sábado, 30 de junho de 2018

Acordar no Brasil


Responsabilidade invertida

O Brasil vive um momento particularmente instrutivo. Sem rodeios ou meias palavras, parece ter chegado o tempo de se pôr as cartas na mesa: a fatura da inconsequência das elites políticas e econômicas será, uma vez mais, quitada pelo povo. A inversão do ônus da responsabilidade de ações que resultaram na degradação das instituições no país está em curso.

Impulsionada por essa tendência, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PL 580/2015, que altera a lei de execução penal para que os/as encarcerados/as passem a ressarcir o Estado pela sua manutenção no sistema prisional. Na justificativa da proposta, sinaliza-se que a transferência dos custos do cárcere para os/as presos/as abre espaço para o investimento em outras áreas estratégicas. Nas declarações de muitos senadores/as, está a preocupação de se evitar que o erário seja onerado com a manutenção das “mordomias” patentes nos presídios brasileiros.


Essa pauta está alinhada à uma agenda governamental que trabalha por meio de ações truculentas. Não nos deixa mentir a intervenção militar deflagrada no Rio de Janeiroem fevereiro desse ano. O desfile de tanques de guerra; a humilhação das revistas e o toque de recolher impostos às periferias negras da cidade foram as cenas televisionadas para se sinalizar a firmeza do golpe. Os resultados mais palpáveis desse espetáculo bélico são as pilhas de corpos desumanamente descartados, como no caso que deixou a Maré de luto pelo assassinato de Marcus Vinicius da Silva no último dia 20. Com o slogan do controle e do extermínio, cobra-se o pedágio de quem mais sofreu com as artilharias pesadas da alardeada corrupção.

Com uma previsão de cortes orçamentários e a roleta das urnas se aproximando, o discurso sustentado pela cultura punitiva ganha fôlego renovado. Nessa manobra, a pintura da prisão em cores dóceis é a faceta mais aviltante dessa retórica de perversidades.

O contra-discurso necessário a esse contexto deve ser pautado a partir das vozes que são sistematicamente abafadas, humilhadas, esquecidas. Numa dessas raras oportunidades temos acesso a essas narrativas, visibilizadas no âmbito do projeto Cartas do Cárcere, promovido pela parceria entre PNUD e a PUC-Rio. A análise de mais de 8.000 cartas encaminhadas pelos/as encarcerados/as à Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais em 2016, nos permitem visualizar as entranhas do sistema a partir de testemunhos reais e dolorosos.

São cartas que falam de escolhas marcadas pelas armadilhas da exclusão social, da falsidade de acusações, das ameaças que tem a morte como desfecho provável. Relatos que denunciam a superlotação, pleiteiam o acesso à saúde, rogam pelo fim das torturas. Rabiscos desesperados que, na contramão do que se declara na propaganda conservadora, tem o acesso à justiça e não o reclame por frivolidades, como seu principal mote. No espaço em que sobram as iniquidades das violações, da insalubridade e do abandono, se amontam demandas pelas garantias básicas da legislação: a progressão de pena, a assistência judiciária, o proferimento da sentença definitiva.

É na escuta dessas vozes ignoradas e não nos autofalantes de carrascos engravatados que podemos encontrar saídas fora do cinismo político.

Pautado em perspectivas reacionárias, o aludido projeto determina que os/as encarcerados/as que não puderem indenizar o Estado com seu patrimônio, o façam com o suor de sua lida. Trata-se do ciclo insidioso que vulnerabiliza os indivíduos, os encarcera, para depois expropriar sua força de trabalho. O espelho com as marcas históricas da escravidão não é mera coincidência.

Afinal, só um país que renova e aprofunda os sentidos do racismo pode acolher esse tipo de proposta. Há que se lembrar que nosso sistema prisional é o resultado mais bem-acabado dos desmandos institucionais que degradaram as estruturas básicas da saúde e da educação. Nele desembocam os/as representantes da massa negra empobrecida e historicamente perseguida pelo Estado. Agora, é no boleto do cárcere que se quer creditar a sustentação das plataformas sociais que nunca estiveram à serviço desses indivíduos.

Por óbvio, é na conta dos privilégios, e não na exploração das algemas, que os recursos para a compensação do orçamento devem ser procurados. A grande dívida acumulada no país é com as pessoas socialmente marginalizadas, seletivamente encarceradas, gratuitamente exterminadas para que se forjem falsas sensações de segurança. É esse, em verdade, o grande rombo no orçamento no Brasil: o de caráter ético que tem de achar os caminhos de uma revisão política efetiva e não o aprofundamento de nossas tragédias seculares, para que possa ser finalmente liquidado.

Sacrifício pelo virtual

Corporações, dinheiro e nações existem apenas em nossa imaginação. Nós os inventamos para nos servirem; por que chegamos a sacrificar nossas vidas a seu serviço?
Yuval Noah Harari, "Homo Deus"

Liberou geral

O que se temia como uma probabilidade está se transformando numa amarga realidade. O Judiciário vem colocando em curso um movimento abafa Lava Jato. Parece considerar que ela foi longe demais e quer lhe cortar as asas. A estratégia de implosão da operação – que nos últimos tempos desencadeou o mais bem-sucedido esquema de combate à corrupção da história do País – é tenebrosa. A Segunda Turma do STF, composta na maioria por togados que não se conformam com as regras em vigor e que, sempre que podem, contrariam a jurisprudência, passou a desfazer sistematicamente decisões colegiadas, numa afronta gritante à ordem estabelecida. O triunvirato Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski adotou o método liberou geral. Na semana passada a prática livrou das grades criminosos condenados em segunda instância como o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro do PP, João Claudio Genu, numa interpretação muito peculiar (para não dizer em completa dissintonia) ao entendimento em vigor, ignorando a posição da plenária do Supremo que havia determinado o princípio da prisão sumária nesses casos. O ministro Toffoli, relator do processo de Dirceu, criou o que pode ser entendida como uma artimanha legal para emitir o chamado habeas corpus “de ofício” baseado no que considerou uma alta “plausibilidade jurídica no provimento dos recursos excepcionais”. Traduzindo em miúdos a rebimboca da parafuseta, Toffoli, que já assessorou o PT na Câmara e foi subordinado ao próprio Dirceu no ministério da Casa Civil como ex-advogado-Geral da União do governo petista, entendeu que as queixas do ex-chefe, até então preso, poderiam vir a ser consideradas procedentes mais adiante em julgamentos futuros. Decidiu assim por um alvará de soltura preventivo. Que tal? Dessa maneira, Dirceu, que já havia recorrido a toda sorte de embargos infringentes, embargos declaratórios e instrumentos protelatórios possíveis, que tinha sido condenado no “Mensalão” e voltou a delinquir no “Petrolão”, saiu de novo livre e serelepe pela porta da frente do cadeião da Papuda, para a indignação geral e revolta da população. O colega Fachin alertou para a inconveniência de um julgamento destoando do entendimento do pleno. Tofolli deu de ombros, foi seguido no voto pelos aliados de sempre, Gilmar Mendes e Lewandovski, compondo a maioria acachapante do Tribunal para abrir a cela contra o voto isolado de Fachin. As libertações de Dirceu e, logo após, Genu configuram um escárnio à sociedade, uma humilhação civil, sinalizando o descompasso da Justiça de acordo com o réu em questão. Ministros do STF, que deveriam zelar pela estabilidade legal, estão provocando, eles mesmos, uma insegurança jurídica sem precedentes, enterrando na lama qualquer resquício de credibilidade dos poderes constituídos.

É uma vergonha que as devidas ações legais sejam submetidas ao que o professor de Direito Constitucional, Joaquim Falcão, definiu como “eternidades temporais da Corte”, nas quais o sistema é permissível a recursos infindáveis. Pontifica Falcão a necessidade de se estabelecer o quanto antes quem dá a palavra final, se o pleno do STF ou “o monolítico trio anti-Lava Jato”. A troika de ministros insatisfeitos com a jurisprudência em vigor animou-se em fazer concessões escabrosas, como a sinalizar preferências pessoais e ideológicas. Na mesma semana, o grupo de magistrados anulou as provas obtidas na residência da senadora do PT Gleisi Hoffmann e de seu marido, o ex-ministro petista Paulo Bernardo, por considerar ilegal a busca, criando assim uma nova figura na Lei, que soa como gambiarra, da “casa com foro privilegiado”. Não ficou por aí: o time ainda manteve em liberdade Milton Lyra, um lobista ligado ao MDB que responde a inquérito por desvio de verbas e, ato contínuo, suspendeu a ação penal contra o deputado estadual Fernando Capez, do PSDB paulista, por delito na área de merenda escolar.

