quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Metástase alcança da boca de fumo ao Planalto
Num instante em que Michel Temer intensifica sua “guerra” contra o crime organizado, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, autorizou a prorrogação por 60 dias do inquérito em que o presidente é investigado, mais uma vez, por suspeita de recebimento de propina, agora no caso dos portos. Supremo paradoxo: Temer combate o que chama de “metástase” do crime organizado e não pára de protagonizar processos que expõem o câncer da corrupção.
Nos últimos dias, Temer tomou gosto pelo hábito de subir no caixote para pronunciar entusiasmados discursos sobre o combate aos criminosos das favelas cariocas. Mas o presidente se irrita quando indagado sobre os crimes do poder. “Não volte nesse assunto”, pediu, ao ser perguntado sobre como ficaria a Lava Jato com o deslocamento da Polícia Federal para a pasta da Segurança Pública.
Coisas muitos estranhas acontecem no inquérito que apura a suspeita de recebimento de propina em troca de benefícios a empresas do setor portuário. A Polícia Federal e a Procuradoria, se desentendem. O delegado do caso pediu a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Temer. A procuradora-geral Raquel Dodge barrou a providência.
O ministro Raul Jungman mal assumiu a pasta da Segurança e já demitiu o diretor-geral da PF, Fernando Segovia, que insinuara no Carnaval que o inquérito contra Temer seria arquivado. Nesse contexto tóxico, a prorrogação das investigações contra o presidente da República serve para recordar aos brasileiros que o tumor é gigantesco. A metástase se estende da boca de fumo no pé do morro até o Palácio do Planalto.
Coisas muitos estranhas acontecem no inquérito que apura a suspeita de recebimento de propina em troca de benefícios a empresas do setor portuário. A Polícia Federal e a Procuradoria, se desentendem. O delegado do caso pediu a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Temer. A procuradora-geral Raquel Dodge barrou a providência.
O ministro Raul Jungman mal assumiu a pasta da Segurança e já demitiu o diretor-geral da PF, Fernando Segovia, que insinuara no Carnaval que o inquérito contra Temer seria arquivado. Nesse contexto tóxico, a prorrogação das investigações contra o presidente da República serve para recordar aos brasileiros que o tumor é gigantesco. A metástase se estende da boca de fumo no pé do morro até o Palácio do Planalto.
O andar de cima e a segurança
Um renomado cirurgião plástico de Nova York, republicano radical, acabara de informar que não poderia dar consultas na quarta-feira porque deveria atender policiais que precisavam de seus serviços. Esse médico é inimigo de qualquer coisa que o Estado faça, inclusive cobrar pedágios. Deu-se então o seguinte diálogo:
—Você tem muitas clientes latino-americanas, com maridos ricos que pensam parecido contigo.
—De jeito nenhum. Eu sou conservador. Vocês são fascistas.
O cirurgião opera policiais e seus familiares porque pertence a uma associação particular destinada a ajudá-los. Ele pode ter exagerado, mas acertou num ponto: o andar de cima latino-americano acha que pode cuidar da própria segurança, blindando-se, contratando guardas e tolerando milícias. No Rio há mais carros blindados do que em Nova York e deu no que se vê. Ou há segurança para todo mundo, ou não há para ninguém.
Em centenas de cidades americanas existem associações de amigos da polícia. Não passa pela cabeça de ninguém viver num lugar onde a polícia está sucateada material, financeira e socialmente.
Começando pelo Rio, pode-se sair da dança de perus bêbados na qual não há segurança porque não há polícia e não há polícia porque nem ela tem segurança.
O andar de cima pode abrir, sem fanfarra, uma discussão para criar um fundo de assistência aos policiais civis e militares. Funcionaria assim: empresas e pessoas físicas criariam um fundo destinado a financiar policiais com bônus de desempenho, complementos no acesso à casa própria e à educação. Poderia também complementar aposentadorias e oferecer serviços médicos especializados. Esse fundo ficaria anexo a uma associação à qual os policiais adeririam voluntariamente. Seria uma iniciativa estritamente privada, sem nada a ver com o governo, nada mesmo. Nem presenças simbólicas, eventos, convênios ou coisa parecida.
No dia zero, as portas estariam abertas a todos. A partir dessa hora, caso o policial fosse denunciado pelo Ministério Público por qualquer irregularidade, seria desligado da associação, perdendo os benefícios que porventura estivesse recebendo. Se uma denúncia do Ministério Público é pouco, pode-se pensar em outros mecanismos de correição. Na outra ponta, as empresas e os cidadãos abonados colocariam seu dinheiro no fundo por prazos fixos, renováveis a juízo do interessado. A engenharia financeira e jurídica dessa iniciativa pode ser desenhada em menos de uma semana.
A adesão e a permanência de um policial nessa organização viriam a ser um distintivo de boa conduta. Seria uma fórmula capaz de levar a Lei de Serpico para dentro das polícias civis e militares dos Estados brasileiros. Ela diz que "é o policial corrupto quem deve ter medo do honesto, e não o contrário."
Serpico (Al Pacino no filme) era um jovem agente da polícia de Nova York e denunciou esquemas de corrupção no seu serviço, mas deu em nada. Suas queixas apareceram na imprensa, e o prefeito da cidade criou uma comissão para estudar o assunto. Meses depois Serpico foi atraído para uma armadilha, tomou um tiro na cara e seus colegas deixaram-no agonizando. Um cidadão que viu a cena salvou-o. Isso aconteceu em Nova York em 1971.
Elio Gaspari
—Você tem muitas clientes latino-americanas, com maridos ricos que pensam parecido contigo.
—De jeito nenhum. Eu sou conservador. Vocês são fascistas.
O cirurgião opera policiais e seus familiares porque pertence a uma associação particular destinada a ajudá-los. Ele pode ter exagerado, mas acertou num ponto: o andar de cima latino-americano acha que pode cuidar da própria segurança, blindando-se, contratando guardas e tolerando milícias. No Rio há mais carros blindados do que em Nova York e deu no que se vê. Ou há segurança para todo mundo, ou não há para ninguém.
Em centenas de cidades americanas existem associações de amigos da polícia. Não passa pela cabeça de ninguém viver num lugar onde a polícia está sucateada material, financeira e socialmente.
Começando pelo Rio, pode-se sair da dança de perus bêbados na qual não há segurança porque não há polícia e não há polícia porque nem ela tem segurança.
O andar de cima pode abrir, sem fanfarra, uma discussão para criar um fundo de assistência aos policiais civis e militares. Funcionaria assim: empresas e pessoas físicas criariam um fundo destinado a financiar policiais com bônus de desempenho, complementos no acesso à casa própria e à educação. Poderia também complementar aposentadorias e oferecer serviços médicos especializados. Esse fundo ficaria anexo a uma associação à qual os policiais adeririam voluntariamente. Seria uma iniciativa estritamente privada, sem nada a ver com o governo, nada mesmo. Nem presenças simbólicas, eventos, convênios ou coisa parecida.
No dia zero, as portas estariam abertas a todos. A partir dessa hora, caso o policial fosse denunciado pelo Ministério Público por qualquer irregularidade, seria desligado da associação, perdendo os benefícios que porventura estivesse recebendo. Se uma denúncia do Ministério Público é pouco, pode-se pensar em outros mecanismos de correição. Na outra ponta, as empresas e os cidadãos abonados colocariam seu dinheiro no fundo por prazos fixos, renováveis a juízo do interessado. A engenharia financeira e jurídica dessa iniciativa pode ser desenhada em menos de uma semana.
A adesão e a permanência de um policial nessa organização viriam a ser um distintivo de boa conduta. Seria uma fórmula capaz de levar a Lei de Serpico para dentro das polícias civis e militares dos Estados brasileiros. Ela diz que "é o policial corrupto quem deve ter medo do honesto, e não o contrário."
Serpico (Al Pacino no filme) era um jovem agente da polícia de Nova York e denunciou esquemas de corrupção no seu serviço, mas deu em nada. Suas queixas apareceram na imprensa, e o prefeito da cidade criou uma comissão para estudar o assunto. Meses depois Serpico foi atraído para uma armadilha, tomou um tiro na cara e seus colegas deixaram-no agonizando. Um cidadão que viu a cena salvou-o. Isso aconteceu em Nova York em 1971.
Elio Gaspari
Nóis avacaia
A piada é antiga, dos tempos da crise-golpe de 63/64. Um dos engraxates do aeroporto Santos Dumont, enquanto lustrava os sapatos do freguês, reclamava do sufoco, do desemprego, da carestia… Velho comunista, o freguês aproveitou pra fazer seu proselitismo: Calma, o comunismo vem aí para acabar com isso tudo. Você sabe o que é o comunismo, né?
O engraxate balança a cabeça e manda essa: Num sei o que é isso não, mas se vié, nóis avacaia!
O comunismo desfez-se antes de chegar por aqui. Seguimos à risca o salve do engraxate. Avacaiar o que vier pela frente. Aí cabendo preceito constitucional, leis que não colam e a imensa cara de pau dos do andar de cima – a turma que capitaneia o faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Sem distinção de gênero, hierarquia ou classe social, a prática contagia. Pode vir do vizinho ou de autoridade constituída.
O Brasil tem 200 mil leis e uma capacidade infinita de avacalhar, esculhambar, escrachar. Quase tudo. E às claras. Saco sem fundo, onde cabem mentiras, manobras, chantagens, desmandos, crimes, bandos, facções, violência e miséria social. Devidamente noticiadas. Com a versão do lado A e do lado B. Assim, como se fosse sério.
A esculhambação oficializou o faz de conta. Atravessou o samba da legalidade? Manda um desmentido. Qualquer um vale. Se for papo torto, manda o jargão: “conversa republicana”. Fez coisinhas como deixar remédios essenciais vencerem pra ganhar no descarte e na recompra, via advogado, garanta por escrito: “Nossos procedimentos seguiam as mais rígidas normas de governança”.
Colou? Não colou? Não tem a menor importância. Ultrapassamos o vai que cola. Fase vencida. A regra agora é sem regras.
Veio a telefonia celular, esculhambamos. Veio o call center, esculhambamos. Veio a companhia aérea de baixo custo, esculhambamos. O custo é alto, o serviço baixo. Recorde de queixas no Procon? Ah vá! Qual a consequência disso? Ne-nhu-ma. É o que temos para oferecer. Paga e não chia.
Rapidinho, esculhambamos o Uber, por exemplo. Chegou ótimo. Não levou dois anos para perder a estrela de excelência no serviço. Entrou na seara da sorte. Ora um bom carro, um bom motorista. Ora nada disso. Carro cheiroso, balinha e água. Lembra? Só quando Deus ajuda.
Vez por outra, quando a avacalhação é muita, Ele até dá uma força. Foi Ele – só pode ter sido – quem afundou a lancha da avacalhação completa no Ministério do Trabalho que ameaçava ter no comando uma condenada em quê mesmo? Causa trabalhista. Duas, para não deixar dúvida.
Foram 48 dias com o Ministério à deriva. Tempo mais de suficiente para demonstrar a importância que as regulações do trabalho têm nos dias de hoje. Avacaimos. Enquanto isso, tchan, tchan, tchan, tchan, o governo, no modo egípcia, mandou tirar a faixa presidencial do boneco vampiro da Unidos do Tuiuti, a (escola de samba) vice-campeã do Carnaval carioca. Bora levar o sofá pra fora da avenida, que estamos gestando uma intervenção federal no estado. E, consequentemente, um novo ministério. Agora vai!
O general interino da Defesa? Diz que já se enroscou no TCU. Mas a sentença final diz que foi de boa-fé. Pronto. Bora ao próximo causo. Vai que é fake news?
