sexta-feira, 8 de julho de 2022

Tempo de águas turvas

Desde a posse do presidente da República, ele próprio e membros de seu governo, com alguma frequência, agitam as águas da política brasileira para turvá-las e nelas pescar de modo politicamente impróprio.

Por trás desses procedimentos está uma compreensão do processo político que não é deles, nem têm eles demonstrado ter o discernimento que lhes permita saber o que estão fazendo. Embora gostem do que fazem. Sabem de uma coisa: foram eficazes as manipulações extraeleitorais das eleições de 2018, a falsa defesa dos costumes, o falso fortalecimento da segurança. Candidatos evangélicos e candidatos fardados foram beneficiados por essas máscaras ideológicas.

Tudo foi e tem sido instrumento de uma cultura de suspeição que torna fácil, na campanha eleitoral, manipular consciências e colocar entre parênteses a consciência crítica e democrática do eleitor para induzi-lo a votar em quem normalmente não votaria. Desde a ruinzinha cinematografia americana da Guerra Fria, o mundo por ela influenciado tem sido induzido a temer fantasmas ideológicos para eleger quem supostamente os combate.


Em dias passados, a colunista Malu Gaspar divulgou no jornal “O Globo” que o general Braga Netto, candidato provável a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, em encontro com empresários da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, teria dito que não haverá eleição se não for feita a auditoria dos votos defendida pelo mandatário da República. Foi ouvido em silêncio. A assessoria de imprensa do general esclareceu que não houve ameaça e que a fala foi tirada de contexto.

No entanto, afirmações como essa, de ameaças às instituições e ao processo democrático, têm sido feitas, logo cercadas de interpretações e correções que desdizem o já dito. Desmentidos não têm o poder de desfazer os efeitos subjetivos da mensagem já enviada. Eles apenas criam incerteza quanto à afirmação original e primária do disseminador de uma afirmação perturbadora.

A fala de campanha do general não está isolada. Repete Bolsonaro de meses atrás. Portanto, a frágil incerteza do desmentido de agora alenta a desconfiança de que está em andamento um processo de gestação da dúvida quanto à eleição.

O que tem sido interpretado de que estamos em face de preparação de um golpe de Estado e que o golpe tem o aval das Forças Armadas. Sabemos que institucionalmente isso não pode ocorrer. E sabemos que autores de golpe são candidatos a processo e prisão.

Esse tipo de conduta destina-se a naturalizar a possibilidade do golpe. Já se difundiu na sociedade inteira a pergunta “haverá golpe?” ou, para os conformistas, “vai ter golpe”.

De certo modo, está se preparando um substrato de consciência política e eleitoral destinado a frustrar os eleitores se não houver golpe. Ou seja, trata-se de uma técnica de manipulação da opinião eleitoral de modo a envenenar a legitimidade do processo político no caso, nesta altura muito provável, de que um candidato de oposição vença a eleição.

Um filho do presidente, na esteira desse jogo, declarou que não sabe como os eleitores de Bolsonaro reagirão no caso dele não vencer as eleições. Nos países normais, as pessoas normais sabem o que acontece com os que perdem eleição: vão para casa ou, quem não está acostumado a trabalhar, vai procurar emprego.

Diferentemente do que ocorreu em todas as eleições anteriores à de 2018, o bolsonarismo empenha-se em criar a anomalia política de que aquela eleição não foi para confirmar a natureza democrática do processo eleitoral, com a alternação doutrinária e ideológica dos governantes, mas para pôr-lhe fim. O eleitorado teria votado no sentido de instituir uma ditadura. O que não é estranho.

A vocação totalitária de uma parte do eleitorado brasileiro é antiga. Foi difundida nas revoltas tenentistas. Num documento dos militares revoltosos de 1924, em São Paulo, há um programa de reproclamação da República após o governo de Floriano Peixoto, usurpada e aparelhada pelas oligarquias dos “coronéis” de roça. Basicamente uma ditadura para educar os brasileiros à conduta própria de um regime político antirrepublicano, nascido nos quartéis.

A realidade mostrou que isso era impossível. A ditadura de 1964 teve que conciliar com as oligarquias, especialmente suas facções de bajuladores, os que trocam favor por voto, por verbas de orçamento secreto, como se viu agora, o país reduzido a uma republiqueta na pressuposição de que democracia é a do bando de eleitores com mentalidade carneiril. Costa e Silva, ministro da Guerra do governo de Castelo Branco, chegou a dizer na TV que não conseguia entender os civis. No quartel, ele dava uma ordem, e a ordem era cumprida. No governo, não.

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