Bolsonaro não foi o único a tratar a Covid-19 com nonchalance suicida. De início, por interesse eleitoral ou estupidez, uma parte do Brasil envergando paletó ou farda, toga ou chinelo de dedo, também não quis ver o tamanho do perigo. Quase sempre correndo atrás do atraso e adotando políticas ciclotímicas de abre/fecha, autoridades estaduais e municipais foram tateando. Hoje 1.703 prefeitos aprendem a formar consórcios para a compra de vacinas. O Congresso, que por um ano se fingiu de adormecido, por fim acorda algo sobressaltado.
Mas o grosso da responsabilidade, pelo imenso poder de liderança, comunicação e recursos que o cargo lhe dá, é do presidente da nação. Exatamente um ano atrás, neste espaço se comentava o registro de 13 casos positivos de Covid-19 entre os 209 milhões de brasileiros. O salto para os quase 11 milhões de casos atuais, com mais de 264 mil vidas perdidas no caminho, nasceu da cartilha manicomial de Jair Bolsonaro, e nada, daqui para a frente, conseguirá apagar esse rastro.
Nem mesmo o “Penguin Book of Lies”, trabalho investigativo-literário sobre as várias formas de mentir publicado em 1990 pelo britânico Philip Kerr, conseguiria dar conta das artimanhas mentais do presidente. Talvez nem Santo Agostinho soubesse fazê-lo. O santo sustentava que “nem todo aquele que diz falsidades está mentindo se crê ou presume ser verdadeiro o que diz...”. Mas como saber se o capitão sequer acredita nas sandices que professa? Possivelmente não, são apenas escapes.
Joseph Goebbels sabia que mentia. Exercitava o ofício da propaganda com total controle e convenceu os alemães da receita nazista. Ronald Reagan, ao contrário, realmente acreditava na “América” de John Wayne e das ilustrações de Norman Rockwell. Convenceu o eleitorado de que representava o país onde sempre é possível enriquecer. Suas crenças eram simples. Foi reeleito apesar de 138 membros de seu governo terem sido investigados, indiciados ou condenados por inúmeras encrencas.
Pensadores de calibre, como Hannah Arendt, já ensinaram quanto esconder a verdade faz parte das ferramentas necessárias e justificáveis não apenas para políticos demagogos, como para estadistas de verdade. Ademais, inexiste a política da autenticidade pura, da sinceridade não contaminada. Nem deve existir, aconselha o visionário George Orwell, cada vez mais lido nos dias de hoje. Para o autor de “1984”, pior do que a hipocrisia na política, é um mundo em que ninguém mais tem sentimentos privados para manter secretos. “Quando ninguém mais tiver nada para esconder, é onde reside o terror”, escreveu. A verdade absoluta, inequívoca, aquela que silencia os que dela discordam e cancela qualquer debate, pode ser tão opressora e inimiga da liberdade humana quanto uma imensa mentira.
Nenhuma dessas considerações nem sequer consegue ser aplicada a Jair Bolsonaro, que é apenas um terrível, lamentável , primitivo e danoso aspirante a chefete do Brasil. Nos primórdios da revista “Veja”, a redação brincava de dividir a chefia do semanário em três categorias: arquitetos do caos, simuladores de produtividade e falsos ecléticos. Bolsonaro consegue ser as três coisas ao mesmo tempo e tantas outras mais.
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