Fake News? Nova rendosa modalidade de esculhambar em meio eletrônico. Rapidinho. Eficiente. A ignorância ajuda muito. Deixa rolar a eleição pra ver só o poder de fogo das news fakes. Avacaiação made in Rússia que elegeu até o chefe do mundo.
Por aqui, houve tempo de tudo acabar em samba. Depois acabava em pizza. O nóis avacaia fermentou tanto que rende enredo – historinha contada passo a passo, – pra Escola de Samba. Dispensa pesquisa. Só olhar em volta e relatar a bagunça. Foi nesse embalo que, no sambódromo do Rio de Janeiro, Tuiuti e Beija-Flor, a campeã, alegorizaram a desgraceira nacional. Violência, corrupção, intolerâncias, impostos excessivos, abandono de doentes, bala perdida, assaltos – de colarinho ou camiseta regata -, facções criminosas – presas e soltas – vieram em alas de ratos com malas e bolsos cheios de dinheiro, autoridades vampiras em trajes de gala, indignos monstros devoradores de esperança.
No menu da avacalhação, os patos amarelos da FIESP vieram como marionetes. Não são? Com fantasias de madamas e senhores de fino trato o samba carnavalizou, avenida afora, o bando dos guardanapos na cabeça que saqueou o Rio de Janeiro.
Nada era fake news.
Cuíca e tamborim choraram o Brasil avacaido de dar dó, onde pouca coisa merece confiança. Sem distinguir o oficial do oficioso, nosso momento desconfiança alcança dos rótulos de alimentos industrializados aos procedimentos e sentenças judiciais. Será? É o mote. Suspeitamos, inclusive, do fundo do poço. Cada vez que, parece, chegamos nele, nova modalidade de avacalhar faz mais funda a cacimba do Brasil.
Fosse o general chefe da segurança do Rio de Janeiro nem temia Comissão da Verdade. O que mete medo mesmo é nossa progressiva capacidade de avacaiar.
Tânia Fusco
O engraxate balança a cabeça e manda essa: Num sei o que é isso não, mas se vié, nóis avacaia!
O comunismo desfez-se antes de chegar por aqui. Seguimos à risca o salve do engraxate. Avacaiar o que vier pela frente. Aí cabendo preceito constitucional, leis que não colam e a imensa cara de pau dos do andar de cima – a turma que capitaneia o faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Sem distinção de gênero, hierarquia ou classe social, a prática contagia. Pode vir do vizinho ou de autoridade constituída.
A esculhambação oficializou o faz de conta. Atravessou o samba da legalidade? Manda um desmentido. Qualquer um vale. Se for papo torto, manda o jargão: “conversa republicana”. Fez coisinhas como deixar remédios essenciais vencerem pra ganhar no descarte e na recompra, via advogado, garanta por escrito: “Nossos procedimentos seguiam as mais rígidas normas de governança”.
Colou? Não colou? Não tem a menor importância. Ultrapassamos o vai que cola. Fase vencida. A regra agora é sem regras.
Veio a telefonia celular, esculhambamos. Veio o call center, esculhambamos. Veio a companhia aérea de baixo custo, esculhambamos. O custo é alto, o serviço baixo. Recorde de queixas no Procon? Ah vá! Qual a consequência disso? Ne-nhu-ma. É o que temos para oferecer. Paga e não chia.
Rapidinho, esculhambamos o Uber, por exemplo. Chegou ótimo. Não levou dois anos para perder a estrela de excelência no serviço. Entrou na seara da sorte. Ora um bom carro, um bom motorista. Ora nada disso. Carro cheiroso, balinha e água. Lembra? Só quando Deus ajuda.
Vez por outra, quando a avacalhação é muita, Ele até dá uma força. Foi Ele – só pode ter sido – quem afundou a lancha da avacalhação completa no Ministério do Trabalho que ameaçava ter no comando uma condenada em quê mesmo? Causa trabalhista. Duas, para não deixar dúvida.
Foram 48 dias com o Ministério à deriva. Tempo mais de suficiente para demonstrar a importância que as regulações do trabalho têm nos dias de hoje. Avacaimos. Enquanto isso, tchan, tchan, tchan, tchan, o governo, no modo egípcia, mandou tirar a faixa presidencial do boneco vampiro da Unidos do Tuiuti, a (escola de samba) vice-campeã do Carnaval carioca. Bora levar o sofá pra fora da avenida, que estamos gestando uma intervenção federal no estado. E, consequentemente, um novo ministério. Agora vai!
O general interino da Defesa? Diz que já se enroscou no TCU. Mas a sentença final diz que foi de boa-fé. Pronto. Bora ao próximo causo. Vai que é fake news?
Fake News? Nova rendosa modalidade de esculhambar em meio eletrônico. Rapidinho. Eficiente. A ignorância ajuda muito. Deixa rolar a eleição pra ver só o poder de fogo das news fakes. Avacaiação made in Rússia que elegeu até o chefe do mundo.
Por aqui, houve tempo de tudo acabar em samba. Depois acabava em pizza. O nóis avacaia fermentou tanto que rende enredo – historinha contada passo a passo, – pra Escola de Samba. Dispensa pesquisa. Só olhar em volta e relatar a bagunça. Foi nesse embalo que, no sambódromo do Rio de Janeiro, Tuiuti e Beija-Flor, a campeã, alegorizaram a desgraceira nacional. Violência, corrupção, intolerâncias, impostos excessivos, abandono de doentes, bala perdida, assaltos – de colarinho ou camiseta regata -, facções criminosas – presas e soltas – vieram em alas de ratos com malas e bolsos cheios de dinheiro, autoridades vampiras em trajes de gala, indignos monstros devoradores de esperança.
No menu da avacalhação, os patos amarelos da FIESP vieram como marionetes. Não são? Com fantasias de madamas e senhores de fino trato o samba carnavalizou, avenida afora, o bando dos guardanapos na cabeça que saqueou o Rio de Janeiro.
Nada era fake news.
Cuíca e tamborim choraram o Brasil avacaido de dar dó, onde pouca coisa merece confiança. Sem distinguir o oficial do oficioso, nosso momento desconfiança alcança dos rótulos de alimentos industrializados aos procedimentos e sentenças judiciais. Será? É o mote. Suspeitamos, inclusive, do fundo do poço. Cada vez que, parece, chegamos nele, nova modalidade de avacalhar faz mais funda a cacimba do Brasil.
Fosse o general chefe da segurança do Rio de Janeiro nem temia Comissão da Verdade. O que mete medo mesmo é nossa progressiva capacidade de avacaiar.
Tânia Fusco
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Por que tantos mimos de Temer aos militares?
Multiplicam-se no Governo Temer os mimos às Forças Armadas. A que se deve essa volta dos militares? Depois de quase 20 anos, por exemplo, um general do Exército é novamente chefe das forças militares, como ministro da Defesa. Tinha sido Fernando Henrique Cardoso quem, em seu segundo mandato, em 1999, pôs um civil, o senador Élcio Álvares, à frente dos militares. Desde então, esse ministério não voltou a ter um militar no seu comando.
Também pela primeira vez depois da ditadura, o Governo Temer ordenou, com o apoio do Congresso, uma intervenção federal com liderança militar em um Estado, o Rio de Janeiro, outorgando poderes de governo a um general na delicada questão da segurança pública. E pela primeira vez um ex-militar, Jair Bolsonaro, disputará as eleições presidenciais com boas chances de chegar ao segundo turno. Foi ele quem antecipou que, se ganhar as eleições, quatro ministérios importantes do seu Governo ficarão nas mãos de outros tantos generais de “quatro estrelas” do Exército.
Eu me perguntava em 11 de novembro de 2017, nesta mesma coluna, o que o Exército estava insinuando com os vários artigos de generais publicados na imprensa nacional exortando a que as eleições presidenciais de outubro próximo “sejam tranquilas”. Ninguém coloca em dúvida a lealdade da hierarquia militar no Brasil, enxertada democraticamente no jogo político. Mas tampouco se pode esquecer a preocupação que o generalato revela com a situação de caos que vive o país, enfrentando o maior escândalo de corrupção da democracia e o desprestígio da classe política, e às vésperas de eleições presidenciais com tantas incógnitas, em meio a um país dividido e irritado.
Antes que Temer chegasse ao Governo, os militares já demonstravam certa inquietação. Observou-se isso, por exemplo, durante todo o processo do impeachment de Dilma Rousseff, uma presidenta com quem as Forças Armadas tiveram sempre uma relação silenciosa, mas difícil, por seu passado de guerrilheira, torturada durante a ditadura. Os militares nunca confiaram nela, enquanto dialogavam com seu vice-presidente, Michel Temer.
Hoje a pergunta que se impõe é se essa presença e até a colaboração cada vez maior do Exército no Governo Temer se deve a essa especial boa relação que o político sempre manteve com os militares, ou se, como chegam a insinuar alguns, o presidente possui informações que não chegam à opinião pública sobre o mal-estar que reinaria em alguns círculos importantes do Exército, enquanto nas ruas, nas manifestações, vimos gente pedindo uma intervenção federal. Temer poderia estar dando mais relevo à presença do Exército em seu Governo porque conhece de perto sua lealdade com a democracia e seu desejo de participar mais ativamente na solução dos problemas do país, ou estaria tentando ganhar os militares ao lhes oferecer uma maior margem de manobra, já que conhece de perto a agitação que reina nos quartéis.
Nos próximos meses ficaremos sabendo se esses mimos ao Exército se devem apenas às boas relações de Temer com os militares, ou se por trás disso pode existir algum outro interesse político pessoal dele. Talvez esteja convencido de que, depois da ditadura, desapareceu qualquer perigo de insurreição militar, e que, portanto, os generais devem ser vistos como uma força democrática que pode ajudar a resolver os problemas do país. Ou poderia ser que o presidente, ao abrir as portas do Governo aos militares, esteja enviando a mensagem de que as Forças Armadas andam inquietas com os rumos do país e podem ter começado a soar os sinos de alerta de uma instituição com a qual é preferível colaborar para evitar tentações piores.
Também pela primeira vez depois da ditadura, o Governo Temer ordenou, com o apoio do Congresso, uma intervenção federal com liderança militar em um Estado, o Rio de Janeiro, outorgando poderes de governo a um general na delicada questão da segurança pública. E pela primeira vez um ex-militar, Jair Bolsonaro, disputará as eleições presidenciais com boas chances de chegar ao segundo turno. Foi ele quem antecipou que, se ganhar as eleições, quatro ministérios importantes do seu Governo ficarão nas mãos de outros tantos generais de “quatro estrelas” do Exército.
Antes que Temer chegasse ao Governo, os militares já demonstravam certa inquietação. Observou-se isso, por exemplo, durante todo o processo do impeachment de Dilma Rousseff, uma presidenta com quem as Forças Armadas tiveram sempre uma relação silenciosa, mas difícil, por seu passado de guerrilheira, torturada durante a ditadura. Os militares nunca confiaram nela, enquanto dialogavam com seu vice-presidente, Michel Temer.
Hoje a pergunta que se impõe é se essa presença e até a colaboração cada vez maior do Exército no Governo Temer se deve a essa especial boa relação que o político sempre manteve com os militares, ou se, como chegam a insinuar alguns, o presidente possui informações que não chegam à opinião pública sobre o mal-estar que reinaria em alguns círculos importantes do Exército, enquanto nas ruas, nas manifestações, vimos gente pedindo uma intervenção federal. Temer poderia estar dando mais relevo à presença do Exército em seu Governo porque conhece de perto sua lealdade com a democracia e seu desejo de participar mais ativamente na solução dos problemas do país, ou estaria tentando ganhar os militares ao lhes oferecer uma maior margem de manobra, já que conhece de perto a agitação que reina nos quartéis.