Agrados distribuídos a granel em todas as direções. Por essas e outras o País vai, lamentavelmente, assistindo a uma desmoralização do esforço anticorrupção. Viraram pilhéria as deliberações de juízes de instâncias inferiores e de procuradores que tentam barrar a escalada de falcatruas em série dos bandidos notórios. Esses abastados salafrários logo arrancam mais adiante um alvará de soltura. A política de porteira aberta da Segunda Turma tem trazido efeitos colaterais inevitáveis: provocou, por exemplo, uma corrida incessante de advogados de defesa para reorientar suas apelações àquele tribunal que já é considerado como o “Jardim do Éden” de condenados. Alcançar a graça de ser julgado por um Lewandovski, Toffoli ou Gilmar, na Segunda Turma do STF, parece significar, no entender desses advogados, um largo passo rumo à liberdade de seus clientes. De tal maneira que, nem bem saiu a deliberação sobre Dirceu, o jurista Cristiano Zanin, que representa o célebre detento Lula, entrou com novo recurso e pediu explicitamente que a peça fosse remetida e analisada por esse grupo. Passa assim a valer a escrita da loteria: dependendo de onde cair o caso o réu não tem com o que se preocupar, fazendo da Carta Magna uma tábula rasa, interpretada ao sabor das convicções de cada magistrado. Uma coisa é certa: sem unificar entendimentos, o Supremo segue à deriva. Deixa de discutir conceitos e doutrinas para se dedicar a meros acertos de patotas com diferenças inconciliáveis. Quem perde diante de tamanha aberração? O País, a Lava Jato e a Justiça.

Pensamento do Dia


A avassaladora crise político-econômica neste país

A praça da Liberdade estava com aspecto deplorável ao entardecer de 25 de junho. Deparei-me com uma rosa, dois canteiros de sofridas margaridas, poda mutiladora em meio à secura atroz, espelho d’água ao gosto do Aedes aegypti, grama destruída em diferentes pontos, coreto pichado e piso irregular. Um senhor comentou o abandono, dizendo que nunca tinha visto isso no mais importante ponto da cidade. É um triste retrato de uma metrópole decadente, onde estão predominando cabeamento aéreo em péssimo estado, pavimentação irregular, transporte coletivo caótico, milhares de moradias miseráveis, multidão de desempregados, insegurança em qualquer ambiente, insuficiente rede pública de saúde e professores em dificuldades financeiras por salários atrasados.

A capital mineira vive esse drama, mas outras cidades enfrentam problemas maiores, porque o país passa pela pior crise político-econômica de sua história, cavada por políticos nocivos à comunidade. Eles impõem seus interesses pessoais, expropriando o patrimônio nacional para enriquecimento e fomento de seu projeto de poder que mira a preservação de sua linhagem na administração pública e opressão de um povo ignorante, faminto e ocioso; portanto, vulnerável a discursos demagógicos e propenso à venda de seu voto por algumas migalhas.


O resultado tem sido incontornável desconfiança dos contribuintes em relação à lisura dos agentes públicos, especialmente dos ministros do Supremo Tribunal Federal, diante da profusão de habeas corpus expedidos, leniência para lidar com réus poderosos, frequentes opiniões fora dos autos, manipulação de leis com endereçamento favorável a alguns investigados, anulação de decisões soberanas do Poder Legislativo e incansável atendimento a certos pacientes, enquanto permanece a lenta tramitação de processos dos cidadãos comuns pelos diversos tribunais. Consolida, assim, nossa impressão de que existe uma Justiça desigual, com tratamento privilegiado para figuras expressivas no universo político e na plutocracia, ao mesmo tempo em que prisioneiros pobres ficam esquecidos em masmorras medievais.

Os brasileiros estão desalentados, porque os Poderes misturam suas atribuições e criam esquemas de proteção mútua. Houve, por exemplo, regozijo suprapartidário, no Congresso Nacional, com a autorização para instalar uma CPI com intuito de disciplinar as investigações da Lava Jato. Parlamentares querem uma blindagem em torno de si e de seus inúmeros prepostos na administração pública. A credibilidade do presidente da República atingiu o fundo do poço. E ninguém tomará providência quanto às decisões absurdas de ministros sem lastro em escrutínio popular.

Nesse quadro adverso, vicejam candidatos aventureiros, sem serenidade para conduzir o país ao diálogo, à retomada de investimentos e às indispensáveis medidas para a plena modernização. Diante de tantos desmandos das autoridades, considerável parcela prefere manter-se distante do processo eleitoral, nublando o horizonte.

STF está deixando de ser solução para virar parte do problema

O STF ficou mais difícil de entender. Ou mais fácil. O ex-ministro José Dirceu é reincidente específico. Já foi condenado pelo mesmo crime no Mensalão e na Lava-Jato. O que leva o ministro Dias Toffoli a soltá-lo em um habeas corpus não pedido pela defesa? O ministro Ricardo Lewandowski interferiu numa área de competência do Executivo às vésperas do recesso, repetindo manobra já usada.

No dia 18 de dezembro de 2017, Lewandowski suspendeu a MP que adiava os aumentos do funcionalismo. O argumento do ministro não poderia ser menos jurídico: “Não se mostra razoável suspender um reajuste de vencimentos que, até cerca de um ano atrás, foi enfaticamente defendido por dois ministros e o presidente da República.” Ele é livre para não gostar de uma mudança de opinião do governo, mas isso não é base para a liminar. Como tomou a decisão um pouco antes do recesso, o governo teve que dar o aumento e a liminar virou decisão definitiva. Agora, em nova interferência em área do Executivo, proibiu a venda de qualquer estatal.


Na terça-feira, na 2ª Turma do STF, o ministro Dias Toffoli não poderia simplesmente acolher o argumento da defesa do ex-ministro José Dirceu porque ela confrontava a condenação em segunda instância. Toffolli, então, deu o que a defesa não pedira: habeas corpus de ofício, afirmando que havia “plausibilidade” no recurso sobre a dosimetria da pena. Ou seja, como pode ser que o STJ considere a pena alta, apesar de ele ter sido condenado em dois escândalos pelo mesmo crime, ficará em casa.

Quando Toffoli foi nomeado houve um debate entre especialistas sobre se ele estava ou não impedido de julgar o Mensalão. Pareciam mais convincentes os argumentos dos que consideravam que sim. Afinal, fora advogado do PT nas campanhas eleitorais de 1998, 2002 e 2006, depois trabalhara diretamente com José Dirceu, que como chefe da Casa Civil fazia a articulação política. O ex-ministro estava sendo julgado, e o que se discutia era exatamente caixa 2 nas campanhas do partido e a compra de apoio político no Congresso. Toffoli não se declarou impedido.

Na terça-feira, ele conduziu o voto dele na sessão da 2ª Turma que libertou José Dirceu. Votou também a favor do relator Gilmar Mendes no trancamento da ação contra o deputado tucano Fernando Capez. Alguém pode considerar que isso mostra isenção já que trata petistas e tucanos com a mesma régua. O problema é que um dos seus auxiliares até recentemente era o irmão de Capez.

Ele não é o único a não entender as regras de impedimento. O ministro Gilmar Mendes já foi várias vezes criticado pelo mesmo motivo. Talvez só saiamos desse impasse importando do futebol a estratégia de bandeirinhas. O que diriam os bandeiras das constantes reuniões do ministro Gilmar Mendes com integrantes do governo e parlamentares investigados da Lava-Jato? Impedimento.

Há quem diga, inclusive no STF, que tudo é culpa da presidente Cármen Lúcia porque ela não pautou as ações diretas de inconstitucionalidades (ADI) que estão nas mãos do ministro Marco Aurélio e poderiam definir o mérito da prisão após condenação em 2ª instância. Recapitulando: de 1941 até 2009 vigorou o entendimento da prisão após a confirmação da sentença por órgão colegiado. Em 2009, o STF reformou essa decisão num voto do ministro Eros Grau. Em 2016, ela foi discutida três vezes no Supremo — em um habeas corpus, em uma negativa de cautelar, e em um recurso extraordinário, relatado pelo ministro Teori Zavascki. Sempre foi a favor da prisão. Essa última tinha repercussão geral, ou seja, era vinculante. Os derrotados querem que o assunto seja votado até que um dia vençam. Em setembro, a ministra Cármen Lúcia sai da presidência e virá exatamente Dias Toffoli. Os condenados por corrupção têm esperança de dias melhores.

