Tal fragilidade não se efetiva só na intolerância da classe armada à prática da democracia: as próprias instituições constitucionais não funcionam. Ou, se o fazem, funcionam mal quase sempre, até quando pretendem proteger o regime.
É o que se deve observar na atual disputa pela Presidência — uma aberração monstruosa.
Bolsonaro não poderia estar em disputa eleitoral. Sua candidatura é ilegítima. Os delitos quase diários que enfileira não deixaram de ser delitos por se tornarem aceitos, à força da repetição mas, sobretudo, à falta de que as instituições determinadas pela Constituição — Congresso, Judiciário e Procuradoria-Geral da República à frente — cumpram o seu dever.
Ainda assim, quando conclui todo um mandato de liberdade criminal, Bolsonaro está diante de um obstáculo que seu privilégio ridiculariza: a Lei da Ficha Limpa. Vale para numerosos aspirantes à eleição, desde vereador. Para Bolsonaro, a fileira de delitos não faz intervalo nem na reta final da campanha pela reeleição. Quando a ideia de reeleição é em si mesma, no seu caso, delito moral contra o país.
A 30 dias da votação, dois competentes repórteres e o UOL comprovam 51 negócios imobiliários feitos a dinheiro vivo pelos Bolsonaro. A Juliana Dal Piva e Thiago Herdy segue-se um ex-servidor de Bolsonaro, Marcelo Nogueira, com informações sobre o "dinheiro por fora" na compra de uma casa pelo patrão, no Rio. Os valores declarados das compras são todos muito abaixo dos preços de mercado.
A Bolsonaro bastou um deboche: "Qual é o problema de pagar com dinheiro vivo?". Tem razão, aliás. Não é problema, é corrupção. Muito bem indicada na dinheirama que não pôde deixar rastro, como também as pegadas de quem levou o dinheiro vivo até um Bolsonaro.
E o que vem na chamada mídia, por ser Bolsonaro, é conhecido: a notícia cuidadosa passa à discrição, e logo surge algo para mudar a conversa. Se faltar, como diz Bolsonaro, não há problema. O PIB completado em junho, por exemplo, é saudado em setembro com o verbo no presente: cresce, recupera, retoma.
As compras a dinheiro já estão atribuídas à ex-mulher, ao ex-cunhado, irmão, mãe falecida. A atribuição é até novidade, porque o apoio ao garimpo ilegal, à apropriação de terras públicas e de indígenas, a relação com milicianos, cloroquina e mortes, as rachadinhas, o desmatamento e o contrabando de madeira, chegando a tramoias legislativas para mineração com aparência legal na Amazônia, tudo isso que produz muito dinheiro vivo nem precisou dos tais laranjas. Foi feito, e pronto.
A par dos seus interesses pessoais e familiares, Bolsonaro se empenhou em uma tarefa sem precedentes: desmontar o sistema de administração pública. "Menos R$ 1 bilhão para educação básica em 2023" e "Governo corta 42% da Saúde na proposta de Orçamento 2023" são títulos do Globo e da Folha na mesma sexta-feira.
Não é preciso dizer mais sobre a recusa às obrigações sociais do governo, um crime que se junta às monstruosidades durante a pandemia. Todo o dispositivo de vigilância patrimonial, a estrutura universitária, a proteção a direitos, conservação ambiental, inovação industrial, redução das várias desigualdades, enfim, toda a engrenagem que move o país foi quebrada. Sem custo algum para Bolsonaro.
Do Congresso recebeu proteção e apoios. No Judiciário, os ímpetos de um e de outro não atenuam a passividade da mais que duvidosa conveniência de não "desestabilizar" o país. Sem se indagar que estabilidade seria essa, de um país em devastação geral, nas mãos de um governo delituoso, deliberadamente delituoso.
O complemento é perfeito. Bolsonaro está em campanha diária, por todo o país, com os recursos dos cofres públicos. A cada dia um "evento oficial" dispensa de gasto. Nossos impostos custeiam o que a maioria não quer. E a essa igualdade de condições estamos forçados a chamar de eleição democrática.
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