terça-feira, 2 de julho de 2024

Escolas cívico-militares: um atraso amplo

A forma como os países organizam a educação tem efeitos que ultrapassam essa política pública. Lembrar disso é fundamental quando a adoção das chamadas escolas cívico-militares é ampliada no Brasil. Elas devem ser analisadas não só na maneira como impactam o modelo de ensino, mas também nas consequências que têm sobre o Estado e a visão de democracia.

Neste sentido, a militarização da política educacional bate de frente com várias conquistas obtidas a partir da redemocratização, levando a um retrocesso amplo que expressa o atraso civilizacional brasileiro em sua versão do século XXI.

O primeiro ponto que chama atenção no modelo das escolas cívico-militares é sua singularidade frente à experiência internacional recente. Nenhum dos países com resultados destacados em política educacional no mundo adota um padrão similar a essa nova jaboticaba brasileira. Militarizar o funcionamento das escolas não é característica nem dos governos mais próximos do autoritarismo que aparecem bem em rankings como o da avaliação do Pisa, exame organizado pela OCDE com cerca de 80 países.

Indo mais direto à essência da singularidade dessa proposta: não passa pela cabeça de gestores, educadores ou pesquisadores de educação em qualquer parte minimamente desenvolvida do mundo colocar militares aposentados como resposta a desafios educacionais.


O Brasil está propondo, assim, uma solução não educacional a complexos problemas relativos à qualidade do ensino, sem que haja qualquer evidência da efetividade de tal proposta. Nossas crianças e jovens vão ser submetidas, como ratos de laboratório, a um experimento completamente fora das principais recomendações internacionais sobre como reformar com sucesso a política educacional. Tamanha irresponsabilidade pode custar muito caro ao futuro do país.

Alguns dos governadores que encabeçam hoje essa proposta têm se apresentado à sociedade como modernizadores do Estado, ou pelo menos como uma parte mais civilizada do bolsonarismo. Eles têm feito verdadeiros road shows pelo país para convencer a elite de que suas propostas estariam adequadas aos desafios do século XXI.

No entanto, gostaria muito que tais lideranças políticas tentassem defender o modelo de escolas cívico-militares em fóruns internacionais de educação ou de políticas públicas mais amplas, como a OCDE ou o Banco Mundial - e nenhuma dessas organizações pode ser chamada de comunista. Esse modelo seria visto como anacrônico, um verdadeiro veículo do atraso que só levaria à piora dos padrões do desenvolvimento brasileiro. Pena que o provincianismo de boa parte da opinião pública brasileira ignore a compreensão desse grave equívoco educacional.

Embora não haja um único padrão internacional de modelo educacional bem-sucedido, o portfólio de medidas consideradas boas práticas vai na direção contrária das escolas cívico-militares. Entre esses elementos, destacam-se propostas como a governança colaborativa das escolas, que exige o reforço do trabalho coletivo e do aprendizado pela via do diálogo amplo, dimensões completamente opostas à hierarquização militar do ambiente escolar.

Pesquisas mostram também que lideranças escolares com maior êxito são aquelas capazes de engajar os profissionais da educação, as famílias e os estudantes em torno de objetivos pedagógicos que passam longe do disciplinamento forçado dos jovens, algo que está mais para o padrão Coreia do Norte do que para qualquer caso de êxito educacional e civilizacional.

Além disso, o desenvolvimento da capacidade crítica dos estudantes, de suas competências interpessoais relacionadas à diversidade e do estímulo à criatividade constitui outro elemento de destaque em países com bons resultados educacionais. Aliás, o Brasil apareceu recentemente no exame do Pisa como um destaque negativo não só na aferição do aprendizado de disciplinas básicas (linguagem, ciências e matemática), como ainda no que se refere ao desempenho criativo de nossos jovens.

O modelo das escolas cívico-militares piorará mais esse quadro, uma vez que a obediência baseada em padrões autoritários de comando produzirá jovens que não seriam capazes de ir além do convencional e de pensar “fora da caixa”, algo tão valorizado hoje no mercado de trabalho.

Pode-se argumentar que a proposição desse modelo educacional seria uma resposta ao aumento da violência no ambiente escolar, uma demanda legítima da sociedade e das famílias mais vulneráveis. Se essa é a origem da proposta, ela está equivocada em dois sentidos.