João Claudio Genu, do PP, é um reincidente específico também. Condenado no Mensalão e na Lava-Jato. Só na Lava-Jato ele já foi condenado 11 vezes. Foi solto. Talvez por seu caso ter sido julgado no mesmo dia de Dirceu, argumenta um especialista tentando achar alguma coerência no Supremo.

O país vive uma crise grave e múltipla. O Supremo com seus votos, suas contradições, com a agenda de alguns dos ministros, está virando parte da crise, em vez de ser solução.

Posteridade não é um lugar seguro para Temer

Fraco e impopular, Michel Temer costuma dizer que a história reconhecerá os avanços do seu governo, sobretudo na área econômica. O presidente demora a perceber que sua posteridade está sendo moldada não no Ministério da Fazenda, mas na Polícia Federal. Ao autorizar a terceira prorrogação do inquérito sobre portos, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, deu indicações de que a chapa de Temer, que já está quente, vai ferver.

Como de praxe, Barroso requisitou o parecer da Procuradoria-Geral da República sobre o pedido de prorrogação feito pelo delegado Cleyber Malta Lopes. Mas como o Judiciário estará em férias no mês de julho, o ministro liberou o delegado para aprofundar as diligências antes mesmo da manifestação da procuradora Raquel Dodge. Fez isso, segundo escreveu, por conta da “substanciosa petição” que recebeu da PF, “com um conjunto relevante de informações”.

Além de sinalizar que a PF obteve avanços notáveis, Barroso providenciou uma rara blindagem. Anotou em seu despacho que , pela lei, o delegado investiga Temer não pode ser retirado do caso senão por justificado interesse público. A blindagem não é gratuita. Além de apalpar extratos bancários de Temer, o delegado levou sua investigação para dentro da casa de Maristela Temer, a filha do presidente. De resto, ilumina os calcanhares de João Batista Lima, apontado como operador de propinas do presidente.

A posteridade tornou-se um lugar inseguro para Temer. Não há indicador econômico capaz de atenuar os dissabores de uma visita matutina dos rapazes da Polícia Federal.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Equívoco

Não, meu senhor,
Tenha paciência,
Diga coisa que preste.
Não eram os cavaleiros do Apocalipse
que assaltavam diligências
no Velho Oeste.
Raul Drewnick

Uma janela para o mundo

Escrevo de São Petersburgo. Afinal, qual é o papel do Brasil no mundo? É o de tipo de assunto do qual muitos correm. Já temos problemas demais no âmbito doméstico, por que não deixar isso com os especialistas, concentrando na violência urbana, na corrupção ou mesmo nas peripécias da campanha eleitoral?

Para quem está fora, mesmo por um curto período, o tema não é tão marginal assim. Impossível ignorar o drama dos refugiados. Só se fala nisso, crise nos Estados Unidos por causa da decisão de Trump, arestas entre Franca e Itália, crianças separadas da família, ciganos na mira da expulsão na Itália. É o tipo de problema sem solução em curto prazo, com viés de agravamento.

Se consideramos nossa fronteira setentrional, lá também essa questão se vem complicando ao longo dos três últimos três anos. Apesar de a Colômbia ser ainda o destino preferido, por causa do idioma comum, os refugiados da Venezuela entram em massa por Roraima. Essa presença já produziu alguns atritos entre o governo local e Brasília. Forçou a elaboração de um plano e jogou as Forças Armadas em parte de sua execução.

Nos Estados Unidos, mais precisamente na fronteira mexicana, vivemos um problema inverso, no momento em que Trump decide adotar normas mais rígidas para conter o processo migratório. Na verdade, talvez seja essa a contradição mais importante no mundo contemporâneo: a fluidez dos capitais e mercadorias ante as barreiras crescentes ao movimento da força de trabalho.

Todo país deve ter sua política sobre o tema. Mas é preciso admitir que soluções mais amplas dependem de muitos atores internacionais. Minha hipótese para uma política de longo prazo é de que países como Brasil e Canadá, por suas dimensões, poderiam representar um alívio para o tenso clima associado ao tema dos refugiados.


São países com condições diferentes. O Brasil vive uma crise econômica, tem quase 14 milhões de desempregados, na verdade, mal consegue cuidar dos seus, quanto mais receber gente de fora. No entanto, embora os países do norte já tenham esgotado sua capacidade de administrar o problema, não esgotaram seus recursos financeiros. Uma grande troca, escalonada no tempo, poderia liberar volumosos recursos para o Brasil receber refugiados.

Imagino que isso possa causar reações, até essa hipótese ser descartada por absurda, descabida, fora da realidade. Mas, no caso presente dos refugiados venezuelanos, o Brasil já está sobrecarregado e deveria pedir ajuda internacional. A partir dessa experiência, talvez fosse possível formular um plano estratégico de maior alcance, que atraísse grande volume de capitais e um novo impulso para o desenvolvimento.

Outro ponto que me levou a pensar no papel do Brasil foi ver imagens da população haitiana celebrando a vitória da seleção brasileira na Copa. Nos vídeos, a pequena multidão desfilava as cores verde e amarela, hasteou uma bandeira do Brasil e cantou o hino do Haiti.

Naturalmente, essa proximidade foi estimulada pela presença brasileira nas tropas de paz da ONU. Mas deixa bem claro que o futebol, não só nessa região do mundo, é um componente válido do chamado soft power que o Brasil, potencialmente, pode projetar no mundo.

Encontrei em Moscou um maestro que vivia na Sibéria, ouviu Manhã de Carnaval e, depois, algumas composições de Tom Jobim. Tornou-se um grande admirador da música brasileira e já gravou numerosos trabalhos inspirados nela para o público russo. Apesar da confusão e mesmo da desgraça que às vezes nos atinge no Brasil, não deixa de ser animador ser recebido com um sorriso de simpatia quando revelamos nosso país de origem.

Mesmo que minhas ideias sejam descartadas, a tese básica é de que precisamos voltar a discutir nosso papel no mundo: achar um pequeno espaço da campanha eleitoral para tratar do tema. Numa campanha americana é bem maior, porque o tamanho corresponde aos interesses e à presença deles no mundo. Numa dimensão mais modesta, seria interessante que os candidatos avaliassem os principais problemas internacionais, alinhassem nossas vantagens e desvantagens e formulassem um roteiro para o papel do Brasil no mundo.

Não há condições para tratar o País na campanha como uma ilha de prosperidade ou mesmo de decadência. Estamos ligados ao mundo e como a campanha começa logo depois da Copa, vale a pena introduzir essa dimensão no debate.

Na verdade, ela existe, sim, de forma fragmentária. Bolsonaro apoiou a saída dos Estados Unidos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ficaremos com a visão de Trump ou com a do conjunto de países que insistem no diálogo e na conciliação, mas dentro da ONU?

Ciro Gomes afirmou no programa Roda Viva que a oposição na Venezuela é fascista. Será isso mesmo? Como a vemos? Como vemos o governo Maduro, tão distante da democracia? Esses temas não definem quem ganha ou perde a eleição. Mas alguns votinhos, como o meu, pedem definições bem claras.

Pelo que vejo daqui, da Rússia, os debates entre candidatos serão mais raros no primeiro turno. A saída talvez seja consultar os programas, se é que já estão completos. Assim, ao lado de saúde, educação, segurança, talvez possamos incluir política externa.

A ausência de clareza sobre o tema não indica que os candidatos a deixarão de lado. Ao contrário, tendem a fazê-la de forma autocrática. Como acho que foi realizada, ao longo do tempo, a política do PT, focada nos países vizinhos com tendência bolivariana, gastando milhões com a ideia de projetar seu líder na América Latina e na África. E levando algum das empreiteiras.

São tópicos que fazem sentido na política da esquerda, no entanto, não foram discutidos amplamente. Os investimentos eram semi-clandestinos e só vieram à tona com a eclosão da Lava Jato. Só há um perdedor com o silêncio sobre o tema: a sociedade.

Eleitorado brasileiro perdeu a devoção pelo voto

A mais nova pesquisa do Ibope informa que 41% dos eleitores estão sem candidato. Os otimistas dirão que não há motivo para pessimismo, pois o grande número de desorientados constitui uma oportunidade fantástica para o surgimento de alguma orientação. Mas a grande verdade é a seguinte: há na praça pelo menos 20 presidenciáveis se oferecendo para assumir o volante. Mas nenhum deles oferece um itinerário capaz de seduzir o pedaço do eleitorado que não enxerga um rumo.