Nos próximos meses ficaremos sabendo se esses mimos ao Exército se devem apenas às boas relações de Temer com os militares, ou se por trás disso pode existir algum outro interesse político pessoal dele. Talvez esteja convencido de que, depois da ditadura, desapareceu qualquer perigo de insurreição militar, e que, portanto, os generais devem ser vistos como uma força democrática que pode ajudar a resolver os problemas do país. Ou poderia ser que o presidente, ao abrir as portas do Governo aos militares, esteja enviando a mensagem de que as Forças Armadas andam inquietas com os rumos do país e podem ter começado a soar os sinos de alerta de uma instituição com a qual é preferível colaborar para evitar tentações piores.
A cidade murada e a cidade-selva
O banho de sangue do Rio de Janeiro é a ponta mais infeccionada da doença brasileira. É tudo uma cadeia de distorções de uma evidência ululante para usarmos a expressão de um carioca célebre. Esses 60 mil mortos nas ruas são o retrato mais enfático do custo de não se fazer reformas como a da Previdência que remete à resiliência do marajalato e seus “auxílios” imexíveis, que repousa na intocabilidade constitucionalmente garantida do funcionalismo que, por sua vez, está na base não só da corrupção que nos assola mas também do inchaço para além do suportável, não do estado que ainda faz falta aqui e ali, mas das folhas de pagamentos do estado.
É dessa cadeia que decorre a desenfreada metástese do favelão nacional.
Resumo, o Rio paga por 43.538 policiais mas só “leva”, de fato, 6.560. Com ligeiras variações esse é o padrão do serviço público nacional. As manobras de sabotagem todas a que o país tem assistido não são manobras de sabotagem à pessoa de Michel Temer, são manobras de sabotagem à reforma da previdência que é o fulcro dessa enorme distorção. Ninguém esta nem ai para o que Temer embolsou ou deixou de embolsar em campanhas políticas ou trocas de favores com potenciais financiadores de campanhas no passado. O que seus possíveis substitutos pretendem, ao vender ao eleitorado o passadéssimo “peixe” de que tudo vai bem menos pelas pessoas que controlam hoje “o sistema”, é continuar embolsando no futuro o que acusam Temer de ter embolsado no passado, coisa que estarão livres para fazer posto que não se propôs ou discutiu uma única reforma de base para impedir a continuação da impunidade para esse tipo de prática que – é a História Universal quem comprova – só cessa se e quando os eleitores conquistam poder de polícia contra detentores de mandatos executivos, legislativos e judiciários DEPOIS de eleitos. O que se visava e se conseguiu com as urdiduras do procurador Janot e seu fiel escudeiro Marcelo Miller, agora está cabalmente provado apesar da reticência com que se exibe essas provas em certas estações de televisão, não foi fazer justiça tardia contra Michel Temer, foi manter os “direitos adquiridos” dos marajás de continuar eternamente recebendo salários padrão Wall Street sem fazer força e deitando e rolando sobre as costas da miséria nacional impunemente. E isso se torna mais evidente a cada minuto com a batalha surda para evitar que chegue a bom termo também a intervenção federal na segurança publica do Rio.
As tentativas de cerco não se vexam de mostrar a que vêm. A ultima é a exigência de que os novos chefes das policiais civil e militar a serem substituídas pela intervenção na polícia mais ostensivamente corrupta do país tenham obrigatoriamente de ser arregimentados dentro das próprias coporações apodrecidas que se pretende sanear…
Antes e depois desta intervenção, aliás, não muda um milímetro o circuito dessas voltas em torno do nada. As tais 10 medidas contra a corrupção em torno das quais se fez tanto barulho tratavam essencialmente de dar mais poder a quem, de livre e espontânea vontade, nunca exerceu o poder que já tinha contra a corrupção. E também de aumentar as penas de crimes para os quais jamais se aplicou as penas que já existiam. Agora grita-se contra “tirar autoridade de governantes eleitos democraticamente” como jamais se gritou quando o STF faz a mesma coisa, o que acontece quase semanalmente, ou nas outras 12 vezes, nos últimos 10 anos, em que interessou ao marajalato chamar o Exército Brasileiro para patrulhar o Rio “pra inglês ver”. Por cima de tudo derrama-se agora a exigência de juristas e “especialistas” carimbados contra mandados coletivos de cerco e inspeção de residências que têm o óbvio objetivo de cortar a fuga a assassinos armados até os dentes sob a insinuação de que isso sublinharia o “preconceito” que põe todo favelado “sob suspeita” só porque é pobre. Nunca se viu, vai sem dizer, o tipo de fariseu que afirma isso sem corar por cima da cena da criança, da mulher gravida ou do soldado massacrados do dia, exigir que não se reviste quem quer que pretenda embarcar num avião nos dias de hoje porque isso viola o direito do passageiro de não ser objeto de suspeitas “infundadas” ou caracteriza preconceito contra “ricos” que usam esse meio de transporte. E, por fim, nega-se aos soldados até o direito de se defender contra o terrorista que eventualmente levar sua bomba pendurada no pescoço, o equivalente do traficante que sai à rua brandindo seu armamento de guerra. Querem os soldados do EB acenando de longe a tais figuras insuspeitas com mandados judiciais…
E o Pezão, “combinou” ou não com Temer essa intervenção “feita para inflar o cacife eleitoral do PMDB”? Vai que a pilha de cadáveres diminui…
Não é nada fora do padrão que nessas vésperas de final de era sociedades doentes apresentem fraturas de alienação. A Corte de Versalhes, a Cidade Proibida dos imperadores chineses, tudo faz lembrar Brasilia oferecendo seus “brioches” formalistas ao Brasil. A cidade murada ditando finas regras de etiqueta à cidade-selva que se afoga em sangue.
Nossa doença é política, nunca é demais repetir, e só poderá ser curada com os remédios da política. Sem uma intervenção geral do Brasil real no Brasil oficial; sem uma intervenção do povo na política com as armas do recall, do referendo e da iniciativa, acabaremos todos mortos antes que qualquer coisa que faça diferença mude, e não necessariamente de velhice.
É dessa cadeia que decorre a desenfreada metástese do favelão nacional.
A polícia do Rio, meca do marajalato, tem mais caciques do que índios. Ha 15 mil sargentos e apenas 14 mil soldados. Sobram coronéis mas a grande maioria está aposentada (aos 50 anos ou antes). Faltam capitães e tenentes e os que há são os reis do absenteísmo. A maioria das operações acaba sendo comandada por sargentos. Em 2014 o efetivo total da PM carioca era de 43.538 homens. Entre cedidos para outros orgãos e afastados por razões diversas sobravam 26.247 “aptos para o trabalho”. Mas com os turnos de 24 horas de trabalho por 72 de descanso, estes ficavam reduzidos a 6.560 por dia.
Resumo, o Rio paga por 43.538 policiais mas só “leva”, de fato, 6.560. Com ligeiras variações esse é o padrão do serviço público nacional. As manobras de sabotagem todas a que o país tem assistido não são manobras de sabotagem à pessoa de Michel Temer, são manobras de sabotagem à reforma da previdência que é o fulcro dessa enorme distorção. Ninguém esta nem ai para o que Temer embolsou ou deixou de embolsar em campanhas políticas ou trocas de favores com potenciais financiadores de campanhas no passado. O que seus possíveis substitutos pretendem, ao vender ao eleitorado o passadéssimo “peixe” de que tudo vai bem menos pelas pessoas que controlam hoje “o sistema”, é continuar embolsando no futuro o que acusam Temer de ter embolsado no passado, coisa que estarão livres para fazer posto que não se propôs ou discutiu uma única reforma de base para impedir a continuação da impunidade para esse tipo de prática que – é a História Universal quem comprova – só cessa se e quando os eleitores conquistam poder de polícia contra detentores de mandatos executivos, legislativos e judiciários DEPOIS de eleitos. O que se visava e se conseguiu com as urdiduras do procurador Janot e seu fiel escudeiro Marcelo Miller, agora está cabalmente provado apesar da reticência com que se exibe essas provas em certas estações de televisão, não foi fazer justiça tardia contra Michel Temer, foi manter os “direitos adquiridos” dos marajás de continuar eternamente recebendo salários padrão Wall Street sem fazer força e deitando e rolando sobre as costas da miséria nacional impunemente. E isso se torna mais evidente a cada minuto com a batalha surda para evitar que chegue a bom termo também a intervenção federal na segurança publica do Rio.
As tentativas de cerco não se vexam de mostrar a que vêm. A ultima é a exigência de que os novos chefes das policiais civil e militar a serem substituídas pela intervenção na polícia mais ostensivamente corrupta do país tenham obrigatoriamente de ser arregimentados dentro das próprias coporações apodrecidas que se pretende sanear…
Antes e depois desta intervenção, aliás, não muda um milímetro o circuito dessas voltas em torno do nada. As tais 10 medidas contra a corrupção em torno das quais se fez tanto barulho tratavam essencialmente de dar mais poder a quem, de livre e espontânea vontade, nunca exerceu o poder que já tinha contra a corrupção. E também de aumentar as penas de crimes para os quais jamais se aplicou as penas que já existiam. Agora grita-se contra “tirar autoridade de governantes eleitos democraticamente” como jamais se gritou quando o STF faz a mesma coisa, o que acontece quase semanalmente, ou nas outras 12 vezes, nos últimos 10 anos, em que interessou ao marajalato chamar o Exército Brasileiro para patrulhar o Rio “pra inglês ver”. Por cima de tudo derrama-se agora a exigência de juristas e “especialistas” carimbados contra mandados coletivos de cerco e inspeção de residências que têm o óbvio objetivo de cortar a fuga a assassinos armados até os dentes sob a insinuação de que isso sublinharia o “preconceito” que põe todo favelado “sob suspeita” só porque é pobre. Nunca se viu, vai sem dizer, o tipo de fariseu que afirma isso sem corar por cima da cena da criança, da mulher gravida ou do soldado massacrados do dia, exigir que não se reviste quem quer que pretenda embarcar num avião nos dias de hoje porque isso viola o direito do passageiro de não ser objeto de suspeitas “infundadas” ou caracteriza preconceito contra “ricos” que usam esse meio de transporte. E, por fim, nega-se aos soldados até o direito de se defender contra o terrorista que eventualmente levar sua bomba pendurada no pescoço, o equivalente do traficante que sai à rua brandindo seu armamento de guerra. Querem os soldados do EB acenando de longe a tais figuras insuspeitas com mandados judiciais…
E o Pezão, “combinou” ou não com Temer essa intervenção “feita para inflar o cacife eleitoral do PMDB”? Vai que a pilha de cadáveres diminui…
Não é nada fora do padrão que nessas vésperas de final de era sociedades doentes apresentem fraturas de alienação. A Corte de Versalhes, a Cidade Proibida dos imperadores chineses, tudo faz lembrar Brasilia oferecendo seus “brioches” formalistas ao Brasil. A cidade murada ditando finas regras de etiqueta à cidade-selva que se afoga em sangue.
Nossa doença é política, nunca é demais repetir, e só poderá ser curada com os remédios da política. Sem uma intervenção geral do Brasil real no Brasil oficial; sem uma intervenção do povo na política com as armas do recall, do referendo e da iniciativa, acabaremos todos mortos antes que qualquer coisa que faça diferença mude, e não necessariamente de velhice.
Big Brother Brasília
Luciano Huck para presidente? Ele diz que não. Acredito. Mas, se a decisão fosse outra, o Brasil estaria na vanguarda das democracias ocidentais —e Fernando Henrique Cardoso percebeu isso.
Anos atrás, na revista "Foreign Policy", FHC publicou um bom artigo sobre o futuro dos partidos políticos. "Futuro", vírgula: FHC não acreditava que houvesse futuro para os partidos. As tradicionais divisões ideológicas entre esquerda e direita já não tinham o mesmo significado —e a mesma militância.
