matriz que, para captar atenções, tem de ser usada em qualquer assunto, independentemente da sua importância.

Embora esta realidade seja hoje observável em qualquer parte do mundo, ela é particularmente visível, devido à força e à influência mediática, no atual ambiente político dos Estados Unidos da América: um país profundamente dividido em dois blocos, já sem qualquer ponto de contacto entre eles, que parece caminhar para algo muito próximo de uma guerra civil. E o mais impressionante é a velocidade com que tudo se processou, perante a passividade e a contribuição dos dois lados.

Na convenção do Partido Democrático de 2012, para a reeleição de Barack Obama, o ex-Presidente Bill Clinton foi, num discurso histórico, um dos primeiros a alertar para o que estava, então, a iniciar-se, com a radicalização da ala mais conservadora do Partido Republicano. E fê-lo de uma forma que merece ser lembrada: sublinhando que algumas das medidas mais importantes dos seus mandatos, que coincidiram com o período de maior prosperidade e paz dos EUA, só foram possíveis devido à confluência de interesses entre os dois partidos.

Desde que Donald Trump entrou em cena, essa tendência só se tem agravado, tanto nos EUA como no resto do mundo. Sempre com o mesmo objetivo, comum a todos os populistas – mas que também se vai observando, tantas vezes, nos argumentos de quem os combate: a exploração da raiva dos eleitores, os apelos ao combate e a obliteração, à lei da bomba, de tudo o que possa proporcionar o mínimo ponto de contacto ou de entendimento entre os apoiantes, fiéis ou circunstanciais, dos dois lados.

O combate aos inimigos da democracia e de uma sociedade mais justa não pode ficar resumido aos apelos à resistência. Precisa também de transmitir alegria e, acima de tudo, de insuflar esperança – porventura, aquilo de que mais sentimos falta no mundo atual, dominado pelos sentimentos de vingança, de perseguições aos outros, de conflito permanente, dinamizado pelos populistas.

Se for eleita Presidente da nação mais poderosa do planeta, Kamala Harris não vai, de certeza, resolver todos os problemas do mundo. Mas, para já, teve uma virtude, como candidata frente a Donald Trump: soube restaurar a alegria que deve estar inerente a qualquer projeto de esperança por uma sociedade melhor. E isso, só por si, já devia fazer toda a diferença.

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