Em primeiro lugar, é fundamental aumentar a intersetorialidade na política educacional, pois sua lógica setorial não é capaz de resolver todos os problemas que afetam o aprendizado e o desenvolvimento das crianças e jovens. Assim, é fundamental a articulação com a saúde, a cultura, a assistência social, o esporte e, sim, a segurança pública, aspecto essencial especialmente nas comunidades mais atingidas pela criminalidade.

Só que o suporte intersetorial não significa transportar completamente a lógica de outra política ao ambiente escolar. Ter em conta que o aprendizado é afetado por aspectos relacionados à saúde, por exemplo, não significa ter que contratar dezenas de médicos para atender todos os estudantes de uma escola, tomando a maior parte do horário de ensino para essa função. Ou ainda transformar o papel de uma diretora escolar numa extensão da atividade das assistentes sociais, de modo que a gestão escolar estaria apenas preocupada com as condições sociais das famílias do alunado, sem ter de desenvolver propósitos e metas pedagógicas.

O mesmo raciocínio vale para a questão da segurança: colocar um profissional da área como gestor não resolverá a questão da violência e ainda tende a transportar uma lógica repressora e punitivista para um espaço educativo, o inverso do que deveria ser a política educacional.

A militarização das escolas contém um segundo equívoco em seu propósito de reduzir a violência no ambiente escolar. O que produz um clima escolar mais saudável é a construção compartilhada do respeito entre todos os atores que convivem na escola. A imposição autoritária de comportamentos e a obediência pelo medo podem, ao contrário, aumentar os casos de bullying e gerar insatisfações psicológicas capazes de produzir casos de violência extrema.

Cabe lembrar os assassinatos em série cometidos por alunos ou ex-alunos ocorridos recentemente, frutos de uma complexa cadeia causal, mas que com certeza têm mais a ver com a incapacidade de as escolas construírem um ambiente mais respeitoso em sua diversidade do que com a falta de um comandante policial na direção da escola.

A adoção das escolas cívico-militares produz retrocessos para além da política educacional. Essa proposta tem um sentido mais amplo de afronta a avanços obtidos pelo Estado e sociedade brasileiros a partir da redemocratização.

Entre os muitos efeitos desse atraso institucional, duas dimensões são evidentes. A primeira é o desrespeito à ideia de profissionalização e de especialização das atividades estatais, que teriam de ser orientadas por conhecimento científico atinentes a cada problema social.

Só foi possível criar o SUS graças ao saber de médicos e profissionais de saúde, especialmente os que construíram, por décadas, uma concepção sanitarista. Não teria ocorrido o sucesso da estabilização monetária do Plano Real sem economistas bem formados que pesquisaram cientificamente as causas do fracasso dos planos anteriores. O sucesso da agricultura brasileira certamente tem forte relação com bons cursos de agronomia e com a atuação da Embrapa, bem como a inovação tecnológica na Embraer e na Petrobras vinculam-se a nichos de excelência em engenharia.

Colocar policiais como gestores de escola é um enorme amadorismo, com uma pitada de patrimonialismo, porque esses profissionais são escolhidos pela sua vinculação política com determinados grupos, e não por sua excelência no assunto. Imagine o escândalo que seria escolher um jogador de futebol para a presidência do Banco Central ou um professor para comandar o policiamento numa grande cidade.

No fundo, a lógica da escola cívico-militar segue o mesmo padrão do negacionismo científico: não acredita em ciência nem em especialista. Essa postura bolsonarista levou à morte 700 mil pessoas durante a pandemia da covid-19. Quantos talentos e possibilidades de cidadãos mais críticos e criativos serão ceifados pela militarização das escolas?

Em seu efeito mais profundo, as escolas cívico-militares atacam a ideia de democracia como padrão principal de organização do espaço público. Na verdade, a militarização educacional é uma forma de deslegitimar a escola pública como instituição livre e responsável por formar crianças e jovens pelo diálogo.

E todas as arenas que servem hoje ao propósito da democratização, muitas montadas ou aprimoradas pela Constituição de 1988, estão em jogo quando o civismo é substituído pelo autoritarismo em nome da ordem social.

Eis aqui a grande farsa do projeto: ao ser militarizada, uma escola pública não pode ser cívica - nem profissional, muito menos democrática. Os governadores que estão apostando neste modelo sem base científica colocam em risco não só o ensino da população mais carente do país, como também a própria democracia. São líderes do atraso, não da modernização.

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