E, além disso, a desilusão do eleitorado com o "establishment" faria emergir movimentos, grupos, "populistas" (termo meu, não de FHC) capazes de rivalizar com as estruturas decrépitas e assaz rígidas dos partidos. Fernando Henrique foi um visionário.
Claro: existe uma diferença entre mim e FHC. Para ele, essa nova realidade extrapartidária não parece ser um mal em si, sobretudo se os partidos não se souberem recriar para responder aos desafios do presente. O entusiasmo de FHC com Huck demonstra isso: o apresentador "areja", "põe em xeque os partidos", afirmou o ex-presidente.
Para mim, qualquer forma de política "carismática" representa sempre um perigo brutal para a sobrevivência das democracias liberais e das suas instituições. Mas admito que o "espírito do tempo" está mais próximo de FHC.
E mais próximo de Luciano Huck, já agora. Um exemplo: a revista "The Spectator" publicou um ensaio revelador sobre os possíveis candidatos democratas para as eleições norte-americanas de 2020. Não perco tempo com nomes menores. Prefiro avançar para os nomes maiores, que aliás surgem na capa da revista: Oprah Winfrey, Tom Hanks, George Clooney. O que têm os três em comum?
Sim, créditos progressistas imaculados. Mas o essencial não está na ideologia. Está na celebridade: os três são produtos da indústria de entretenimento. Exatamente como Donald Trump. A lógica é fulminante: se Donald Trump foi um produto midiático de sucesso, é preciso responder na mesma moeda.
Essa hipótese arrepia a minha costela platônica —e escrevo "platônica" no sentido próprio do tempo. Se existe uma ideia consensual na história da política moderna é a velha crença de que os melhores devem governar, como Platão defendia na sua "República".
Bem sei que a realidade nem sempre cumpre o ideal. Mas o ideal não existe para ser cumprido. Existe, quando muito, para que a realidade se aproxime dele.
Dito de outra forma: se a política é, ou deve ser, a mais nobre das artes, então espera-se de um governante algumas virtudes que exigem preparação e conhecimento.
Tudo isso está em causa nas "democracias midiáticas" em que vivemos. Não são os melhores que vencem; os melhores são aqueles que vendem. E vendem o quê? Uma imagem que corresponde às preferências voláteis e sentimentais dos consumidores.
Quando os democratas cogitam a hipótese de um George Clooney para a Casa Branca, ninguém perde um minuto para indagar as ideias do senhor. Ideias? Quais ideias? O que interessa é o sorriso, o olhar, o traje e dezenas de outras imbecilidades avulsas. As democracias midiáticas não querem políticos, mas estrelas pop.
E no futuro?
Não pretendo horrorizar ninguém. Mas imagino facilmente dois cenários.
O primeiro seria transformar os partidos políticos em organizações muito semelhantes às agências de modelos. Haveria o "estilista" ideológico --alguém responsável por um programa eleitoral mais ou menos clássico; e, depois, haveria o candidato-modelo para desfilar na "passerelle" dos comícios e dos debates.
O candidato-modelo seria apenas uma máscara, uma marionete do partido, com a única missão de apaixonar as massas. Uma vez eleito, ele continuaria o seu trabalho de fachada, deixando para os comuns mortais a mecânica burocrática do governo.
Outro caminho seria acabar com os partidos e, por exemplo, criar um show televisivo --um "Big Brother Brasília", digamos. Nesse caso, seriam as massas a escolher diretamente o presidente, depois de assistirem às suas proezas em sunga ou biquíni.
Hoje, olhamos para Donald Trump ou Oprah Winfrey como excentricidades. Dois nomes que representam o triunfo do entretenimento sobre a política.
Amanhã, quando o dilúvio chegar, ainda vamos olhar para trás e recordar Trump ou Oprah como os últimos grandes estadistas.
João Pereira Coutinho
Anos atrás, na revista "Foreign Policy", FHC publicou um bom artigo sobre o futuro dos partidos políticos. "Futuro", vírgula: FHC não acreditava que houvesse futuro para os partidos. As tradicionais divisões ideológicas entre esquerda e direita já não tinham o mesmo significado —e a mesma militância.
E, além disso, a desilusão do eleitorado com o "establishment" faria emergir movimentos, grupos, "populistas" (termo meu, não de FHC) capazes de rivalizar com as estruturas decrépitas e assaz rígidas dos partidos. Fernando Henrique foi um visionário.
Claro: existe uma diferença entre mim e FHC. Para ele, essa nova realidade extrapartidária não parece ser um mal em si, sobretudo se os partidos não se souberem recriar para responder aos desafios do presente. O entusiasmo de FHC com Huck demonstra isso: o apresentador "areja", "põe em xeque os partidos", afirmou o ex-presidente.
Para mim, qualquer forma de política "carismática" representa sempre um perigo brutal para a sobrevivência das democracias liberais e das suas instituições. Mas admito que o "espírito do tempo" está mais próximo de FHC.
E mais próximo de Luciano Huck, já agora. Um exemplo: a revista "The Spectator" publicou um ensaio revelador sobre os possíveis candidatos democratas para as eleições norte-americanas de 2020. Não perco tempo com nomes menores. Prefiro avançar para os nomes maiores, que aliás surgem na capa da revista: Oprah Winfrey, Tom Hanks, George Clooney. O que têm os três em comum?
Sim, créditos progressistas imaculados. Mas o essencial não está na ideologia. Está na celebridade: os três são produtos da indústria de entretenimento. Exatamente como Donald Trump. A lógica é fulminante: se Donald Trump foi um produto midiático de sucesso, é preciso responder na mesma moeda.
Essa hipótese arrepia a minha costela platônica —e escrevo "platônica" no sentido próprio do tempo. Se existe uma ideia consensual na história da política moderna é a velha crença de que os melhores devem governar, como Platão defendia na sua "República".
Bem sei que a realidade nem sempre cumpre o ideal. Mas o ideal não existe para ser cumprido. Existe, quando muito, para que a realidade se aproxime dele.
Dito de outra forma: se a política é, ou deve ser, a mais nobre das artes, então espera-se de um governante algumas virtudes que exigem preparação e conhecimento.
Tudo isso está em causa nas "democracias midiáticas" em que vivemos. Não são os melhores que vencem; os melhores são aqueles que vendem. E vendem o quê? Uma imagem que corresponde às preferências voláteis e sentimentais dos consumidores.
Quando os democratas cogitam a hipótese de um George Clooney para a Casa Branca, ninguém perde um minuto para indagar as ideias do senhor. Ideias? Quais ideias? O que interessa é o sorriso, o olhar, o traje e dezenas de outras imbecilidades avulsas. As democracias midiáticas não querem políticos, mas estrelas pop.
E no futuro?
Não pretendo horrorizar ninguém. Mas imagino facilmente dois cenários.
O primeiro seria transformar os partidos políticos em organizações muito semelhantes às agências de modelos. Haveria o "estilista" ideológico --alguém responsável por um programa eleitoral mais ou menos clássico; e, depois, haveria o candidato-modelo para desfilar na "passerelle" dos comícios e dos debates.
O candidato-modelo seria apenas uma máscara, uma marionete do partido, com a única missão de apaixonar as massas. Uma vez eleito, ele continuaria o seu trabalho de fachada, deixando para os comuns mortais a mecânica burocrática do governo.
Outro caminho seria acabar com os partidos e, por exemplo, criar um show televisivo --um "Big Brother Brasília", digamos. Nesse caso, seriam as massas a escolher diretamente o presidente, depois de assistirem às suas proezas em sunga ou biquíni.
Hoje, olhamos para Donald Trump ou Oprah Winfrey como excentricidades. Dois nomes que representam o triunfo do entretenimento sobre a política.
Amanhã, quando o dilúvio chegar, ainda vamos olhar para trás e recordar Trump ou Oprah como os últimos grandes estadistas.
João Pereira Coutinho
Poemas aos homens do nosso tempo II
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.
Hilda Hilst
O Brasil perde tempo
O economista britânico Thomas Malthus (1766-1834) ganhou fama por seus estudos sobre o crescimento da população e o aumento da produção de alimentos. Tendo vivido nos primórdios da Revolução Industrial, ele fez estudos com base em dados rigorosos e fundamentou a hipótese de que as populações humanas crescem em progressão geométrica enquanto a produção de alimentos aumenta em progressão aritmética. Ou seja, enquanto a produção de alimentos vai se somando a cada expansão da área plantada, as pessoas se multiplicam à medida que cada casal gera vários filhos que também geram vários filhos, fazendo que a população cresça proporcionalmente muito mais que a produção de alimentos.
Malthus afirmou que a humanidade estava diante do desafio de descobrir meios para elevar a produção a taxas elevadas e, ao mesmo tempo, diminuir a velocidade de crescimento da população. Ele também alertava para a necessidade de conseguir o crescimento econômico, o desenvolvimento da tecnologia e, principalmente, fazer isso sem perder tempo, pois a população não dá trégua e segue crescendo continuamente. Não conseguindo êxito nesse intento, o mundo veria crescer a fome, a miséria e o sofrimento. Ainda que suas previsões catastróficas não tenham se realizado, as teorias e as reflexões de Thomas Malthus são úteis até hoje, e servem de alerta para uma questão essencial: a superação da pobreza e a melhoria do bem-estar social exigem que o país evite a perda de tempo mergulhado em crises econômicas, crise política e crise social.
Malthus afirmou que a humanidade estava diante do desafio de descobrir meios para elevar a produção a taxas elevadas e, ao mesmo tempo, diminuir a velocidade de crescimento da população. Ele também alertava para a necessidade de conseguir o crescimento econômico, o desenvolvimento da tecnologia e, principalmente, fazer isso sem perder tempo, pois a população não dá trégua e segue crescendo continuamente. Não conseguindo êxito nesse intento, o mundo veria crescer a fome, a miséria e o sofrimento. Ainda que suas previsões catastróficas não tenham se realizado, as teorias e as reflexões de Thomas Malthus são úteis até hoje, e servem de alerta para uma questão essencial: a superação da pobreza e a melhoria do bem-estar social exigem que o país evite a perda de tempo mergulhado em crises econômicas, crise política e crise social.
De fato, o tempo é um fator relevante na determinação do crescimento econômico e da melhoria social. O Brasil pode ser analisado nos termos dos estudos de Malthus, pois o país chega a 2018 com elevados índices de pobreza e baixo padrão de vida. Assim, cabe compreender as razões que impediram a elevação do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos 70 anos a taxas suficientes para acabar com a miséria, a pobreza e a baixa renda por habitante. Uma dessas razões é a perda de anos e anos preciosos, ora por crises econômicas, ora por crises políticas, quando não pelas duas ao mesmo tempo.
Merecem registros pelo menos quatro momentos caracterizados por erros ou crises de alto porte que castigaram o Brasil e atrasaram o progresso. Primeiro, ainda que tenha sido uma época de importantes avanços, os anos 1950 foram marcados pela cultura do nacionalismo – pela qual o país fechou-se ao mundo, rejeitou o capital estrangeiro e não ampliou a participação no mercado internacional – e pela cultura do estatismo, que levou à criação de várias empresas estatais e gerou a crença de que o motor do desenvolvimento era o governo, e não o setor privado. O segundo momento foi a década de 1960, marcada pela exacerbação da inflação, convulsões sociais, crise política e implantação de um regime militar; o crescimento econômico foi retardado em pelo menos cinco anos.
O terceiro momento iniciou na segunda metade dos anos 70 e percorreu toda a década de 1980, que foram anos de crise do petróleo, aumento da inflação a partir de 1974, elevação da dívida externa, descontrole das contas do governo, hiperinflação nos governos Sarney e Collor, planos econômicos desastrosos e aumento da estatização de empresas, ao ponto de a década de 80 ser considerada uma década perdida. Os anos 90 deixaram marcas positivas, como o fim da inflação (com o Plano Real, em 1994), a reorganização do sistema bancário, a privatização de empresas, a Lei de Responsabilidade Fiscal e, já nos anos 2000, melhorias de alguns indicadores sociais, até o país desembocar, após 2010, na maior recessão de sua história ao lado da deterioração da moral pública refletida nos escândalos do mensalão, do petrolão, de outros escândalos de corrupção, fraudes, desvios e falência financeira do setor público.