A redemocratização brasileira é uma conquista relativamente recente. Eu mesmo, com minha barba branca, votei pela primeira vez em 1989, já na bica de completar 28 anos. Gostaria de ter votado antes, mas a ditadura militar não deixou. Ainda me lembro da solenidade que envolvia o ritual do voto. O eleitor era movido pela suposição de que sua preocupação era útil. Isso acabou.

No momento, o eleitor se vê numa encruzilhada. Entre opções lamentáveis e impensáveis, ele prefere o exílio do voto inválido. Em três décadas de redemocratização, a devoção ao voto virou ceticismo, converteu-se em nojo e já vai se consolidando como um transtorno. Nunca foi tão fácil como agora, a apenas quatro meses da eleição, compreender a tese de Churchill —aquela segundo a qual a democracia é a pior forma de governo salvo todas as demais. Quase metade do eleitorado cogita jogar o voto pela janela. Trata-se de um direito. Viva a democracia!

Pensamento do Dia

Hadi Gülümse

A resiliência do atraso

É triste constatar que, na infindável batalha contra o atraso, avanços conquistados a duras penas podem ser facilmente revertidos. E que os retrocessos costumam ser bem mais rápidos do que os avanços. Sobram evidências de que a resiliência do atraso pode ser surpreendentemente alta. Num piscar de olhos, interesses nele encastelados podem reverter mudanças importantes que já pareciam consolidadas e restaurar o arranjo anterior em que se locupletavam. E quão bem encasteladas podem ser as forças que defendem a preservação do atraso...

Um bom exemplo é a extinção da contribuição sindical obrigatória. Durante três quartos de século, uma legislação fascista, criada na ditadura Vargas sob inequívoca inspiração da Carta del Lavoro de Benito Mussolini, obrigou indivíduos e empresas a contribuir compulsoriamente para o sustento de uma estrutura sindical artificial e hipertrofiada, em grande parte tomada por pelegos de todo tipo, que pouco ou nada faziam pelos interesses dos trabalhadores e das empresas que supostamente deveriam representar.


Em conjunto com a unicidade sindical, peça complementar do ferrolho fascista encrustado na legislação trabalhista, a contribuição sindical obrigatória vinha sendo o principal esteio do nefasto corporativismo brasileiro. Foi um grande avanço, portanto, ter o Congresso decidido, afinal, no ano passado, extinguir a contribuição sindical obrigatória.

Menos de um ano depois, contudo, os interesses contrariados, alinhados em emblemática coalizão de entidades laborais e patronais, estão agora mobilizados para tentar reverter na Justiça a extinção do imposto sindical. Querem que o Supremo Tribunal Federal declare que a medida aprovada pelo Congresso é inconstitucional.

Diante do pedido de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade que lhe coube apreciar, o ministro Edson Fachin entendeu que, tendo em vista a importância do tema, seria mais prudente abrir mão de uma decisão monocrática e encaminhar a questão ao colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal, para julgamento agendado para ontem, 28 de junho.

No ínterim, o ministro Edson Fachin deu a público um despacho, datado de 30 de maio de 2018, em que, ao longo de 35 páginas, socorre-se da opinião de doutrinadores eminentes e externa suas próprias considerações sobre a questão em pauta. 

Tendo de finalizar este artigo ainda sem saber o desfecho do julgamento agendado para ontem, me atenho à análise do despacho do ministro relator. O que chama a atenção no documento, antes de mais nada, é quão arraigada, entre boa parte dos doutrinadores citados, é a percepção de que a contribuição sindical obrigatória e a unicidade sindical são peças indissociáveis e cruciais do arranjo legado pelo Estado Novo. E de que não há como evoluir para um sistema baseado em contribuições facultativas sem desestruturar todo o sistema sindical do país.

Setenta e cinco anos depois de ter sido imposto à sociedade brasileira o arranjo sindical mussoliniano, parte importante da elite intelectual do país continua presa à mentalidade forjada pelo lado fascista do varguismo, incapaz de pensar fora da caixa e de perceber quão perversa tem sido a disfuncionalidade desse arranjo e a importância de desmontá-lo com urgência. Não se percebe que basta a extinção da contribuição sindical obrigatória para destravar o ferrolho que vem impedindo a modernização do regime sindical brasileiro. E que é o acirramento de contradições deflagrado por tal destravamento que deverá engendrar essa modernização.

Não chega a ser surpreendente que, em meio a essa incapacidade de percepção, o próprio ministro Fachin externe seu temor de que a extinção possa implicar “desfiguração do regime sindical constituído em 1988” e “frustração de toda uma gama de direitos fundamentais sociais, os quais de forma direta ou indireta, nele estão sustentados”.

Não há como ter ilusões. Nessa questão, a batalha contra o atraso promete ser dura e longa.
Rogério Furquim Werneck

Marginalidade suprema

(Gilmar Mendes) não tem mais nenhum pudor em defender corruptos. É uma pessoa absolutamente marginal que nós temos dentro no Supremo Tribunal Federal. Ele é um marginal
Modesto Carvalhosa

Troco uma centena de corruptos

Faríamos bom negócio se trocássemos cem corruptos por um STF novo. Com um Supremo formado por juristas de alto nível, juízes de verdade, conscientes de seus deveres e responsabilidades, ficaríamos livre desse flagelo que mantém a nação em sobressalto. E os corruptos acertariam suas contas com a sociedade porque é isso que acontece quando as instituições funcionam.

Não estou sendo sarcástico. É incalculável o montante dos prejuízos que esse STF vem causando à política, à moral do povo, à credibilidade das instituições, à segurança jurídica e à estabilidade necessária ao funcionamento regular da economia.

Não há adjetivo polido para a conduta do ministro Dias Toffoli na sessão de terça-feira da Segunda Turma do STF. A finalidade da sessão era abrir as portas da liberdade a um grupo de condenados da Lava Jato com culpa confirmada pelo TRF-4. No lote, para disfarçar, o ex-chefe José Dirceu. A ideia do trio Toffoli, Lewandowski e Gilmar era romper o entendimento colegiado da corte sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância.

abem todos os ministros, sabem os advogados dos presos, sabem os condenados, sabe o Brasil que prisão após o trânsito em julgado de sentença condenatória é sinônimo de liberdade eterna para quem roubou muito. E um tanto mais breve para quem roubou pouco. É uma liberdade alugada com dinheiro das vítimas. É, também, outro nome que se pode atribuir à impunidade, benefício mais importante para o criminoso do que o produto de sua atividade.

Na imagem e possibilidade mais remota e positiva, o STF é um conjunto de 11 pessoas que, segundo maiorias instáveis e seus bestuntos individuais, impõem ao país o convívio com o intolerável. Na imagem mais provável, a coisa fica muito pior. Só para lembrar: em 10 de março de 2015, o ministro que coordenou a operação no dia de ontem enviou ofício ao colega Lewandowski, que presidia o STF, manifestando interesse em ser transferido da Primeira para a Segunda Turma da Corte, ocupando a vaga aberta pela morte de Teori Zavaski. Com essa mudança, o grupo que, por mera coincidência, tinha a seu encargo os processos da Lava Jato ganhava a atual configuração.

Para quem não sabe, ou já esqueceu, quando José Dirceu era chefe da Casa Civil da Presidência da República, Dias Toffoli foi seu subchefe da área de Assuntos Jurídicos. Em junho de 2005, acusado por Roberto Jefferson de ser o mentor do mensalão, Dirceu foi obrigado a demitir-se do cargo, sendo substituído por Dilma Rousseff, a quem Toffoli, imediatamente, solicitou a própria demissão. O fato confirma a estreita ligação entre os dois. Quem disse que gratidão é sempre uma virtude?

Não é de hoje que o STF vem cuidando bem da criminalidade de jatinho. Em fevereiro de 2014, esse Supremo, com voto decisivo do recém-nomeado e gratíssimo ministro Roberto Barroso, decidiu que não houve formação de quadrilha no mensalão. Ela não só houve como jamais interrompeu suas atividades e agora tem tratamento VIP nesse STF que não nega os fatos, mas soluça com os condenados falando em “sanha punitivista”.
Percival Puggina

Goooooool....é dos planos de saúde!

Enquanto a plateia se distrai com a Copa do Mundo, os planos de saúde gritam gol. Os empresários do setor não foram à Rússia, mas receberam uma bola açucarada da ANS. No apagar das luzes do governo Temer, a agência editou normas que podem dobrar o gasto mensal dos segurados.

As mudanças foram publicadas ontem no “Diário Oficial”. Com a canetada, os planos ganharam aval para tomar mais dinheiro dos clientes. Quem ficar doente poderá ser obrigado a pagar 40% do valor dos procedimentos médicos. Além da mensalidade e dos remédios, é claro.

