Distúrbios mentais (especialmente da atenção), dependência que pode atingir o grau de uma autêntica escravatura sem que o escravizado se dê conta, ansiedade, depressão, anorexia, esquizofrenia, suicídio, declínio do desejo sexual pelo corpo não virtual de outrem, episódios de histeria colectiva (leia-se, por exemplo, no jornal inglês The Guardian a história emocionante de uma jovem youtuber que suscitou uma reacção histérica e paranóica dos seus muitos milhares de fãs), difusão em larga escala de notícias falsas que incitam a passagem ao acto de multidões alienadas, aumento da polarização política e ideológica: a lista das “doenças” sociais e individuais diagnosticadas é extensa e tão diversa quanto as funções do computador e do smartphone. O medo de ficar sem acesso ao celular, de ficar “desconectado”, como se diz hoje, já engendrou um neologismo, em inglês, para designar esse estado de privação: nomophobia, isto é, no mobile phone phobia. Um documentário americano realizado por Jeff Orlowski, The Social Dilemma, elevou o grau da ameaça até este nível: “É um xeque mate à humanidade.” Nem o mais moderado destes diagnósticos fica aquém de uma transformação antropológica na evolução da humanidade.
Esta nova condição civilizacional gerou um paradoxo: a hiperprotecção das crianças e jovens (pelos pais e pelas medidas biopolíticas dos governos), que lhes retira as prerrogativas da socialização e da autonomia, vai a par da complacência e alguma inconsciência perante os perigos a que eles estão expostos quando se isolam no quarto com o smartphone ou o computador. Há pouco tempo, a apresentadora de uma televisão britânica, Kristie Alsopp, foi ameaçada pelos serviços sociais de perder a custódia do filho de 15 anos por ter permitido que ele fizesse uma viagem de Interrail, pela Europa (ela própria tinha divulgado no Facebook a sua decisão). Em seu auxílio, chegou o parecer de Jonathan Haidt, o psicólogo social da Universidade de Nova Iorque, autor de um livro já traduzido em Portugal, A Geração Ansiosa, que veio lembrar que um jovem munido de um smartphone corre riscos muito maiores em casa do que ao viajar por Paris, Berlim, Munique, etc.
Esta visão de um desastre em curso e de uma doença planetária induzida e sem remédio (tão irremediável como o pecado original: o computador não é um simples utensílio, é uma versão do Deus Ordinator da teologia medieval) torna bastante surpreendente a notícia de que em França, ao aterrar no seu jacto privado, foi detido o patrão da uma grande plataforma social chamada Telegram, o russo Pavel Durov, acusado de promover a fraude, o tráfico de droga, o terrorismo e o cyberbullying. Em suma: nada de que as empresas tentaculares do capitalismo digital, geralmente designadas pelo acrónimo GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft), estejam isentas, sem contarmos com os malefícios maiores de difusão de patologias que levam um entrevistado do referido documentário a esta sucinta conclusão: “Estamos tramados.”
É fácil aderir a este discurso apocalíptico, sempre rentável e de fácil recepção. Ele produz diagnósticos verossímeis, à luz da nossa experiência atual, nos seus aspectos essenciais. Mas é preciso confrontá-los com outras análises e estudos mais complexos, perante os quais eles se revelam marcados por alguma simplificação ou até pela demagogia. Uma arqueologia do nosso futuro introduz aqui alguma complexidade em falta e que deverá, por exemplo, levar a questões como esta: devemos acreditar na eficácia da proibição do uso dos smartphones na sala de aula? Não será o mesmo que querer restituir a virgindade a quem a perdeu?
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