Se consideradas apenas essas realidades – outras muitas devem ser levadas em conta –, tem-se aí um quadro de grave desperdício de tempo que ajuda a explicar por que o Brasil chega ao fim desta segunda década do século 21 com altos índices de miséria, pobreza, analfabetismo funcional, em suma, um país pobre e atrasado. O Brasil vem desperdiçando tempo de forma grave e retardando o desenvolvimento. A população brasileira saiu de 51,9 milhões em 1950 para 70,9 milhões em 1960, 94,5 milhões em 1970, 121,1 milhões em 1980, 169,8 milhões em 2000 e terminou 2017 com 208,5 milhões. Para contrariar Malthus, o setor que mais se desenvolveu nesse período foi o agronegócio em geral, e a produção de alimentos em particular. Mas isso não basta para que a população inteira disponha de uma renda por habitante capaz de lançar o país no clube das nações desenvolvidas, deixando a miséria e pobreza para trás. O país tem de parar de perder tempo, como tem feito até agora.
Merecem registros pelo menos quatro momentos caracterizados por erros ou crises de alto porte que castigaram o Brasil e atrasaram o progresso. Primeiro, ainda que tenha sido uma época de importantes avanços, os anos 1950 foram marcados pela cultura do nacionalismo – pela qual o país fechou-se ao mundo, rejeitou o capital estrangeiro e não ampliou a participação no mercado internacional – e pela cultura do estatismo, que levou à criação de várias empresas estatais e gerou a crença de que o motor do desenvolvimento era o governo, e não o setor privado. O segundo momento foi a década de 1960, marcada pela exacerbação da inflação, convulsões sociais, crise política e implantação de um regime militar; o crescimento econômico foi retardado em pelo menos cinco anos.
O terceiro momento iniciou na segunda metade dos anos 70 e percorreu toda a década de 1980, que foram anos de crise do petróleo, aumento da inflação a partir de 1974, elevação da dívida externa, descontrole das contas do governo, hiperinflação nos governos Sarney e Collor, planos econômicos desastrosos e aumento da estatização de empresas, ao ponto de a década de 80 ser considerada uma década perdida. Os anos 90 deixaram marcas positivas, como o fim da inflação (com o Plano Real, em 1994), a reorganização do sistema bancário, a privatização de empresas, a Lei de Responsabilidade Fiscal e, já nos anos 2000, melhorias de alguns indicadores sociais, até o país desembocar, após 2010, na maior recessão de sua história ao lado da deterioração da moral pública refletida nos escândalos do mensalão, do petrolão, de outros escândalos de corrupção, fraudes, desvios e falência financeira do setor público.
Se consideradas apenas essas realidades – outras muitas devem ser levadas em conta –, tem-se aí um quadro de grave desperdício de tempo que ajuda a explicar por que o Brasil chega ao fim desta segunda década do século 21 com altos índices de miséria, pobreza, analfabetismo funcional, em suma, um país pobre e atrasado. O Brasil vem desperdiçando tempo de forma grave e retardando o desenvolvimento. A população brasileira saiu de 51,9 milhões em 1950 para 70,9 milhões em 1960, 94,5 milhões em 1970, 121,1 milhões em 1980, 169,8 milhões em 2000 e terminou 2017 com 208,5 milhões. Para contrariar Malthus, o setor que mais se desenvolveu nesse período foi o agronegócio em geral, e a produção de alimentos em particular. Mas isso não basta para que a população inteira disponha de uma renda por habitante capaz de lançar o país no clube das nações desenvolvidas, deixando a miséria e pobreza para trás. O país tem de parar de perder tempo, como tem feito até agora.
O que faz o Brasil ter a maior população de domésticas do mundo
Se organizasse um encontro de todos os seus trabalhadores domésticos, o Brasil reuniria uma população maior que a da Dinamarca, composta majoritariamente por mulheres negras, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Segundo dados de 2017, o país emprega cerca de 7 milhões de pessoas no setor - o maior grupo no mundo. São três empregados para cada grupo de 100 habitantes - e a liderança brasileira nesse ranking só é contestada pela informalidade e falta de dados confiáveis de outros países.
Com um perfil predominante feminino, afrodescendente e de baixa escolaridade, o trabalho doméstico é alimentado pela desigualdade e pela dinâmica social criada principalmente após a abolição da escravatura no Brasil, afirmam especialistas.
Segundo dados de 2017, o país emprega cerca de 7 milhões de pessoas no setor - o maior grupo no mundo. São três empregados para cada grupo de 100 habitantes - e a liderança brasileira nesse ranking só é contestada pela informalidade e falta de dados confiáveis de outros países.
Com um perfil predominante feminino, afrodescendente e de baixa escolaridade, o trabalho doméstico é alimentado pela desigualdade e pela dinâmica social criada principalmente após a abolição da escravatura no Brasil, afirmam especialistas.
Jean-Baptiste Debret |
Um estudo feito em parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento, e a ONU Mulheres, braço das Nações Unidas que promove a igualdade entre os sexos, compilou dados históricos do setor de 1995 a 2015 e construiu um retrato evolutivo das noções de raça e gênero associadas ao trabalho doméstico.
Os resultados demonstram a predominância das mulheres negras ao longo do tempo.
Em 1995, havia 5,3 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil. Desses, 4,7 milhões eram mulheres, sendo 2,6 milhões de negras e pardas e 2,1 milhões de brancas. A escolaridade média das brancas era de 4,2 anos de estudo, enquanto que das afrodescendentes era de 3,8 anos.
Vinte anos depois, em 2015, a população geral desses profissionais cresceu, chegando a 6,2 milhões, sendo 5,7 milhões de mulheres. Dessas, 3,7 milhões eram negras e pardas e 2 milhões eram brancas. O nível escolar das brancas evoluiu para 6,9 anos de estudo, enquanto que, no caso das afrodescendentes, chegou a 6,6 anos.
"Ainda hoje o trabalho doméstico é uma das principais ocupações entre as mulheres, que são a maioria no setor em todo o mundo, cerca de 80%. No Brasil, permanece sendo a principal fonte de emprego entre as mulheres", diz Claire Hobden, especialista em Trabalhadores Vulneráveis da OIT.
Em 2017, o trabalho doméstico respondeu por 6,8% dos empregos no país e por 14,6% dos empregos formais das mulheres. No começo da década, esse tipo de serviço abarcava um quarto das trabalhadoras assalariadas.
O professor e pesquisador americano David Evan Harris é um dos especialistas que defendem que o cenário do trabalho doméstico no Brasil atual é herança do período escravagista.
"O Brasil foi um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão. Se olharmos para quem são as empregadas, veremos que elas tendem a ser pessoas de cor", diz o acadêmico, formado pela Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA, e mestre pela USP.
"Analisando cidades como Rio e São Paulo, percebe-se que as domésticas muitas vezes são pessoas que migraram do Norte e Nordeste para o Sul e Sudeste. E, como se sabe, o Nordeste é para onde boa parte das populações de escravos foi originalmente trazida. Há uma situação de dinâmica geográfica, histórica e social que continua até hoje."
Segundo a historiadora e escritora Marília Bueno de Araújo Ariza, mesmo após a abolição, em 1888, mulheres e homens negros continuaram sendo servos ou escravos informais, o que também deixou seu legado no mercado de trabalho.
As domésticas de hoje são majoritariamente afrodescendentes porque "justamente eram essas pessoas que ocupavam os postos de trabalho mais aviltados na saída da escravidão e na entrada da liberdade no pós-abolição", afirmou ela à BBC Brasil.
A ideia de ter um servo na família era muito comum, mesmo entre quem não era rico e vivia nas regiões semiurbanas do século 19, segundo Ariza.
"A escravidão brasileira foi diversa, mas foi sobretudo uma escravidão de pequena posse. No Brasil, todo mundo tinha escravos. Quando as pessoas tinham dinheiro, elas compravam escravos com muita frequência."
Em São Paulo, por exemplo, muitas famílias - mesmo as relativamente pobres, muitas delas chefiadas por mulheres brancas - "tinham uma ou duas escravas domésticas para realizar afazeres na casa ou na rua".
Os resultados demonstram a predominância das mulheres negras ao longo do tempo.
Em 1995, havia 5,3 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil. Desses, 4,7 milhões eram mulheres, sendo 2,6 milhões de negras e pardas e 2,1 milhões de brancas. A escolaridade média das brancas era de 4,2 anos de estudo, enquanto que das afrodescendentes era de 3,8 anos.
Vinte anos depois, em 2015, a população geral desses profissionais cresceu, chegando a 6,2 milhões, sendo 5,7 milhões de mulheres. Dessas, 3,7 milhões eram negras e pardas e 2 milhões eram brancas. O nível escolar das brancas evoluiu para 6,9 anos de estudo, enquanto que, no caso das afrodescendentes, chegou a 6,6 anos.
"Ainda hoje o trabalho doméstico é uma das principais ocupações entre as mulheres, que são a maioria no setor em todo o mundo, cerca de 80%. No Brasil, permanece sendo a principal fonte de emprego entre as mulheres", diz Claire Hobden, especialista em Trabalhadores Vulneráveis da OIT.
Em 2017, o trabalho doméstico respondeu por 6,8% dos empregos no país e por 14,6% dos empregos formais das mulheres. No começo da década, esse tipo de serviço abarcava um quarto das trabalhadoras assalariadas.
O professor e pesquisador americano David Evan Harris é um dos especialistas que defendem que o cenário do trabalho doméstico no Brasil atual é herança do período escravagista.
"O Brasil foi um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão. Se olharmos para quem são as empregadas, veremos que elas tendem a ser pessoas de cor", diz o acadêmico, formado pela Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA, e mestre pela USP.
"Analisando cidades como Rio e São Paulo, percebe-se que as domésticas muitas vezes são pessoas que migraram do Norte e Nordeste para o Sul e Sudeste. E, como se sabe, o Nordeste é para onde boa parte das populações de escravos foi originalmente trazida. Há uma situação de dinâmica geográfica, histórica e social que continua até hoje."
Segundo a historiadora e escritora Marília Bueno de Araújo Ariza, mesmo após a abolição, em 1888, mulheres e homens negros continuaram sendo servos ou escravos informais, o que também deixou seu legado no mercado de trabalho.
As domésticas de hoje são majoritariamente afrodescendentes porque "justamente eram essas pessoas que ocupavam os postos de trabalho mais aviltados na saída da escravidão e na entrada da liberdade no pós-abolição", afirmou ela à BBC Brasil.
A ideia de ter um servo na família era muito comum, mesmo entre quem não era rico e vivia nas regiões semiurbanas do século 19, segundo Ariza.
"A escravidão brasileira foi diversa, mas foi sobretudo uma escravidão de pequena posse. No Brasil, todo mundo tinha escravos. Quando as pessoas tinham dinheiro, elas compravam escravos com muita frequência."
Em São Paulo, por exemplo, muitas famílias - mesmo as relativamente pobres, muitas delas chefiadas por mulheres brancas - "tinham uma ou duas escravas domésticas para realizar afazeres na casa ou na rua".
Assim o diabo dispõe
Há duas semanas não se respira outro ar no país que a putrefação governamental. A marginalidade puxou o cordão no Carnaval e deu a deixa. Michel Temer foi rápido em sair como porta-bandeira do enredo Segurança Nacional. Está dando tremendo ibope. Temer botou olho em garantir votos para manter-se na cadeira gigantesca para quem é mínimo.