“Essas regras são tão abusivas que dá vontade de chorar”, desabafa Ligia Bahia, professora da UFRJ e doutora em Saúde Pública pela Fiocruz. “A agência reguladora deveria garantir que quem está doente seja atendido. O que estão fazendo é o contrário, e sem base legal”, afirma.


A ANS alega que protegeu os segurados ao estabelecer que a regra não valerá para tratamentos crônicos, como quimioterapia e hemodiálise. É uma meia verdade. Um doente com câncer não pagará a mais pela químio, mas poderá ser sobretaxado a cada vez que precisar de exames, fisioterapia ou apoio nutricional.

O mês da Copa tem sido lucrativo para os planos de saúde. No dia 5, o Senado aprovou a indicação de Rogério Scarabel Barbosa para o cargo de diretor da ANS. Ele era advogado de seguradoras antes de ganhar uma vaga na agência que deveria fiscalizá-las. O senador Randolfe Rodrigues comparou a nomeação à escolha de uma raposa para cuidar do galinheiro.

Na semana seguinte, a mesma ANS autorizou um reajuste de 10% nos planos individuais, uma goleada sobre a inflação oficial de 2,76%. O aumento chegou a ser barrado na Justiça. O desembargador Neilton dos Santos cassou a liminar na última sexta-feira, dia de Brasil x Costa Rica.

Em 2017, deputados ligados aos planos de saúde tentaram mudar a legislação para aumentar os lucros das empresas. As entidades de defesa do consumidor reagiram, e a proposta não chegou a ser votada.

Com o pacote de ontem, o governo encontrou um atalho para presentear as seguradoras sem depender da Câmara. Por mais que o lobby dos planos seja forte, os parlamentares ainda precisam do voto dos pacientes para se reeleger. Não é o caso do presidente da República.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Brasil te dá asas!


Furtar

Se furtar fosse uma virtude, nós, brasileiros, poderíamos nos gabar. Nem todos participamos dessa atividade, é certo, mas o empenho dos que a ela se dedicam em nosso país garante a cada um de nós, pela média, um número que causaria inveja aos mais célebres saqueadores antigos.

Ano após ano, furtar vem se mostrando uma arte, como o futebol, para a qual nascemos com inexcedível talento. Furtamos tão naturalmente quanto os italianos cantam e os holandeses cultivam tulipas.

Destacamo-nos tão maravilhosamente no furto que já há quem venha nos visitar não para ver os prodígios que Deus esparramou pelo Rio e Niemeyer concentrou em Brasília. Certos turistas acreditam que em contato com nosso ar possam absorver um pouco dessa nossa capacidade.


Nossa habilidade para sumir rapidamente com o dinheiro de um lugar e fazê-lo aparecer em outro, sob outro aspecto e sob outro dono, tem nos valido a primeira página de todos os jornais do planeta, se bem que esse assombro seja considerado entre nós (e aqui entra nossa conhecida modéstia) um exagero.

Há em nosso meio ladrões de todos os tipos e especialidades, a tal ponto que já há algum tempo o mundo reconhece nossa autossuficiência. Al Capone, se viesse hoje para cá com a intenção de se estabelecer, seria considerado um principiante.

Furtar vem aqui se expandindo tanto que ninguém estranhará se logo for baixada uma regulamentação (as existentes não bastam) para defender a sociedade.

Haverá de ser algo bem simples, com base em um princípio: furtemos todos; onde todos furtam, não se desenvolvem desentendimentos entre quem furta e quem é furtado.

E, para mostrar já a minha adesão ao sistema, nem lhes pedirei desculpas por ter furtado assim dois minutos daquilo que costuma chamar-se precioso tempo. Revidem!

Estado de exceção

Esqueça por um momento, se for possível, as ordens do STF que mais uma vez mandaram soltar José Dirceu, o príncipe do PT condenado a 30 anos e nove meses de cadeia por corrupção, além de outros dois colossos da vida pública nacional — um, do PSDB, é acusado de roubar merenda escolar e o outro é tesoureiro do PP. (Só isso: tesoureiro do PP. Não é preciso dizer mais nada.) Faz sentido um negócio desses? Claro que não. Não existe na história do Judiciário brasileiro nenhum réu condenado a mais de 30 anos de prisão por engano, ou só de sacanagem; dos outros dois nem vale a pena falar mais do que já se vem falando há anos. Mas a questão, à esta altura, já não é o que cada um deles fez ou é acusado de ter feito no mundo do crime — a questão é o que estão fazendo os ministros supremos que abriram a porta da cadeia para os três, e virtualmente para todo o sujeito que hoje em dia é condenado por roubar o erário neste país. Os ministros, pelo que escrevem nas suas sentenças, decidiram na prática que ninguém mais pode ser preso no Brasil por cometer crimes de corrupção. Tudo bem, mas há uma pergunta que terá de ser respondida uma hora qualquer: é possível existir democracia num país onde Gilmar Mendes, Antonio Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello, com a ajuda de algumas nulidades assustadas e capazes de tudo para remar a favor da corrente, decidem o que é permitido e o que é proibido para 200 milhões de pessoas?


Esse grupo de cidadãos está no STF por indicação, basicamente, de um ex-presidente da República hoje na cadeia, condenado a 12 anos por corrupção e lavagem de dinheiro, e por uma ex-presidente deposta por quase três quartos dos votos do Congresso. Foram aprovados para seus cargos pelo Senado Federal do Brasil — um dos ajuntamentos mais corruptos que se pode encontrar entre os seres humanos vivos no momento sobre a face da Terra. Jamais receberam um voto. Não respondem a ninguém. Como os loucos, os pródigos e os silvícolas, estão fora do alcance da lei — não podem ser acusados de nada, e muito menos punidos por qualquer ato que venham a cometer. Têm o direito de ficar nos seus cargos pelo resto da vida. Com essa proteção toda, garantida pela Constituição suicida em vigor no Brasil, deram a si próprios o poder de anular provas. Podem ignorar qualquer lei em vigor, recusar-se a aplicar normas legais, não aceitar decisões do Congresso e suprimir procedimentos judiciais. Dizem, é claro, que todas as suas sentenças estão de acordo com as leis — mas são eles, e só eles, que decidem o que a lei quer dizer. Se resolverem que dois mais dois são sete, nenhum brasileiro terá o direito de dizer que são quatro.

Os grandes gênios da nossa criatividade política, com os seus imensos estoques de sabedoria acumulada, devem ter alguma resposta para a pergunta feita acima. Talvez eles saibam como seria possível manter, ao mesmo tempo, o regime democrático e uma corte suprema povoada por Toffolis, Gilmares e Lewandowskis e dedicada a manter a corrupção como uma atividade legal no Brasil. Para os mortais comuns, está difícil de entender. Não existe em lugar nenhum do mundo, e nunca existiu, uma democracia em que o tribunal mais alto do Poder Judiciário faz uso da lei para impedir a prestação de justiça. Se as atuais leis brasileiras, como garantem os ministros a cada vez que soltam um ladrão de dinheiro público, os obrigam a transformar o direito de defesa em impunidade, então todo o sistema de justiça está em colapso; nesse caso, o que existe é um Estado de exceção, onde as pessoas que mandam valem mais que todas as outras. Contra eles, no entendimento de parte do STF, nenhum fato existe; nenhuma prova é válida. Os Toffolis, etc., conseguiram montar no Brasil um novo fenômeno: ao contrário da fábula narrada por Kafka em “O Processo”, o simples fato de alguém ser acusado perante o tribunal é a prova indiscutível de sua inocência.

'O meio campo é o lugar dos craques'

Nestes dias de Copa do Mundo, dá uma preguiça danada de acompanhar os movimentos da política nacional. Vive-se no ritmo da Copa e na disritmia da Política; a mesmice de sempre com os atores de sempre. Um conflito muitas vezes sem sentido; esculhambações de adversários e tentativas de trapaça no interior dos partidos. Enquanto que nos gramados da Rússia há sempre uma emoção: a Espanha que não deslancha, desespero de Portugal, a surpresa belga; o drama argentino. O Prometeu Acorrentado brasileiro.

Indignados de plantão, no entanto, vociferam contra Copa e a Seleção Brasileira. Ainda há quem use expressões como “ópio do povo”; a amaldiçoam a CBF — que merece —, secam Neymar, reclamam dos “preferidos” de Tite. Mais ainda: detestam analogias futebolísticas aplicadas à política. Gente de mau humor. Alguém já disse que “todo militante é um chato”.

