O Brasil é um amálgama de todos seres e saberes. Entre tantas etnias, somos fundamentalmente ibéricos, filhos da imaginação portuguesa e espanhola. Herdeiros de um universo impregnado de ficção, do faz-de-conta, de peculiar noção de realidade. De uma realidade que, concebida como uma invenção pessoal, cada qual narra segundo seus desígnios. Propensos nós, por conta de uma vocação individualista, a opor-se aos projetos coletivos, às organizações sociais programadas para durar. Com exceção talvez da construção acelerada da capital Brasília, que corresponde às pirâmides do Egito.
O realismo átrio é pautado em geral por forte dose de fantasia. Assim, inventar como fantasiar fazem parte da índole social. Daí agradar-nos aparentar o que não somos, exibir o que nos falta, simular a posse de bens que não temos; pedimos emprestados ao vizinho. Como consequência, proclamamos, eufóricos, que somos amigos do rei, do presidente, comensal do prefeito da cidade. E para ostentar um valor que não temos, tiramos com facilidade do bolso do colete um nome famoso, insinuando intimidade com ele.
Esta dança de aparência e exibição há muito instalou-se entre nós. Somos cortesãos com gosto. O poder é o mel das nossas vidas. Originou-se de variadas etnias, mas especialmente da península ibérica, e prosperou na alma brasileira antes de existirmos como nação. Um comportamento social que nos leva a inquirir sobre a nossa gênese.
Até mesmo os intérpretes brasileiros, que se aventuraram a definir nossa índole brasileira, que tão bem espelha a nossa conduta pública e privada, não puderam assegurar-nos de que linhagem originamo-nos, e o que nos une e nos separa. Ou excursionar com as mãos apalpando o horizonte o que é puramente do âmbito do mistério. Ou mesmo dizerem com exatidão onde se resguarda a matriz do nosso ser. Dizerem por meio das vozes canônicas e populares o que significava ser brasileiro ao longo do século XIX ou não se reconhecer brasileiro nas turbulências do século XXI.
Acaso ser brasileiro, um desígnio que cobre o território nacional, do norte ao sul, portanto oito milhões de quilômetros quadrados, é simplesmente nascer dentro deste território, ou mesmo a beira do oceano Atlântico, já que somos donos das duzentas milhas marítimas? É nascer em um lugar molhado ou seco, que não se vê no mapa nem com lupa? Uma aldeia à margem da civilização, que a mãe, após parir o filho, inventou para assegurar-lhe que embora tivesse vindo ao mundo em um grotão era um brasileiro? Enquanto enchia-lhe a cabeça com devaneios, lendas, narrativas, afim de garantir-lhe certidão de nascimento e humanidade.
Ser brasileiro então é termos epiderme e alma mestiças, resultantes das andanças humanas pelo mundo? Apresentar-se às autoridades municiado do documentos onde está consignada a filiação? Como nome dos pais, data de nascimento, dados enfim que se incorporam a estatística e controlam a cidadania? De que etnia procede seu cabelo, se é fino, encrespado, enquanto o nariz tem narinas dilatadas, de origem bantu, e outros o apêndice curvado para indicar procedência semítica. Etnias que de nada servem aos brasileiros, vale mesmo é ser parte de todas as tribos, proclamar-se filho das andanças humanas pelo mundo.
Acaso ser brasileiro é ter idiossincrasias similares, paixões que se igualam, temperamentos que acenam com a mesma bandeira nacional onde está inscrito o dístico Ordem e Progresso? Nordestinos que padecem da sede e sulistas que se perdem nos pampas, tomando chimarrão como se fossem argentinos?
É-se brasileiro pela língua que se fala no lar, na cama, na via pública? Independente do sotaque que cada região ostenta. Um anasalado, outro mais gutural, outro mais afunilado. Mas cada sotaque soando como música aos ouvidos de quem se emociona com a fragmentação das características. Uma língua vinda de Portugal há mais de quinhentos anos. E que se tornou a língua dos quebrantos, dos desejos eróticos, da eloquência parlamentar, dos sentimentos recônditos. A língua dos amantes e da poesia. Mas também dos guerreiros, dos corruptos que hoje são tantos no território nacional, sobretudo na capital do país, dos ditadores que foram expulsos a partir da implantação democrática em 1988, dos vândalos, dos supliciados de outrora e dos que ainda padecem nas mãos dos que têm poder. Também dos astuciosos, mentirosos, dos falsos donos das palavras, dos doutrinários inescrupulosos que nos tempos atuais, da tribuna da capital, nos ludibriam a pretexto de nos servir. A língua dos vencedores, dos pecadores. Dos que pedem perdão sabendo que incorrerão de novo na mesma culpa.
Há tantas maneiras de ser brasileiro. É rir confrontado com o ridículo que atribuímos ao vizinho como causador da situação constrangedora. Rir para que apreciem o nosso humor. É chorar quando a dor é pública e o nosso pranto prova a excelência do nosso caráter, como somos sensíveis diante da dor alheia. É abraçar quem sofre como se a manifestação de pesar assegurasse ao outro que seríamos eternamente solidários.