Entre os prós e contras da intervenção, vai-se tocando o país como Deus quer e o diabo dispõe.
A senhora do bairro nobríssimo, de metro quadro estratosférico (na mesma região onde moram os integrantes da quadrilha cabralina) saúda as tropas como num 7 de setembro. Nenhuma surpresa no alívio da moradora. Ao sentir o bafo próximo da marginalidade numa ameaça ao ir e vir, a mediocridade se sacode.
Há décadas a bandidagem campeia na periferia ou comunidades, metáforas para favelas, que encobre o que não se quer ver. Criança aprende a ler e a escrever na escola e a assiste cadáveres largados pela rua. Conhece cedo a lei do silêncio e tem os ouvidos apurados para reconhecer o som de tiro à distância. Desde pequeno sabe como sobreviver em meio a tiroteios. O cotidiano desses é próximo ao de uma guerra civil. E aquela senhora só não lamenta anos e anos de bandidagem que dominam essas áreas de pobreza, às vezes extrema, mas c'est la vie...
É com o desespero da mediocridade (burguesia no jargão dos anos 1960) que os novos redentores esperam assegurar o continuísmo de um país ainda mais dividido entre privilegiados e desprestigiados. Mais uma bandeira que agitam para convocar as massas e sacudir a pança cheia. Desde que a marginalidade volte a se afastar ou se entrincheirar apenas entre a pobreza, o Brasil estará salvo. E assim prosseguem os governos momescos para alegria de quem usa e abusa da palavra Nação a bel-prazer.
Entre os prós e contras da intervenção, vai-se tocando o país como Deus quer e o diabo dispõe.
A senhora do bairro nobríssimo, de metro quadro estratosférico (na mesma região onde moram os integrantes da quadrilha cabralina) saúda as tropas como num 7 de setembro. Nenhuma surpresa no alívio da moradora. Ao sentir o bafo próximo da marginalidade numa ameaça ao ir e vir, a mediocridade se sacode.
É com o desespero da mediocridade (burguesia no jargão dos anos 1960) que os novos redentores esperam assegurar o continuísmo de um país ainda mais dividido entre privilegiados e desprestigiados. Mais uma bandeira que agitam para convocar as massas e sacudir a pança cheia. Desde que a marginalidade volte a se afastar ou se entrincheirar apenas entre a pobreza, o Brasil estará salvo. E assim prosseguem os governos momescos para alegria de quem usa e abusa da palavra Nação a bel-prazer.
Luiz Gadelha
O cidadão a sós
A intervenção do Exército no Rio de Janeiro, em mais uma tentativa de combater a ocupação armada da cidade pelos criminosos, recebeu a aprovação de 80% da população ─ é o que mostram os primeiros levantamentos feitos logo após a chegada das tropas federais a este pedaço do território brasileiro onde o crime está em guerra aberta contra os cidadãos. Houve, naturalmente, reações preocupadas por parte de muita gente ─ e não apenas da esquerda. (Com aquele seu instinto que nunca falha na hora de ficar contra a opinião da maioria, o PT e sua periferia, automaticamente, se escandalizaram com a intervenção. O que fizeram é o que sempre fazem quando se trata de escolher entre a criminalidade, que a seu ver toma parte nas “lutas populares”, e a ordem pública, que consideram coisa de “direita”: ficaram, de olhos fechados, a favor do crime). Junto com a reação habitual dos nossos revolucionários, veio o espanto apreensivo de uma parte do Brasil “civilizado”. O apoio maciço à intervenção no Rio, segundo dizem, mostraria uma angustiante e apressada inclinação do brasileiro a acreditar que os militares são “a solução” para tudo ─ crime, corrupção, incompetência e todas as demais taras do Estado e da sociedade no Brasil. Seria uma expectativa ruim, mesmo porque é impossível de ser atendida.
Não dá para medir com exatidão se os brasileiros acreditam mesmo em soluções militares. Mas, com certeza, uma população que há muito tempo não tem o mínimo motivo para levar a sério o governo, é insultada abertamente pelas decisões de um Supremo Tribunal Federal que presta vassalagem a condenados por corrupção e é tratada como débil mental pelo pior conjunto de deputados e senadores hoje presentes sobre a face da Terra, não poderia mesmo pensar como se estivesse vivendo na Inglaterra. Que raio se pretende, então, que as pessoas achem? Está cada vez mais difícil para o cidadão, e daqui a pouco pode tornar-se impossível, ficar a sós ─ vendo em silêncio os seus direitos mais básicos serem violados pelos criminosos, com a proteção de leis feitas para atender os interesses de bandidos e seus defensores. Salvo os próprios criminosos à mão armada, as quadrilhas que roubam o Erário e o resto dos marginais em circulação por aí, ninguém pode permanecer calmo enquanto o sistema Judiciário, a partir de seu degrau mais alto, solta sistematicamente quem deveria estar preso, ou mantém fora da prisão quem foi condenado e deveria estar lá dentro. Para a população brasileira, no fim das contas, a situação criada no país é simplesmente incompreensível. “Volta dos militares”, para consertar isso? Todo mundo está no direito de achar que se trata da pior opção, mesmo porque é o tipo da coisa que tem tudo para dar errado. Mas é inútil esconder que todo o mundo também está no direito de achar exatamente o contrário. Na verdade, tem um número cada vez maior de motivos concretos para pensar assim.
O que querem, sinceramente, que o cidadão pense quando vê uma assassina que ajudou a matar o próprio pai a golpes de barra de ferro ser solta, com o apoio enfurecido do Ministério Público, para passar fora da prisão o Dia dos Pais ─ justamente o Dia dos Pais? É a lei, dizem advogados, promotores e juízes ─ mas não lhes passa pela cabeça que uma coisa dessas está acima do entendimento de qualquer ser humano deste planeta. O recado que dão é o seguinte: se a lei é demente, problema seu. Obedece e cala a boca. Como condenar alguém por sonhar com “os militares”, quando uma promotora de Justiça, que é paga (com todos os “adicionais”) para nos defender dos criminosos diz que “bandido bom é bandido vivo, e com direitos?” Concorde com a promotora, se quiser ─ mas não estranhe que alguém discorde, e um dia passe a achar que “o único jeito é chamar o Exército”. Mais: é razoável esperar que alguém concorde, ou entenda, que um homicida tenha o direito de cumprir apenas um sexto da pena a que foi condenado? De vinte anos de cadeia, por exemplo, só cumpre três. Faz sentido um negócio desses? Para que serve um Código Penal se ele é anulado pelas leis de “progressão da pena”, regime semi-aberto, prisão domiciliar ou tornozeleiras para ladrão que rouba o Tesouro Nacional?
A população brasileira, na verdade, vem sendo provocada, cada vez mais, pelo crime e por seus protetores. No Rio de Janeiro os policiais continuam sendo assassinados na média de um a cada três dias, e 90% das autoridades acham isso perfeitamente normal. Cerca de 40% dos moradores não recebem mais o correio, pois a entrega foi suspensa por causa dos ataques da bandidagem. As seguradoras não aceitam mais fazer seguros para cargas destinadas ao Rio. Se isso não é desafiar as pessoas e abrir a porta para o desespero, o que seria, então? Os cidadãos, ainda por cima, são humilhados diariamente pelo apoio público que os seus opressores recebem da elite “civilizada”, da mídia, da Igreja Católica e por aí afora. Dizem, estes todos, que o grande problema do Rio de Janeiro não são os crimes praticados contra a população, mas as mortes de criminosos em confrontos com a polícia. (Quando morrem em brigas entre si próprios não há maiores comentários.) Ficam indignados com os “excessos da legitima defesa”, e exigem mais rigor contra quem usa a força para defender sua propriedade e sua vida dos ataques de criminosos.
Que provocação maior se poderia fazer às pessoas do que o estímulo aos bailes “funk” e seu principal derivado, o estupro coletivo de garotas menores de idade? Tornou-se um símbolo de orgulho “do morro”, e de seus admiradores do Leblon, a “tábua do sexo” ─ um banco de maneira onde os homens ficam sentados nos bailes, enquanto meninas de até 12 anos de idade se ajoelham sobre suas coxas para fazer sexo, em público, com o maior numero possível de machos. São chamadas de “preparadas”; as que já têm “dono”, e por isso não participam, são as “cachorras”. Há garotas que ficam grávidas ─ seus bebês são os “filhos da tábua”. A polícia, obviamente, está proibida de entrar. Os formadores de opinião consideram que isso seria um ato de repressão contra o “lazer popular”. Nenhuma feminista, até hoje, abriu o bico para fazer qualquer objeção à prática desses crimes em massa contra a mulher ─ sexo com menores de 14 anos é estupro, haja ou não consentimento da vítima. Os grandes astros do “funk”, que animam os bailes da “tábua” e pregam a favor do crime em suas letras de música, têm circulação triunfal nos programas de variedades da Rede Globo; dão entrevistas à imprensa e são bajulados pelas classes intelectuais. A ideia-mãe é a seguinte: tudo isso forma hoje o que seria uma nova manifestação cultural, a chamada “cultura da comunidade”. Ela é sagrada. Não pode sofrer a mínima restrição. Qualquer crítica é “preconceito” da “elite branca”.
O que há de estranho, diante de tudo isso e muito mais, no fato de 80% da população aprovarem a intervenção militar no Rio? O mundo descrito acima não é normal, nem desejável, para a imensa maioria, por mais que a “esquerda” insista em dizer o contrário. Não é normal em nenhuma outra cidade do Brasil. Porque seria aceitável no Rio? A chance de dar certo é zero.
O que querem, sinceramente, que o cidadão pense quando vê uma assassina que ajudou a matar o próprio pai a golpes de barra de ferro ser solta, com o apoio enfurecido do Ministério Público, para passar fora da prisão o Dia dos Pais ─ justamente o Dia dos Pais? É a lei, dizem advogados, promotores e juízes ─ mas não lhes passa pela cabeça que uma coisa dessas está acima do entendimento de qualquer ser humano deste planeta. O recado que dão é o seguinte: se a lei é demente, problema seu. Obedece e cala a boca. Como condenar alguém por sonhar com “os militares”, quando uma promotora de Justiça, que é paga (com todos os “adicionais”) para nos defender dos criminosos diz que “bandido bom é bandido vivo, e com direitos?” Concorde com a promotora, se quiser ─ mas não estranhe que alguém discorde, e um dia passe a achar que “o único jeito é chamar o Exército”. Mais: é razoável esperar que alguém concorde, ou entenda, que um homicida tenha o direito de cumprir apenas um sexto da pena a que foi condenado? De vinte anos de cadeia, por exemplo, só cumpre três. Faz sentido um negócio desses? Para que serve um Código Penal se ele é anulado pelas leis de “progressão da pena”, regime semi-aberto, prisão domiciliar ou tornozeleiras para ladrão que rouba o Tesouro Nacional?
A população brasileira, na verdade, vem sendo provocada, cada vez mais, pelo crime e por seus protetores. No Rio de Janeiro os policiais continuam sendo assassinados na média de um a cada três dias, e 90% das autoridades acham isso perfeitamente normal. Cerca de 40% dos moradores não recebem mais o correio, pois a entrega foi suspensa por causa dos ataques da bandidagem. As seguradoras não aceitam mais fazer seguros para cargas destinadas ao Rio. Se isso não é desafiar as pessoas e abrir a porta para o desespero, o que seria, então? Os cidadãos, ainda por cima, são humilhados diariamente pelo apoio público que os seus opressores recebem da elite “civilizada”, da mídia, da Igreja Católica e por aí afora. Dizem, estes todos, que o grande problema do Rio de Janeiro não são os crimes praticados contra a população, mas as mortes de criminosos em confrontos com a polícia. (Quando morrem em brigas entre si próprios não há maiores comentários.) Ficam indignados com os “excessos da legitima defesa”, e exigem mais rigor contra quem usa a força para defender sua propriedade e sua vida dos ataques de criminosos.