Mas, desde que o futebol no Brasil é jogado tem sido assim. Misturar alhos e bugalhos, separar o joio do trigo e ficar com o joio parece ser o verdadeiro esporte nacional.


A Seleção não é não a “pátria de chuteiras”. Foi expressão de ocasião do genial Nelson Rodrigues, mas não deveria ter sobrevivido a ele. Pois, não é bem assim. No Brasil, não há exatamente esse negócio de “pátria”. Dizia Sérgio Buarque que os brasileiros são “desterrados em sua própria terra”. Capiaus sonhando com a Europa. Também faz parte da cultura. Lembrou Eduardo Giannetti em seu “paradoxo do brasileiro” que o brasileiro é sempre o outro.

Todavia, é inegável que a emoção do futebol pulsa, arde e aproxima — no mundo todo, não é só aqui. Talvez, seja das poucas formas de comunicação que abraça enorme quantidade de seres, em todo território. Talvez seja dos poucos assuntos que nivela barões e destituídos de toda sorte. A bola no pé, no Brasil, é meritocracia. O resto é sorte e desigualdade.

Não, a cultura brasileira não é só o Selecionado Nacional. Mas, ele faz parte dela. Junto com a música — que rádios e TVs deixaram de tocar — compõe nossas credenciais para o mundo. Nossa estética nascida do caldeirão de miscigenação étnica e cultural. No campo, somos negros, índios e brancos. Pelé, Garrincha, Zico, Taffarel; Neymar, Rivaldo, Romário, Ronaldos.

Sim, há questões mais importantes que o futebol, sem dúvida. O cotidiano, a sacanagem comezinha que precisa ser afastada, os problemas de relacionamento social; o desacerto das instituições, a inoperância do Estado, a ineficácia da política. Contudo, não se resolverá isto tudo purgando os demônios errados. Qual o problema com o futebol?

Certo que não se deve transformar o “craque” em herói nacional. O craque, hoje muito mais raro que no passado — pois o passado romantizava o talento natural ao mesmo tempo em que, hoje, a ciência do futebol, define a competitividade — é apenas um sujeito de notória habilidade específica, que raramente tem algo a dizer fora das quatro linhas. E o nosso problema fundamental está mesmo fora das quatro linhas.

Ainda assim, qual atividade permite xingar, urrar, exigir a perfeição quanto o futebol? Que explosão de energia é gritar “GOOOOLLLL” a plenos pulmões. Que alegria — momentânea, sim — é ser campeão. Campeões mundiais numa modalidade que não nos ofende, como a tantas em que despontamos como tristes recordistas planetários. Tristes recordistas.

Então, ao futebol o que for do futebol; à política o que for de seu. O país vive seu péssimo momento, mas está longe de ser o pior lugar do mundo. Há gente elegante e sincera também por aqui, que não pretende a tudo transformar numa questão de disputa política. No longo prazo, estaremos todos vivos se não sucumbirmos ao curto. “Bola na trave não altera o placar (…) o meio campo é o lugar dos craques”.
Carlos Melo 

Chega de debate

Claro que é preciso debater tudo com a sociedade, mas, caramba!, há quanto tempo estamos debatendo a reforma da previdência? Qual discussão é mais antiga, essa ou a reforma tributária? Francamente: nos dois casos, já está tudo dito, há números abundantes, todo mundo já deu suas opiniões. O que precisa agora, especialmente neste momento de eleições federais e estaduais, é definir propostas.


Em outras palavras, desconfie de todos os políticos que dizem: sim, a reforma da previdência é necessária, mas precisamos debater os termos com a sociedade. Mesmo admitindo que cabem mais algumas conversas, a obrigação das lideranças que buscam votos é iniciar o debate apresentando a sua proposta de solução.

Sem isso, estão subindo no muro, se esquivando e tentando passar a falsa impressão de que, no governo, vão buscar uma saída que satisfaça todo mundo. E que não existe.

Vale para a reforma tributária, outra veteraníssima. Tudo dito, façam suas opções, candidatos, e se comprometam perante o eleitor de modo explícito.

Vale também para a reforma trabalhista. Aqui, aliás, temos um caso mais claro de tentativa de embuste. O Congresso aprovou e o presidente sancionou uma reforma, justamente entendendo-se que o debate estava feito e decisões tinham de ser tomadas. Foram, mas sobram candidatos dizendo que a votação foi prematura e que é preciso rediscutir tudo de novo.

Por exemplo: seria preciso chamar as entidades de trabalhadores e de empregados para perguntar o que acham do imposto sindical obrigatório, que foi extinto. Ora, para que chamar essa turma? Eles vão dizer o quê? Que não querem o dinheiro fácil do imposto recolhido e distribuído pelo governo?

Do mesmo modo, de que adianta perguntar às pessoas se preferem se aposentar na faixa dos 50 anos ou só depois dos 65?

Argumentam marqueteiros: mas o candidato não se elege se disser que vai aumentar a idade de aposentadoria. Bom, então diga que não precisa de reforma da previdência e que vai pagar essa despesa com mais impostos, por exemplo. O embuste é dizer: vamos debater com a sociedade.

Vamos mal. Decisões cruciais demoram séculos e, quanto são tomadas … melhor rediscutir. Não acaba nunca.

Privilégios

Dia desses, o Superior Tribunal Eleitoral lançou edital para comprar equipamentos de “reabilitação fisioterápica”. Ou seja, uma academia, que ficaria à disposição dos funcionários. Isso, lógico, exigirá a contratação de fisioterapeutas.

Questionada, a direção do STE disse que outros tribunais superiores já tinham esse serviço e que se tratava de igualar benefícios.

De fato, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm essas academias, com fisioterapeutas de carreira, ganhando pouco mais de R$ 16 mil mensais.

Está bom?

Uma consulta às empresas de recursos humanos mostra que, no setor privado, os fisioterapeutas mais bem pagos estão em São Paulo: salário médio de R$ 3.700, teto de R$ 10 mil. No Brasil, média de R$ 2.200.

Não é uma questão de quem merece ou não. A questão é: pode o setor público pagar sete vezes mais para oferecer reabilitação gratuita a seus funcionários, que estão também entre os mais bem pagos?

Dirão: é coisa pequena, não é daí que vem o déficit das contas públicas.

Mas é daí, sim, especialmente nos governos estaduais e prefeituras. Nestes dois níveis de administração, a despesa com pessoal subiu sistematicamente desde os anos 90, até o ano passado, inclusive. Em 2017, esse gasto chegou a 9,1% do PIB. Muito, mas muito mais do que os investimentos. E todo dia saem notícias mostrando que esses níveis de governo estão quebrados, ou quase e, ainda assim, concedem aumentos salariais diversos.

Resumindo: todo mundo sabe que é preciso conter os gastos com o funcionalismo – uma questão econômica – e eliminar os privilégios – questão moral e política.

Não apenas aqui no Brasil, mas no mundo todo se sabe como funciona uma boa administração pública. É só copiar, em vez de propor um enganador debate sobre “soluções brasileiras”.

Tudo considerado, o setor público está quebrado. No governo federal, o principal gasto está na previdência (INSS e aposentadoria dos servidores e militares). Nos níveis estaduais e municipais, a despesa que mais cresce é com salários do pessoal.

Fato.

Desconfie do candidato que propor debates.

Xeque-mate na impunidade

Lula foi condenado à pena de 12 anos e 1 mês de reclusão em regime fechado por corrupção e lavagem de dinheiro, como o Brasil já sabe. O imóvel objeto do crime – o triplex do Guarujá – já foi leiloado e o condenado está cumprindo pena em Curitiba, nas dependências da Polícia Federal. Responde a outros seis processos criminais.

Entretanto, antes mesmo do desfecho do julgamento do habeas corpus pelo STF, que acabou por levá-lo à prisão, a presidente de seu partido anunciou que para prendê-lo seria necessário morrer gente. Não foi. Que se fosse preso haveria graves convulsões sociais por todo o País. Não houve.


Houve, sim, tentativas reiteradas de parlamentares ligados ao partido do condenado de ir visitá-lo na prisão em dia em que não há visitas aos presos, pretendendo-se instituir tratamento privilegiado no cumprimento da pena em detrimento dos demais presos, o que é lamentável neste momento histórico em que a Nação deseja, com todas as forças, extinguir o foro privilegiado – símbolo maiúsculo dessa cultura.

Do lado de fora do cárcere, vivemos uma gravíssima crise de representatividade política. O Brasil não confia na classe política que está aí e o desejo legítimo de fazer renovação democrática nas eleições foi barrado no debate da reforma política, mantendo-se em vigor um sistema que privilegia totalmente os detentores de mandatos.

