sábado, 10 de fevereiro de 2024

O banimento dos idosos

Estudo recente, da Universidade Federal de Minas Gerais, mostrou que há no país quase 24 mil idosos vivendo nas ruas, quase 10% de todas as pessoas que estão nessa condição. O número delas, entre nós, aumentou sete vezes nos últimos dez anos. Estamos, portanto, em face de uma tendência na demografia etária dos brasileiros.

É compreensível que seja difícil explicar essa anomalia social. Em parte porque a busca das causas prováveis tende a ser a das mais simples, mais óbvias ainda que menos prováveis, não as invisíveis.

Chama atenção que diferentes estudos sobre moradores de rua tendam a identificar como causa de sua situação de abandono os chamados defeitos de caráter, como alcoolismo e droga. Ou seja, nessa perspectiva, a culpa é da vítima.


O que, na verdade, nada explica. É muito mais fácil culpar o frágil pelos problemas sociais que protagoniza do que buscar causas, e não culpas, na própria estrutura social e em suas disfunções, num país em que as irracionalidades da economia se expressam como anomia social.

As sociedades são relacionais, tramas de causas recíprocas, tanto no que dá certo quanto no que dá errado, tanto em relação ao rico quanto em relação ao pobre. No caso de São Paulo, na chamada cracolândia, a incidência da marginalização decorrente do uso de drogas sugere o protagonismo da classe média. Observei isso na cracolândia da rua Helvétia, há alguns anos.

Caso em que se pode levantar a hipótese legítima de que o viciado desses ajuntamentos é alguém que busca a sociabilidade coletiva da rua porque é ela não excludente.

Ela se dá fora dos mecanismos de controle social dos diferentes grupos sociais de pertencimento e de referência. Como a família e a vizinhança e outros grupos de orientação social comunitária e afetiva.

Pessoas repelidas e reprimidas pela sociabilidade individualista dos agrupamentos formais, societários, os do indivíduo e não os da pessoa. Os do sujeito da cultura da produção lucrativa e não os da cultura do afeto.

As dificuldades do morador de rua para permanecer na sociabilidade da família parecem provir do fato de que a família em boa parte se tornou complemento e instrumento do sistema produtivo e lucrativo, isto é, da racionalidade econômica e não mais exclusivamente da afetividade social.

Sociologicamente, efeitos socialmente desorganizadores da vida em família, em muitos casos, não contam com a reação afetiva, compensatória e reintegradora do grupo familiar. Em boa parte porque os laços de família estão significativamente mediados e abalados pelo primado de relações de interesse.

A afetividade familista permanece na estrutura familiar, especialmente dos mais velhos em relação aos mais novos. E só residualmente presente, porque no sentido oposto e negativo, antissocial, dos mais novos em relação aos mais velhos. Avós tendem a ser muito mais generosos no acolhimento e proteção a netos e filhos do que os mais novos em relação aos mais velhos.

Isso tem muito a ver com as cada vez mais limitadas condições de vida das famílias. Com o chamado arrocho salarial dos anos iniciais da ditadura militar, o salário de duas pessoas em cada família tornou-se necessário para cobrir o que antes um único salário cobria. Aqui, isso tornou-se estrutural. Essa dificuldade desenvolveu um egoísmo peculiar nas gerações mais jovens, em começo de vida adulta, mesmo na família.

Mas não só nem principalmente isso. O sistema econômico, cada vez mais, tem transformado o trabalhador em matéria-prima da produção ao privá-lo dos meios de sua própria reprodução social, ao consumi-lo. E nele negar o meio de realização do capital. É um equívoco político supor que, na teoria das classes sociais, o trabalhador se explica apenas pela produção e não, também, pelo consumo de bens e serviços, condição da reprodução do capital.

É significativo que em São Paulo, o estado mais rico, estejam 40% dos idosos moradores de rua do Brasil. Entre as anomalias e contradições do sistema econômico brasileiro está a do banimento de seres humanos para os espaços de deterioração social, como os define Lewis Mumford.

O idoso de rua é o ser humano que chegou ao limite da procura de reintegração no mercado de trabalho. Da crescente dificuldade para conseguir emprego, o tempo cada vez maior de desemprego entre um emprego e outro define o ritmo da dessocialização do idoso no grupo familiar e na sociabilidade do trabalho, os vínculos sociais cotidianos mutilados pelo desemprego.

Sobram-lhe a necessidade de ressocialização para um modo de vida, um cotidiano marginal e não integrativo, na referência social dos grupos de rua a do viver de restos, ele próprio reduzido a resto da condição humana.

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