domingo, 10 de junho de 2018

O Porto, o médico e o monsto

Nenhuma capital brasileira fez o que o Rio de Janeiro realizou nos anos recentes ao colocar o desejo por nova urbanidade no seu centro histórico. Deste modo, estabeleceu um possível modelo mais sustentável para o desenvolvimento urbano, coerente com as necessidades atuais de um planeta em aquecimento e que exige conservação ambiental, evitando consumir natureza para urbanizar; que implica o uso inteligente e compartilhado de infraestrutura, historicamente presente no Centro e que determina a constituição de territórios mais inclusivos, forjando um contrato social amparado na diversidade, imperioso para taxas demográficas estáveis e até decrescentes.

A esses três princípios, ambientais, econômicos e sociais, une-se um quarto, o cultural, pois a reciclagem do Centro reafirma a ancestralidade comum, os lugares originais e seus símbolos, inspirando para desafios vindouros.

Estes são os valores estratégicos do Porto Maravilha, cujo arcabouço legal é de final de 2009, e cujas primeiras obras, ainda feitas com recursos diretos do Tesouro municipal, foram inauguradas em 2012, como a urbanização das ruas Sacadura Cabral, Venezuela e o Largo São Francisco da Prainha; a restauração do Jardim Suspenso do Valongo, com o acesso ao Morro da Conceição, e o agenciamento urbano do entorno do Cais do Valongo. Ou seja, a transformação da região começou apenas, efetivamente, há cerca de seis anos. Antes, haviam planos.

Contudo não faltam detratores ao Porto, já julgando-o natimorto. Ainda estão em processo de reabilitação, medidas em décadas, as áreas portuárias de Buenos Aires, de Marselha, de Toronto, de Hamburgo. Do mesmo modo, não faltam opositores da participação privada, nostálgicos que são por Brasílias feitas em cinco anos com recursos públicos de caráter nacional-desenvolvimentista.

Por isso, para gerir ao longo do tempo, incrementando qualidades e lidando com adversidades, o Porto Maravilha conta com a gestão territorial dedicada da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária, a Cdurp. Repito, desenvolvimento urbano, não desenvolvimento imobiliário. O primeiro deve conter o segundo. Nunca o contrário. Neste sentido, errou-se na origem ao não evidenciar ao máximo a política habitacional para a área, que poderia ter destinado 3% do valor das Cepacs para produção habitacional, semelhante do que foi feito para o patrimônio cultural. Gerir implica negociar, e isso é positivo, mas errou-se também ao se dar poder discricionário excessivo à Caixa Econômica Federal sobre os rumos urbanísticos.

Se a Caixa é um stakeholder fundamental para a reabilitação de áreas urbanas centrais por causa da sua missão institucional de fomentar habitação e infraestrutura urbana, ela vem se comportando recentemente como uma criatura pública esquizofrênica. Ora médico, ora monstro.

Como agente financeiro, fomenta a “antitese” do reúso urbano e do retrofit, por meio do opiáceo do Minha Casa Minha Vida, viciando o mercado, a parte socialmente vulnerável dos brasileiros e os políticos num projeto habitacional equivocadíssimo que teremos que trabalhar muito para corrigir nos próximos 30 anos. Não inventou a droga, mas age como traficante ao distribuir e financiar esse tóxico urbanístico no país inteiro. Um modelo consumidor de natureza, catalisador de periferias insolúveis e anabolizante de empreiteiros e políticos medíocres. Pouco ajudou, por exemplo, até hoje, os movimentos de luta pela moradia.

No Porto, faz papel de médico ao incentivar o tratamento para a revitalização, por meio do remédio que são os títulos de potencial construtivo, as Cepacs. É a venda desse papel ao mercado imobiliário que financia as obras e que paga os serviços públicos feitos pela concessionária Porto Novo.

Entretanto, novo impasse entre Caixa e Cdurp ameaça o futuro da área por alegada falta de liquidez do fundo imobiliário que sustenta a operação, por causa da baixa venda de títulos. Ocorre que a Caixa, desde o início, tem optado em não vendê-los, e sim usá-los como meio para converter-se em sócia dos empreendimentos, comprando participação nos ativos. Mirando lucros futuros, sujeita-se às intempéries das depressões econômicas momentâneas. Essa política assustou o mercado desde o começo, receoso em ter que aceitar um banco público como cotista nos negócios, atrasando lançamentos e resultando agora em riscos altos por causa da vacância de prédios. Se não vende Cepacs, não obtém receita. Virando sócia, corre riscos. Perdendo resultado, o fundo vazio corrói o futuro do Porto. Ciclo estéril.

Há conflitos de missão institucional na Caixa. Ou é parceira da sociedade brasileira na inauguração de um modo tipo de urbanidade, como a requalificação do Centro do Rio, inspirando outras cidades, ou é exclusivamente financista, ou é fomentadora do espraiamento urbano por meio do MCMV, onde já foram alocados R$ 340 bilhões, transformando médias construtoras em grandes players imobiliários nacionais.

Não faltam recursos ao Brasil, falta visão urbana que priorize a reconquista do bem público, a cidade histórica, para todos, num ciclo fértil.

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