O que apareceu na reforma foi a proposta de doações anônimas para campanha – que legitimaria doações do PCC e da Máfia – e a famosa emenda Lula, que pretendia proibir a prisão de políticos oito meses antes das eleições. O distritão de Vanuatu e do Afeganistão. E o fundão de 1,7 bi. Este, claro, foi aprovado.

Os coronéis, verdadeiros donos dos partidos políticos, decidem o destino das verbas do fundão eleitoral sem prestar contas de forma clara e rápida à sociedade. Candidatos ricos que se autofinanciam praticamente compram sua vaga na disputa, num aparente retorno à aristocracia grega. São recebidos de braços abertos porque isso permite que sobre muito mais dinheiro para os apadrinhados postulantes à reeleição que beijam a mão do chefão.

Mas, além de destinarem as verbas, os partidos também decidem quem poderá pretender ter o nome nas cédulas eleitorais, concedendo legenda, já que o STF decidiu ser inviável nestas eleições sequer pensar na possibilidade de candidaturas independentes, que foram objeto de cogitações variadas, fundadas no Pacto de San José da Costa Rica.

Em 2014, os rumorosos casos de José Riva, em Mato Grosso, José Roberto Arruda, no Distrito Federal, e Neudo Campos, em Roraima, ficaram famosos. Os três candidatos a governador (que estão presos por corrupção) eram ficha-imunda e mesmo assim, ao arrepio da lei, seus partidos lhes concederam legenda para disputarem as eleições.

A conta que os partidos fazem é tão simples quanto maquiavélica. A resposta final da Justiça Eleitoral a respeito do registro das candidaturas é dada 20 dias antes das eleições. A legenda sabe desde o início que o candidato é ficha-suja e o que se pretende é manter a candidatura, por sua popularidade, até o último instante possível, legalmente.

Quando a substituição tiver de ser feita, coloca-se alguém a quem se possa tentar transferir os votos, pela ligação com o candidato; e no susto e desinformado, o eleitor acaba votando. Nos três casos ficou evidente o ardil porque o caminho foi o mesmo: o nome em substituição foi o da esposa. Em Roraima a jogada funcionou e Suely Campos foi eleita.

Tenta-se o mesmo com Lula. Sabe-se que ele é ficha-suja, que a lei veda sua candidatura e que é tão certo como a luz do sol que seu nome não estará na cédula eleitoral em 7 de outubro. Mesmo assim, tenta-se transmitir a sensação de que o partido acredita ser possível reverter a condenação. Puro engodo. O partido sabe que é irreversível. Assim como os demais fichas-sujas. Nenhum deles poderá ser candidato nestas eleições.

Há até uma “vaquinha” pré-eleitoral em que pessoas estão fazendo depósitos para financiar pré-campanhas. Serve para dar aparência de viabilidade, mas os recursos não serão revertidos para a campanha dessas pessoas, uma vez que os registros serão indeferidos.

Penso também ser totalmente desaconselhável incluir qualquer nome de ficha-suja em enquete eleitoral, porque isso pode contribuir gravemente para a desinformação dos eleitores. Não existe discernimento suficiente aqui para separar o joio do trigo e a inclusão desses nomes pode modificar artificialmente as intenções de voto nos fichas-limpas. E pode-se danificar o jogo democrático.

A última novidade foi o surgimento de Lula como comentarista esportivo num programa do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, analisando a Copa por cartas deppois de assistir aos jogos pela TV que tem dentro da cela na cadeia.

Não há, obviamente, censura no Brasil, mas o fato é que o “comentarista” em questão é um presidiário e o que parece é que se pretende manter viva sua imagem e produz a percepção de estar ele próximo do povo, falando sobre o futebol, a paixão nacional, para criar um fato político.

Por outro lado, há quem tem tenha tido a sensação de que está ele trucando a Justiça, porque um encarcerado não leva a vida como qualquer outra pessoa. Não está sendo alvo de vingança social, mas deve cumprir sua pena privativa de liberdade. Não está livre e não é razoável permitir a iniciativa, até porque já há quem fale em admitir-se a absurda ideia de fazer campanha política de dentro da cela.

A prisão de Lula, assim como a de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Eduardo Azeredo, Marcelo Odebrecht, foi um momento histórico de supremacia do bem comum. Precisamos dar xeque-mate na impunidade.

Imagem do Dia

Granada (Espanha), George Owen 

Auto de resistência

Tem algumas histórias que o cinema conta melhor. A dos autos de resistência no Rio é uma delas. Em 20 anos, 16 mil pessoas, na maioria jovens negros, pobres e moradores de favelas, morreram atingidas por tiros disparados por policiais da PM do Rio, que alegaram legítima defesa. Esse drama cotidiano da Região Metropolitana da cidade, que em janeiro passado tirou a vida de cinco pessoas a cada dia, é o tema de um excelente documentário que estreia hoje. Trata-se de “Auto de Resistência”, dirigido por Natasha Neri e Lula Carvalho.

Os inúmeros casos relatados no filme já foram contados pela imprensa, de maneira mais detalhada pelos jornais, e de forma mais impactante pelas TVs. Embora tenham sido produzidas reportagens extensas e intensas sobre esta epidemia de auto de resistência no Rio, é muito difícil concorrer quando o assunto é esmiuçado em um documentário com uma hora e quarenta minutos de duração. E mais do que isso. Além do tempo, que permite ao espectador mergulhar na questão, o documentário conta as histórias pela ótica das vítimas e de seus familiares.

E a visão das vítimas é de dor e inconformismo. Se você ainda não se deu conta da enormidade deste drama, se convencerá rapidamente de como ele é repugnante ao assistir ao filme. Os casos se somam numa profusão tão intensa de imagens chocantes, lágrimas e desespero, que é impossível sair do cinema sem um embrulho no estômago e a sensação de que estamos diante de uma batalha que dificilmente será vencida. A violência da polícia com estes jovens e fracos moradores de favelas é revoltante. E o pior é que se trata da mesma polícia que morre como mosca no confronto com criminosos de verdade.

Auto de resistência, como você sabe, é a morte de um civil por um policial que dispara reagindo a uma agressão, a um tiro dado antes pela vítima. O filme de Natasha e Lula mostra com clareza assombrosa casos de homicídios por descuido, despreparo, arrogância ou simples instinto assassino de policiais que acabam de maneira fraudulenta recebendo o selo de auto de resistência. E, ao que tudo indica, esses são maioria.

Um grupo de mães que perderam seus filhos em casos fajutos de auto de resistência percorre todo o documentário buscando justiça, fazendo vigílias, participando de atos e indo a audiências públicas em tribunais sempre cobrando resultados. E este é outro drama de que o filme trata: 98% das mortes cadastradas pelos Boletins de Ocorrência policiais como autos de resistência que chegam a virar inquéritos são arquivados sem esclarecimento.

Três casos relatados na crônica policial, a chacina de Costa Barros; o assassinato do menino Alan e o tiro em seu amigo Chauan, em Honório Gurgel; e a fraude documentada de um auto de resistência no Morro da Providência são emblemáticos. Em Costa Barros, cinco jovens desarmados, de 16 a 25 anos, foram assassinados dentro de um carro com 111 tiros de fuzil. Alan morreu com uma rajada de tiros enquanto brincava em frente à sua casa. Ele filmou com seu celular a sua morte violenta.

Na Providência, uma moradora gravou em vídeo um PM colocando uma arma na mão de um menino morto e fazendo o disparo. A armação é evidente. No documentário, o policial que fez a fraude alega numa audiência no tribunal que a munição estava mal colocada na pistola e poderia disparar num movimento brusco ou com uma queda, então ele a colocou na mão da vítima “para não ferir ninguém, já que o garoto estava morto mesmo”. E o pior é que a mentira absurda colou.

Outra cena de guerra retratada no documentário é a ação de oito policiais da Core disparando de dentro de um helicóptero contra alvos no chão. Numa área urbanizada na entrada da Favela do Rola, em Santa Cruz, policiais disparam rajadas contra pessoas que correm nas ruas do bairro. Recarregam seus fuzis e disparam novamente. Qualquer um poderia ser atingido, bandido ou inocente, dada a distância entre os atiradores e os alvos. Visto no filme, parece um jogo de videogame, mas os corpos recolhidos depois não deixam dúvida sobre a cruel realidade. Seis pessoas morreram, os oito PMs foram inocentados.

