segunda-feira, 14 de junho de 2021

Para sair desta maré

‘É tudo um tecido de mentiras.’

Essa frase de um personagem de Ingmar Bergman às vezes me vem à cabeça quando tento sintetizar a política do governo Bolsonaro contra a pandemia.

Noutros momentos, procurei destacar a base dessa atitude devastadora, que é a negação de fatos. A negação como fenômeno psicológico foi teorizada por Freud em 1923. Sua filha Anna Freud ampliou os estudos do tema, sobretudo em crianças.

Não ver ou ouvir certos fatos às vezes é uma tentativa de evitar a dor ou o desafio que abale nossas convicções do mundo. Nas crianças indefesas, até que isso, em determinadas condições, tem um lado positivo e permite seguir adiante apesar de experiências traumáticas.

Em política, esse conceito de negação foi usado também para definir as teses que negam o Holocausto e as atrocidades do regime nazista.

Mas às vezes essa tendência se infiltra na sociedade. Michael Milburn e Sheree Conrad escreveram um livro sobre as principais políticas de negação na sociedade norte-americana.

Bolsonaro se recusou a aceitar a existência da pandemia. Da célebre comparação do vírus a uma gripezinha a todos os passos posteriores, sua atitude foi negar.

No auge da pandemia, já com 480 mil mortos, ele ainda fez uma tentativa desesperada de negar que todas essas mortes foram causadas pela Covid-19. Para isso, um auditor amigo produziu um relatório fake e o introduziu no sistema do Tribunal de Contas da União.

No entanto, na CPI da Covid, onde se apuram as responsabilidades, a tendência do governo é negar sua política de adesão à hidroxicloroquina e recusar a vacina. É a negação da negação.


O que fazer com tanta mentira? Para a CPI, a tarefa é simples: alinhar declarações, atitudes e documentos e provar que esse tipo de política causou mortes.

No campo político, entretanto, coloca-se uma questão importante: como atuar na vida pública com um país tão intoxicado pela mentira?

Não tenho ilusões de que o clima será muito melhor no futuro. O crescimento da internet mostra como os grupos se atacam: como enxames de abelhas, parecem morder diante de um pensamento que lhes desagrada.

Outro dia, questionado sobre a possibilidade de atenuação do clima, respondi longamente. Percebi como o tema me preocupa.

Um dos caminhos é unificar o campo da oposição e reduzir a hostilidade mútua diante do adversário comum. Coalizões mais heterogêneas, como em Israel, surgiram da necessidade.

Para reduzir a hostilidade no campo de oposição, não basta boa vontade. É preciso reconhecer que existem candidaturas diferentes, representando a esquerda, o centro e até a direita.

Os que afirmam que não querem nem um nem outro, nem Lula nem Bolsonaro, precisam avançar nessa forma simplificada, reconhecendo que não são forças equivalentes; existe uma diferença de qualidade entre elas.

Isso seria um primeiro passo. O centro seria criticado apenas por pensar de forma diferente, mas não por estabelecer uma equidistância artificial entre esquerda e extrema-direita.

Outra ideia que me parece válida é reconhecer que Bolsonaro pode perder apoio. A tática correta não é estigmatizar seus mais de 50 milhões de eleitores. Erros históricos coletivos acontecem. A tarefa principal é tornar leve o caminho de volta para uma posição mais sensata. O estigma, pelo contrário, dificulta a vontade de mudar.

São ideias iniciais. Quando as exprimi numa conversa com Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto lembrou o plebiscito no Chile e como uma posição mais solar, mais leve, acabou derrotando a herança de Pinochet.

São ideias iniciais, mas uma reflexão sobre o caminho. É insatisfatório apenas denunciar as mentiras do governo Bolsonaro e seus passos rumo a um golpe.

É necessário criar uma base comum de resistência e, sobretudo, algumas razões para acreditar em mudanças. Isso não purifica a atmosfera política, mas pelo menos ajuda a respirar.

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