Que provocação maior se poderia fazer às pessoas do que o estímulo aos bailes “funk” e seu principal derivado, o estupro coletivo de garotas menores de idade? Tornou-se um símbolo de orgulho “do morro”, e de seus admiradores do Leblon, a “tábua do sexo” ─ um banco de maneira onde os homens ficam sentados nos bailes, enquanto meninas de até 12 anos de idade se ajoelham sobre suas coxas para fazer sexo, em público, com o maior numero possível de machos. São chamadas de “preparadas”; as que já têm “dono”, e por isso não participam, são as “cachorras”. Há garotas que ficam grávidas ─ seus bebês são os “filhos da tábua”. A polícia, obviamente, está proibida de entrar. Os formadores de opinião consideram que isso seria um ato de repressão contra o “lazer popular”. Nenhuma feminista, até hoje, abriu o bico para fazer qualquer objeção à prática desses crimes em massa contra a mulher ─ sexo com menores de 14 anos é estupro, haja ou não consentimento da vítima. Os grandes astros do “funk”, que animam os bailes da “tábua” e pregam a favor do crime em suas letras de música, têm circulação triunfal nos programas de variedades da Rede Globo; dão entrevistas à imprensa e são bajulados pelas classes intelectuais. A ideia-mãe é a seguinte: tudo isso forma hoje o que seria uma nova manifestação cultural, a chamada “cultura da comunidade”. Ela é sagrada. Não pode sofrer a mínima restrição. Qualquer crítica é “preconceito” da “elite branca”.
O que há de estranho, diante de tudo isso e muito mais, no fato de 80% da população aprovarem a intervenção militar no Rio? O mundo descrito acima não é normal, nem desejável, para a imensa maioria, por mais que a “esquerda” insista em dizer o contrário. Não é normal em nenhuma outra cidade do Brasil. Porque seria aceitável no Rio? A chance de dar certo é zero.
Inimigo número 1 de Temer é o 'por outro lado'
Na guerra contra o crime organizado, o principal inimigo do Estado é uma convenção de linguagem: a expressão “por outro lado”. Impossível fazer uma resenha dos últimos acontecimentos sem usar “por outro lado”. Pela primeira vez, Brasília avocou para si o problema da segurança. Por outro lado, a decisão foi de Michel Temer, um presidente denunciado e em fim de linha. Interveio na segurança do Rio. Por outro lado, manteve o poder político nas mãos do seu PMDB, que saqueou o Estado. Criou o Ministério da Segurança Pública. Por outro lado, deslocou Raul Jungmann para o posto e deixou um militar na pasta da Defesa, um retrocesso histórico.
Depois da Constituição de 88, nenhum governo havia se animado a intervir num Estado, ainda que num setor específico. Por outro lado, o plano foi feito em cima do joelho. Nomeado há dez dias, o general-interventor Braga Neto ainda não expôs seu plano de ação. Espera-se que anuncie alguma coisa nesta terça-feira.
Pode-se dizer que, ao trocar a reforma da Previdência, tema impopular, pela segurança pública, assunto de forte apelo, Temer passou a sensação de que algo se move no seu governo. Por outro lado nada se mexeu de verdade. As Forças Armadas, que já estavam no Rio, permanecem lá. Jungmann, que já cuidava de segurança, continuará cuidando. A segurança virou prioridade. Por outro lado, o Plano Nacional de Segurança Pública, anunciado com pompa há um ano, continua sendo uma ficção. Enfim, a guerra contra o crime organizado é uma ótima iniciativa. Agora só falta derrotar a expressão “por outro lado”.
Pode-se dizer que, ao trocar a reforma da Previdência, tema impopular, pela segurança pública, assunto de forte apelo, Temer passou a sensação de que algo se move no seu governo. Por outro lado nada se mexeu de verdade. As Forças Armadas, que já estavam no Rio, permanecem lá. Jungmann, que já cuidava de segurança, continuará cuidando. A segurança virou prioridade. Por outro lado, o Plano Nacional de Segurança Pública, anunciado com pompa há um ano, continua sendo uma ficção. Enfim, a guerra contra o crime organizado é uma ótima iniciativa. Agora só falta derrotar a expressão “por outro lado”.
Chove no sertão e não tem nada mais bonito
Desculpem , amigos, mas quando chove bem no Cariri e arredores não conseguimos falar de outro assunto. Coisa de caririense, coisa de cearense, coisa do interior nordestino. Quase uma hora ao telefone com minha mãe esta semana e só tratamos do bom inverno —como chamamos a estação das chuvas. Bem que previram os profetas da natureza de Quixadá. Os sinais indicavam fartura. João e Joana-de-barro construíram seu ninho com a porta da casa virada para o poente, na direção contrária da chuvarada. Depois de sete anos de vidas secas, o aguaceiro, com direito a imagem mais bonita da existência: alguns açudes sangrando.
Nada mais lindo que um açude sangrando, comentou o camarada potiguar Carlão de Souza esta semana. Não cabe na vista. A mesma sangria, sem nada combinado, foi assunto de outro irmão rochedo, Paulo Mota, das bandas de Sucesso, área cearense de Tamboril, pense na geografia, pense! Não há como não se arrupiar todinho diante de tal fenômeno. Levo essa ideia da chuva para onde for, só a chuva nos importa, mesmo quando estamos nos sítios mais chuvosos do universo. A chuva é meu gol, minha Copa do Mundo, Deus gozando a glória, meu amor.
Mesmo depois de quatro décadas morando longe da nação semiárida, o tema chuvoso encobre qualquer outra história. Nunca perdemos a mania. Mesmo antes de qualquer preâmbulo carinhoso do telefonema, sai inevitavelmente a naturalíssima pergunta: “Tá chovendo?” E como ficamos revoltados quando os moços e moças da meteorologia da tevê dizem “tempo bom” no Nordeste para indicar que será mais um dia de estiagem. Tempo bom uma ova. Sorte que pelo menos a Maju, no JN, tem o cuidado de não cometer essa indelicadeza, ela mudou essa história, juro. Sempre lembro do meu avô Manuel Novais, pernambucaníssimo em modos e blasfêmias, brigando com os locutores do rádio e da televisão: “Tempo bom para quem, filho de uma égua!” Daí saía um rosário de palavrões: febre-do-rato, istampô-calango, besta fubana, peste bubônica etc.
Quem disse que os meus parentes mais velhos da Baixada Fluminense, mesmo sob o bafo no cangote da Intervenção Militar no Rio, comentaram outra pauta. Só a chuva em Bodocó (PE) e na encosta na chapada do Araripe interessa. Em SP, o mesmo coro dos contentes: do Parque São Rafael, na ZL, à Pirituba, no noroeste paulistano, onde Aristides Moreno, quase 90 de vida, meu herói de infância, o homem que vi enfrentar secas brabas, coivaras, brocas e escavações de poços profundos que atingiam o Japão e quase não chegavam em um veio d´água. Minha tia-avó Rudá, em São Miguel Paulista, símbolo de resistência sob o sol de Raquel e Graciliano, que o diga. Esse mar de histórias me chega pelo amigo Francisco de Assis, meu Homero das narrações dos “sertanejos do Norte”, das gentes “lá de nós”, pois.
E tem um livro bonito, rapaz, que mostra esse nosso alumbramento com a chuva, um livro de fotos de Fred Jordão, chama Sertão Verde-paisagens. Fuçando nos sebos, você ainda encontra, quem sabe, é do ano de 2012, se o espírito cascudo não me engana. Desculpem, leitores, o país sob nuvens de chumbo, um resquício autoritário da moléstia dos cachorros, e este cronista, qual o cantor Demetrius, no ritmo da chuva. É mais forte, colegas, os olhos do matuto faíscam, a memória rebobina relâmpagos e promessas de promissores horizontes que, na maioria das vezes, deram em nada. Quantas retinas gastas com estes clarões. Sabe lá o que é isso?
“Se tivesse sempre chuva eu jamais votaria, saí da moita só pra votar no Lula que ele é uma coisa parecida com o Nordeste sem chuva, nem sei como ele conseguiu fazer esse milagre”. Lembro do mantra do meu pai, Francisco Nildemar, um anarquista selvagem que se recusou a morar em cidades –“lá só chega contas por debaixo da porta!”-- e relutou até os 50 a tirar documentos. O Sítio das Cobras, município de Santana do Cariri, lhe bastava. Minha mãe, dona Maria do Socorro, lindíssima e vivíssima no bairro da Timbaúba, Juazeiro, que sempre amou discordar do meu velho, no mesmo telefonema de ontem disse algo mais genial ainda (risos): “A chuva é sempre o melhor Governo, sem ela é que precisamos de arremedos, pense num povo que não teme trabalho, pense, meu filho”.
Depois de uns sete anos de seca braba na maior parte do semiárido, que vive processo de desertificação, a chuva é festa. Tamanha estiagem, antes de programas como o Bolsa Família, provocava convulsões sociais e as notícias de saques eram diárias. Testemunhei centenas de invasões de hordas de famintos em feiras livres e armazéns de cereais no Crato e Nova Olinda. No cemitério de Aratama, distrito de Assaré (CE), via e revia a chegada de centenas de “anjinhos”, como eram chamadas os recém-nascidos e crianças mortas pela desnutrição. Aqueles pequenos caixões azuis fornecidos por caridade da Igreja Católica mancham a vista até hoje. “Deus que levou”, diziam as mães, resignadas, Deus sabe como!
Logo mais narrarei toda essa memória pra Irene, minha filha de um ano, que já viu tempestade desta safra no colo dos avós “lá em nós”. E não é que a mãe Larissa, um dia antes de saber o tema dessa crônica, leu para a danada “Ombela, a origem da chuvas” (editora Pallas Mini, 2014), do irmão angolano Ondjaki?! Assim ele começa o livro e assim eu acabo esta crônica molhadinha: “Dizem os mais velhos que a chuva nasceu da lágrima de Ombela, uma deusa que estava triste.”
Xico Sá
Nada mais lindo que um açude sangrando, comentou o camarada potiguar Carlão de Souza esta semana. Não cabe na vista. A mesma sangria, sem nada combinado, foi assunto de outro irmão rochedo, Paulo Mota, das bandas de Sucesso, área cearense de Tamboril, pense na geografia, pense! Não há como não se arrupiar todinho diante de tal fenômeno. Levo essa ideia da chuva para onde for, só a chuva nos importa, mesmo quando estamos nos sítios mais chuvosos do universo. A chuva é meu gol, minha Copa do Mundo, Deus gozando a glória, meu amor.
Mesmo depois de quatro décadas morando longe da nação semiárida, o tema chuvoso encobre qualquer outra história. Nunca perdemos a mania. Mesmo antes de qualquer preâmbulo carinhoso do telefonema, sai inevitavelmente a naturalíssima pergunta: “Tá chovendo?” E como ficamos revoltados quando os moços e moças da meteorologia da tevê dizem “tempo bom” no Nordeste para indicar que será mais um dia de estiagem. Tempo bom uma ova. Sorte que pelo menos a Maju, no JN, tem o cuidado de não cometer essa indelicadeza, ela mudou essa história, juro. Sempre lembro do meu avô Manuel Novais, pernambucaníssimo em modos e blasfêmias, brigando com os locutores do rádio e da televisão: “Tempo bom para quem, filho de uma égua!” Daí saía um rosário de palavrões: febre-do-rato, istampô-calango, besta fubana, peste bubônica etc.