Ser brasileiro é dilacerar as cordas vocais na hora do gol, como modo de levarmos a ilusão para casa e com ela enfrentar a semana entrante a despeito do transporte, das dívidas que se acumulam, da educação precária dos filhos, da moradia que um temporal derruba matando dois ou três familiares. É beber a cerveja que o vulgo e a emoção chamam de loura gelada, como se estivessem se referindo quem sabe à loira Marilyn Monroe, criando com a garrafa um vínculo erótico. De forma que busquemos similitudes em torno da mesa e transfiramos para mais tarde as divergências que nos apartem. Já que convém esquecer que são escassos os recursos que nos une. É dizer piadas que atraiam a plateia de vizinhos, tendo como sujeito da nossa crueldade alguém que era necessário castigar. Um gay, por exemplo, um travesti, uma prostituta. Não há piedade em qualquer nação.
Aparentamos, então, ser cervantinos, somos brasileiros como quando abraçamos quem está próximo, o vizinho na hora do gol que decide a partida, fortalecidos pela esperança de vencer os embates da semana entrante. Como quando, emotivos e vulgares, sorvemos a cerveja que cristaliza similitudes em torno da mesa e transfere para o futuro as divergências que ora nos apartam.
Ser brasileiro é aceitar o mistério, convencido de que sendo Deus brasileiro, cabe-lhe solucionar os nossos conflitos. É saber que o Brasil é nossa morada e alojamento dos nossos mortos, e que nada nos faltará. Nem teto, nem a sopa fumegante. A vida supre-nos com sol, sal, alegria e a esperança dos dias vindouros.
Afinal, nos trópicos brasileiros as colheitas se multiplicam como nas bodas de Canaã. É a terra que Pero Vaz de Caminha, em 1500, assegurou ao rei Dom Manuel, em Lisboa, que aqui o que se plantasse, vingaria. Assim nasceram as bananas da infância junto com o fausto do verbo da língua lusa portuguesa. Para nós, cidadãos, é uma espécie de paraíso que bonifica a memória tanto com lembranças como com o esquecimento. Pois temos a propriedade de esquecer o que convém apagar. Também a transcendência, a despeito dos cultos sincréticos, e Deus estar em todos os lugares, não prospera e o enigma não é respeitado. Não há, pois, vocação filosófica, como os alemães. E por conta da força da intriga e da iminência da metáfora, somos voltados para a ficção e para a poesia.
A memória, contudo, que os brasileiros cultivam, corresponde à matéria que guardamos do mundo. Como consequência, para sermos brasileiro, somos gregos, romanos, árabes, hebreus, africanos, orientais. Somos parte essencial das civilizações que aportaram nesta terra onde afloram a abundância, a alegria, a traição, a ingenuidade, o triunfo do bem e do mal, a ilusão, a melancolia. Atributos todos nutridos pelo feijão preto bem temperado, o arroz soltinho, o bolo de fubá, o bife acebolado, e os anjos feitos de açúcar e gema de ovo que enfeitam a paisagem atlântica e sertaneja.
No Brasil, ao longo dos séculos, surgiram narrativas astutas e mentirosas que pautam a nossa história. Heróis e malfeitores, de estirpes emaranhadas. Outrora abominados, hoje reverenciados. Quem se interessa pelo julgamento da história? Mas personagens afinados com as torpezas e as inquietudes do seu tempo. Acomodados à sombra da mangueira que resiste aos anos, enquanto dedilhavam as cordas do violão e do coração.
Berço de heróis e marinheiros, neste litoral os saveiros da imaginação cruzaram os mares, instalaram culturas feitas das sobras alheias. Quem aqui nasceu, ou aqui aportou, fincou no peito brasileiro bandeiras, hábitos, linguagem, loucas demências.
É necessário, portanto, que ao viajar para o Brasil, o estrangeiro se apresse em dominar sua história, suas leis que, conquanto promulgadas, dão margem a interpretações múltiplas, coteje se o tema do seu interesse se harmoniza entre os diversos poderes públicos de Brasília. Se de verdade é o paraíso fiscal em que sonhou investir seu capital volátil, uma pretensão que contraria nossos interesses associados ao real desenvolvimento econômico do país. Sobretudo convém auscultar os sentimentos do brasileiro, sua simpatia, sua astúcia, a vocação com que altera as regras da vida e do mercado econômico. De como no meio de qualquer processo altera leis e diretrizes. De como ganha um tempo que, para o investidor, constitui um prejuízo, mesmo que as autoridades não saibam o que fazer com o tempo que guardou. Convém, sim, sondar o coração do brasileiro, que se reparte entre a família e os amores clandestinos, através da leitura dos intérpretes da pátria, dos ficcionistas, dos poetas. Deles emana a leitura que lhes dará o detalhe, a medida, as substâncias do ser brasileiro. A exegeses que vai fundo a genealogia dos afetos. Que tentou chegar perto deste coração brasileiro. Talvez se deslumbre com este povo singular, que trata o cotidiano com admirável leveza. E que a despeito de carnavalizar a realidade, também ostenta sintomas de melancolia.
É necessário saber e levar em conta, diariamente, de que nasceu no Rio de Janeiro em 1828, durante o Segundo Reinado, o escritor Machado de Assis, com nome de batismo Joaquim, cujo determinismo falhou ao não prever a própria grandeza. E de cuja obra surge o verbo que nos define e concede à nação um destino solar e a alvorada de cada dia.
Amigos, sejam todos bem-vindos a esta terra amada.
Nélida Piñon
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