segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Os errantes

Muros são a representação física mais simplória de mundos que se querem isolados. Em toda a Europa de 1989, ano da queda do Muro de Berlim, existiam apenas quatro demarcações de fronteiras semelhantes no Velho Continente. No início do milênio, outras 30 haviam sido erguidas, todas destinadas a barrar não mais o específico inimigo armado de antanho, e sim um animal genérico, desprovido de retaguarda e futuro: o ser humano errante. Ele é danado, esse migrante, apátrida, exilado, expatriado, deslocado ou expelido pela força. Ele teima em buscar um chão, em alguma parte, a qualquer risco. Antes, porém, com igual tenacidade, terá se agarrado ao pedaço de teto que sempre chamou de seu. Assim tem caminhado a humanidade. Dois episódios ocorridos na semana passada fazem parte desse caldeirão.


Na quarta-feira, o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, conseguiu aprovação para transformar em lei uma promessa de campanha nascida da cabeça platinada de Boris Johnson, seu desastroso antecessor. Trata-se de desestimular o afluxo de embarcações irregulares que cruzam o Canal da Mancha todos os anos, abarrotadas de migrantes em busca de asilo, deportando-os para Ruanda, país africano sem saída para o mar. Ali, a 6.500 quilômetros de Westminster, aguardariam o resultado de seu pedido de asilo.

Segundo dados do Observatório de Migração da Universidade de Oxford, 45.755 refugiados conseguiram chegar à costa britânica em 2022 pelas águas traiçoeiras da Mancha, em pequenos barcos, enquanto o total de imigrados irregulares chegou a 670 mil. Seria, portanto, uma medida irrisória, além de sua essência desumanizante e colonialista. Ela ainda precisará do aval da Câmara dos Lordes, que não demonstra o menor apetite para tratar do tema. O próprio Partido Conservador de Sunak ficou rachado, com alguns parlamentares exigindo medidas mais radicais enquanto outros apontavam para a inexequibilidade da operação.

Uma primeira tentativa de deportação para Ruanda, com Boris Johnson ainda em Downing Street, fora abortada judicialmente na 25ª hora, quando as turbinas do avião que levaria a carga humana rumo a Kigali já estavam ligadas. À época, o governo britânico havia feito um adiantamento de 240 milhões de libras esterlinas (o equivalente a R$ 1,5 bilhão ) aos cofres do presidente Paul Kagame, para cobrir o custeio dos deportados. Em Davos, Kagame reclamou da lentidão da operação e não falou em ressarcir de imediato os cofres de Sua Majestade. Entrementes, as 4 mil pessoas listadas para compor o pelotão inicial e aguardar, em Ruanda, autorização de asilo no Reino Unido simplesmente sumiram do radar do home office. São errantes escaldados por desesperança múltipla acumulada ao longo de suas muitas travessias.

Na quinta-feira, foi a vez de o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, remoer com bota a ferida mais exposta do Oriente Médio desde o final da Segunda Guerra Mundial. Em entrevista tensa concedida na base militar de Kirya, em Tel Aviv, ele rejeitou a perspectiva da criação de um futuro Estado Palestino independente e soberano. Nem ontem, nem hoje, nem amanhã. Nem mesmo se conseguir erradicar de Gaza o terrorismo do Hamas, responsável pelos atos de barbárie e desumanidade praticados em 7 de outubro contra civis israelenses. A mensagem de Bibi foi clara, mesmo sob pressão dos Estados Unidos e de movimentos democráticos em seu próprio país: todas as terras palestinas continuarão sob ocupação do Estado judeu.

E o que sobrar da população civil de Gaza, encurralada num pedaço reduzido do enclave onde persiste a teimosia humana de sobreviver? Netanyahu não disse, mas vozes do primeiro escalão de seu governo falaram por ele: que saiam de Gaza, larguem o chão onde nasceram, procurem outro lugar como tantos outros obrigados a se tornar errantes antes deles.

Consta dos arquivos do Estado de Israel uma minuta datada de 55 anos atrás, que autorizava o governo a transferir 60 mil palestinos de Gaza ao Paraguai:

— Decisão Shin.Taf/24 do Comitê Ministerial para a Administração de Territórios, 29 de maio de 1969, Imigração Árabe. Aprovada a sugestão do Mossad para a emigração de 60 mil árabes dos territórios administrados de acordo com os seguintes termos (...).

Os quatro itens listados no documento estabeleciam a responsabilidade de Israel com as despesas de viagem de cada emigrado, a alocação de US$ 100 para cobrir seus custos iniciais de instalação, o pagamento de US$ 33 por palestino ao governo do Paraguai e o desembolso imediato de US$ 350 mil para a operação com os 10 mil primeiros selecionados. Levi Eshkol, o primeiro-ministro daqueles tempos expansionistas que se seguiram à Guerra dos Seis Dias, não poderia ter sido mais claro:

— Quero que todos vão embora, nem que seja para a Lua.

Foi um experimento que deu terrivelmente errado. O Paraguai, nos confins da América do Sul, então comandado pelo ditador Alfredo Stroessner, tinha ainda menos a ver com a alma palestina que Ruanda tem a ver com um refugiado da Síria. Quem primeiro revelou a operação foi o jornalista israelense Yossi Melman, em 1988. Ele havia atuado nos serviços de Inteligência de seu país. E quem se aprofundou no tema mais recentemente foi a antropóloga americana de origem palestina Hadeel Assali. Em artigo para a London Review of Books de 10 de maio de 2023, ela mergulha na memória de um tio natural de Gaza, ainda vivo. Rapazote em 1969, Mahmoud embarcara com um laissez-passer fornecido pela ONU para, segundo os ocupantes israelenses, trabalhar um ou dois anos no Brasil. Depois poderia retornar a Gaza. Era embuste, nem sequer viu a cor do Brasil.

Errantes sempre houve e haverá. Cabe a nós não esquecê-los.

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