O filme mostra, finalmente, um outro lado pouco conhecido da história, o papel dos advogados dos PMs. A advogada Fabíola Santoro, que aparece diversas vezes no filme, numa delas festejando a libertação dos PMs da Chacina de Costa Barros, faz piada durante uma audiência: “os moradores sempre dizem que o seu lugar é pacificado, dá até para pensar que é um resort”. Não é um resort, claro que não. A juíza Viviane Farias esclarece. “Isso jamais teria acontecido na Lagoa Rodrigo de Freitas”.
Ascânio Seleme

Dito popular


De cabeças do STF e de bundinha de neném, ninguém sabe o que vai sair

Cega, Justiça premia a culpa e pune a inocência

A única coisa que Heberson Lima de Oliveira tem em comum com José Dirceu de Oliveira e Silva é o sobrenome Oliveira. No mais, eles são bem diferentes. No mesmo dia em que o condenado Dirceu saiu da cadeia por ordem do STF, o STJ reconheceu o direito dos filhos de Heberson a uma indenização pela prisão indevida do pai. Dirceu pegou 30 anos e 9 meses por ter mordido propinas de R$ 15 milhões. Herberson, acusado injustamente de estupro, pede R$ 170 mil por ter ficado 2 anos e 7 meses em cana até o reconhecimento de sua inocência.


Diz a Constituição que todos os brasileiros são iguais perante a lei. Mas a Justiça se encarrega de acentuar as diferenças. Dirceu é tratado como inocente mesmo com prova em contrário. Heberson é do tipo que vai em cana como prova em contrário. Dirceu, condenado em segunda instância, contesta o tamanho do castigo e recebe o alvará de soltura. Heberson, inocentado, recebe do Estado um segundo castigo.

Na prisão, em 2003, Heberson foi estuprado por seis dezenas de detentos. Contraiu o vírus HIV. Passados 15 anos, luta contra a doença, a pobreza e o Estado do Amazonas, que guerreia na Justiça para não pagar a indenização. A cifra caiu na segunda instância de R$ 170 mil para R$ 135 mil. Mas o Estado recorreu aos tribunais de Brasília. O STJ mandou pagar. Os filhos de Heberson não receberão nenhum centavo. Falta ouvir o STF. Quando? Não há previsão. O Supremo tem mais o que fazer. No momento, alguns de seus ministros molham a toga soltando corruptos.

Problema no olho

Hoje ele lê com dificuldade. Está vendo a Copa do Mundo chegando perto da televisão. De longe, só enxerga metade do campo e, pior que isso, não vê o principal: a bola

Estava vendo mal e marcou uma consulta. Sempre havia enxergado bem, e, na sua família, a garantia de uma “boa vista” era reafirmada por seus pais e tios que haviam desaparecido com a casa no Ingá, em Niterói, fazia já algum tempo. Mas se a casa tinha virado edifício, o olhar continuava firme embora coberto por óculos que mudavam regularmente.

Zepelim entrando na Baía de Guanabara visto de Niterói
No consultório do Dr. Flávio Murakana, ele foi recebido com o carinho de sempre. O oculista sabia como o seu cliente prezava a glória de ver-para-ler e considerava o enxergar uma interpretação — aquele “second look” que nos faz rir ou chorar no cinema. Foi assim que o médico o conduziu à cadeira especial dos oftalmologistas.

Poltrona mágica que obriga a sair de si mesmo, por oposição à dos dentistas que invadem nossas almas pela boca. Já letras do oculista, pensou, são um modo primitivo de leitura. Se você nada enxerga, você é analfabeto! Afora isso, o conjunto é numa sequência horizontal e sem sentido, por contraste com a vida que tudo confunde e mistura. Aquilo que você pensava que era grande — por exemplo, o cara que você elegeu e achava grandioso, está na cadeia; os netinhos que ele pegou no colo transformaram-se em jovens admiráveis. Do mesmo modo, o amor de sua juventude pegou uma doença maior do que seu corpo, fazendo o seu coração bater numa mistura de letras, como aquelas sopas que sua mãe lhe administrava nos tempos de brincar no quintal e matar passarinho...

Sentado na boa poltrona ele estava tranquilo até perceber que o F era T; o U era V; e o R era B. Decepcionado, ele via embaçado o que antes era claro como as águas da Praia das Flechas, onde aprendeu a tomar banho de mar na Niterói de sua infância.

O oculista o conduziu a um gabinete semissecreto no qual jazia no centro uma espécie de binóculo preso a uma mesa, “Vamos ver o fundo do olho”, disse o médico.

Ele pensou, mas não disse: (vamos ver é o caralho! Você vai ver; eu vou enxergar e pensar no pior). E, de fato, ele olhou para um túnel negro e viu um pedaço dele mesmo que nada dizia, exceto a má noticia com a qual foi brindado pelo Dr. Murakana:

— Professor, o seu problema não é de óculos, é do olho.

— Como assim, do olho? De que olho?

— Dos olhos, professor, dos olhos... dos dois olhos! Respondeu o oculista.

— Então é sério?

Um mês depois, ele fica diante de um outro binóculo ainda mais sofisticado para ver uma enorme mancha vermelha que o remete ao planeta Marte, pois, do lado oposto da mesa e controlando tudo, há uma médica que, cheia de neutralidade espacial, manipula um computador, deixando ver dentro do túnel uma linha que oscila de cima para baixo e da esquerda para a direita. Enquanto isso ocorre, uma enfermeira segura firme sua testa de encontro a um anteparo, enquanto a doutora da Nasa determina que ele pisque ou abra bem o olho...

Em plena viagem sideral, intrometem-se lembranças infantis. Ele se recorda dos exames de vista que fazia na sua prima Lelilinha quando ia de um olho para o outro...

Um mês depois, o Dr. Flávio Murakana lhe diz solenemente:

— Professor, seu exame revela drusas na mácula. Felizmente são secas...

— Como vamos curá-las?

— Não têm cura! Eu sinto muito professor. É uma degenerescência devido à idade.

— Vai de mal a pior?

— Sim, mas a gente tenta segurar com doses de luteína e lentes prismáticas.

Hoje ele lê com dificuldade. Está vendo a Copa do Mundo chegando perto da televisão. De longe, só enxerga metade do campo e, pior que isso, não vê o principal: a bola, cuja leviana disposição de acompanhar todo mundo ele despreza.

O adolescente dentro dele que ainda pensa em conhecer o Frank e o Mann — sim, o Frank Sinatra e o Thomas Mann — está desapontado. Mas, velho que o contem com os olhos molhados, dá um riso discreto...

Essa crônica é para Zé Paulo Cavalcanti, que a inspirou e, otimista, acha que eu vejo o mundo quando, na realidade, eu só enxergo mesmo Niterói.
Roberto DaMatta 

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Imagem do Dia

A misteriosa palavra da Lei

Um grande político baiano, Otávio Mangabeira, dizia que, por mais que um fato fosse estranho, na Bahia havia precedente. No Brasil também: o único país do mundo a ter Justiça do Trabalho e Justiça Eleitoral criou também três Supremos Tribunais Federais. Um está na cabeça do ministro a quem o caso é entregue, e que prende e solta a seu critério. Outro é o do plenário, com os onze ministros que a Constituição determina. O terceiro é o das turmas, cada uma com cinco ministros. Sabe-se que o ministro Édson Facchin, ao ver que Lula seria solto pela Segunda Turma, decidiu levar seu caso ao plenário, que o julgará depois das férias. Lula fica preso até agosto ou setembro.

Mas a Segunda Turma decidiu ontem soltar seu braço direito, José Dirceu, que Lula chamava de “capitão do time”. O que um fez, o outro sabia. Os recursos de ambos tinham o mesmo fundamento: o STF autorizou a prisão de condenados em segunda instância, mas não a tornou obrigatória. Dirceu foi solto; e Lula, se o recurso fosse julgado pela Segunda Turma, talvez estivesse na rua em campanha, embora inelegível, pois é ficha suja. Com Dirceu, foi libertado também João Cláudio Genu, ex-tesoureiro do PP.

O Brasil tem ainda outro precedente: muitos réus escolhem quem irá julgá-los. Alguns dos condenados por tribunais regionais federais recorrem direto ao Supremo, sem passar pelo STJ. Mas não se pode dizer que sempre ganharão por 3x2. Ontem, por exemplo, Celso de Mello faltou. E foi 3x1.

Perda de tempo

Passei anos e anos procurando levar este país a sério para, no final das contas (e da vida), chegar à conclusão de que tudo não passou de uma estúpida perda de tempo
Joel Silveira, “Guerrilha noturna”