Quem disse que os meus parentes mais velhos da Baixada Fluminense, mesmo sob o bafo no cangote da Intervenção Militar no Rio, comentaram outra pauta. Só a chuva em Bodocó (PE) e na encosta na chapada do Araripe interessa. Em SP, o mesmo coro dos contentes: do Parque São Rafael, na ZL, à Pirituba, no noroeste paulistano, onde Aristides Moreno, quase 90 de vida, meu herói de infância, o homem que vi enfrentar secas brabas, coivaras, brocas e escavações de poços profundos que atingiam o Japão e quase não chegavam em um veio d´água. Minha tia-avó Rudá, em São Miguel Paulista, símbolo de resistência sob o sol de Raquel e Graciliano, que o diga. Esse mar de histórias me chega pelo amigo Francisco de Assis, meu Homero das narrações dos “sertanejos do Norte”, das gentes “lá de nós”, pois.
E tem um livro bonito, rapaz, que mostra esse nosso alumbramento com a chuva, um livro de fotos de Fred Jordão, chama Sertão Verde-paisagens. Fuçando nos sebos, você ainda encontra, quem sabe, é do ano de 2012, se o espírito cascudo não me engana. Desculpem, leitores, o país sob nuvens de chumbo, um resquício autoritário da moléstia dos cachorros, e este cronista, qual o cantor Demetrius, no ritmo da chuva. É mais forte, colegas, os olhos do matuto faíscam, a memória rebobina relâmpagos e promessas de promissores horizontes que, na maioria das vezes, deram em nada. Quantas retinas gastas com estes clarões. Sabe lá o que é isso?
“Se tivesse sempre chuva eu jamais votaria, saí da moita só pra votar no Lula que ele é uma coisa parecida com o Nordeste sem chuva, nem sei como ele conseguiu fazer esse milagre”. Lembro do mantra do meu pai, Francisco Nildemar, um anarquista selvagem que se recusou a morar em cidades –“lá só chega contas por debaixo da porta!”-- e relutou até os 50 a tirar documentos. O Sítio das Cobras, município de Santana do Cariri, lhe bastava. Minha mãe, dona Maria do Socorro, lindíssima e vivíssima no bairro da Timbaúba, Juazeiro, que sempre amou discordar do meu velho, no mesmo telefonema de ontem disse algo mais genial ainda (risos): “A chuva é sempre o melhor Governo, sem ela é que precisamos de arremedos, pense num povo que não teme trabalho, pense, meu filho”.
Depois de uns sete anos de seca braba na maior parte do semiárido, que vive processo de desertificação, a chuva é festa. Tamanha estiagem, antes de programas como o Bolsa Família, provocava convulsões sociais e as notícias de saques eram diárias. Testemunhei centenas de invasões de hordas de famintos em feiras livres e armazéns de cereais no Crato e Nova Olinda. No cemitério de Aratama, distrito de Assaré (CE), via e revia a chegada de centenas de “anjinhos”, como eram chamadas os recém-nascidos e crianças mortas pela desnutrição. Aqueles pequenos caixões azuis fornecidos por caridade da Igreja Católica mancham a vista até hoje. “Deus que levou”, diziam as mães, resignadas, Deus sabe como!
Logo mais narrarei toda essa memória pra Irene, minha filha de um ano, que já viu tempestade desta safra no colo dos avós “lá em nós”. E não é que a mãe Larissa, um dia antes de saber o tema dessa crônica, leu para a danada “Ombela, a origem da chuvas” (editora Pallas Mini, 2014), do irmão angolano Ondjaki?! Assim ele começa o livro e assim eu acabo esta crônica molhadinha: “Dizem os mais velhos que a chuva nasceu da lágrima de Ombela, uma deusa que estava triste.”
Xico Sá
Esquerda, direita e o embargo da memória
Após a condenação de Luiz Inácio Lula da Silva em segunda instância, intelectuais bastante respeitáveis defenderam, no campo da esquerda, mais uma vez, que não é hora de debater os 13 anos do PT no poder. A justificativa é a de que o momento exige que a esquerda e a centro-esquerda se unam para enfrentar a direita, em nome da democracia. Ao mesmo tempo, no campo da direita, que tampouco é coesa, Michel Temer (MDB) e as forças que o sustentam no poder, apesar das denúncias de corrupção (ou por causa delas), inventaram uma operação militar no Rio de Janeiro como mote popular para ter peso e influência na eleição de 2018.
Num campo, apresenta-se uma demanda para embargar a memória. No outro, usa-se a marquetagem política para silenciar realidades, criando um espetáculo. Ao ser produzida como factoide, caso da intervenção federal no Rio, o ato encobre o fato. A segurança é uma questão urgente. Mas não é possível enfrentá-la sem admitir que a política de “guerra às drogas”, que já foi abolida em partes mais sérias do mundo, é parte determinante do aumento da violência.
Em vez disso, consolida-se, pela escolha de uma operação militar, com soldados e tanques nas favelas e comunidades pobres, a guerra também como estética. De espasmo em espasmo, toda a atenção e a energia são deslocadas tanto para construir o espetáculo como para desconstruí-lo, como se testemunhou desde o anúncio da operação que tragou as atenções no Brasil e a maior parte do noticiário. Enquanto isso, o país se arruína um pouco mais.
Não pretendo usar mais parágrafos para analisar a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como silenciamento das causas reais de uma violência que tem destruído as vidas dos mais pobres, em muito maior número a dos jovens negros. Há uma quantidade considerável de análises consistentes em circulação, produzidas por gente que se dedica ao tema há muitos anos. Meu ponto nesse artigo é analisar o silenciamento produzido no campo da esquerda ligada a Lula e ao PT. E como esses silenciamentos, só aparentemente polarizados, se conectam e se confundem.
A recente declaração do comandante do Exército ilumina a questão: o general Eduardo Villas Bôas afirmou, em 19 de fevereiro, que os militares que atuarão na intervenção no Rio precisam de “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. O que significa essa declaração? Que haverá torturas, sequestros e assassinatos de civis nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro como houve na ditadura civil-militar (1964-1985)? Que o general quer “garantias” para que as tropas possam torturar, sequestrar e assassinar civis em nome do Estado, na operação do Rio, sem responder por isso? Que o general quer quebrar a lei e oficializar o Estado de exceção?
A crise da democracia é global, mas há algo de particular na crise de cada país. Já escrevi em artigo anterior que acredito que as raízes da atual crise da democracia no Brasil estão no próprio processo de retomada da democracia, após 21 anos de ditadura. As raízes da atual crise brasileira estão no apagamento dos crimes do regime de exceção e na impunidade dos torturadores e assassinos a soldo do Estado.
Ao retomar a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos da ditadura civil-militar, o Brasil seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que, para retomar a democracia, precisa esconder os esqueletos no armário – ou em covas clandestinas – é um país com a democracia deformada, no qual as fardas são sempre um ponto de instabilidade assombrando o cotidiano. Uma democracia deformada está aberta a mais deformações, como a história recentíssima do Brasil é pródiga em provar.
A desmemória não é um traço banal na história do Brasil. Ela costuma ser defendida como um “agora não é hora”, “este não é o momento”, “depois a gente cuida disso”. Foi assim com a Lei da Anistia, de 1979, que até hoje grupos da sociedade lutam para rever com o objetivo de fazer a justa responsabilização dos torturadores e assassinos do regime. O ato mais significativo para lidar com a memória do período de exceção foi justamente a Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura, que tanto preocupa o general, e a série de movimentos em torno dela, como as Clínicas do Testemunho pelo Brasil afora.
Esse processo de produção e documentação da memória sobre a ditadura foi, porém, interrompido pelo atual governo. O fato de que a democracia no Brasil supera os 30 anos sem lidar com o passado autoritário é um forte fator de desestabilização que costuma ser minimizado. Os efeitos do apagamento estão visíveis hoje nas ruas.
O Brasil é carente de uma direita com postura responsável e projeto consistente, capaz de pensar o país para além da política rasteira de ganhos privados e locupletações imediatas. O campo da direita não é coeso, mas nele predomina o discurso tosco, que tem nas bancadas do boi, da bala e da bíblia do Congresso, assim como nas milícias da internet, sua expressão mais barulhenta. Forjar realidades falsas se impôs como modo de operação, como por exemplo a recente difusão de que os espaços da arte estavam tomados por pedófilos. No caso das milícias, o próprio anúncio de uma filiação liberal é uma falsificação, na medida em que a prática contradiz os valores liberais mais básicos.
Neste momento, porém, chama a atenção como a esquerda ligada a Lula e à parte do PT tem atuado para embargar a memória. Caminham neste sentido os ataques àqueles que buscam refletir sobre os 13 anos do PT no poder, associado intimamente ao PMDB a partir do segundo mandato de Lula, e o papel desempenhado pelo partido, por Lula e por Dilma Rousseff na atual situação do Brasil.
Nenhum projeto de esquerda ou de centro-esquerda para o país faz sentido se, para se manter, precisa apagar capítulos da história. Por todas as razões e porque não se pode construir um projeto responsável de país sem a compreensão de onde se errou, assim como a consequente responsabilização pelo que foi causado pelos erros. É possível cogitar a hipótese de que, se tantos não tivessem silenciado após a primeira denúncia do mensalão e adiado a crítica e a autocrítica para um dia que nunca chega, os rumos poderiam ter sido diferentes também para Lula, Dilma Rousseff e o PT.
A pedra que barra a operação de apagamento nas biografias de Lula, de Dilma e do PT se chama Belo Monte, uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não é uma pedra, mas milhares de toneladas de aço e cimento no rio Xingu, no Pará, sob as quais pairam a suspeita de propinoduto nas investigações da Lava Jato. A forma como a usina saiu do papel, depois de décadas de resistência dos povos indígenas e dos movimentos sociais da região, é claramente suspeita desde pelo menos o leilão, em 2010.
Mas, nesta área, a da Lava Jato, sempre se pode negar e alegar inocência para a opinião pública. A forma e a rapidez com que o processo de Lula foi conduzido na Justiça, no caso do tríplex do Guarujá, a fragilidade das provas e o comportamento pouco convencional de juízes de ambas as instâncias, que opinaram antes de julgar, conduzem a dúvidas razoáveis sobre a legitimidade das sentenças, embaralhando ainda mais a paisagem já bastante enevoada do Brasil atual.
Em Belo Monte, porém, as violações ao meio ambiente e aos direitos humanos, promovidas durante os governos do PT, são literalmente visíveis. E bastante difíceis de explicar quando um político e um partido afirmam defender o povo – e afirmam serem perseguidos por defender o povo.
Como explicar que milhares de famílias foram expulsas de suas casas, terras e ilhas ou “removidas forçadamente”, sem nenhuma assistência jurídica, muitas delas assinando com o dedo papeis que eram incapazes de ler? Como explicar que as greves de operários da usina, assim como as manifestações contra Belo Monte promovida por indígenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores e moradores urbanos de Altamira foram reprimidas pela Força Nacional no período em que o Partido dos Trabalhadores estava no poder?
Como explicar que o PT permitiu, quando não apoiou, que a obrigatoriedade da proteção dos povos indígenas durante a construção da usina, assim como das ações de mitigação de seus efeitos sobre o rio e a floresta, se desvirtuasse num fluxo de mercadorias? Que as aldeias indígenas, mesmo as de recente contato, recebessem de TV e colchão a açúcar e refrigerantes, produzindo o que foi caracterizado formalmente pelo Ministério Público Federal como “etnocídio” (morte cultural), sem contar um aumento de mais de 100% na desnutrição de crianças indígenas entre 2010 e 2012?
Como explicar que a violência urbana disparou, em grande parte por causa do processo de Belo Monte, e Altamira se tornou o município com mais de 100 mil habitantes mais violento do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2017, produzido pelo Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Nacional de Segurança Pública? Como explicar que os bairros construídos para abrigar as famílias expulsas de suas casas não cumprem os requisitos mínimos determinados durante o licenciamento da usina e hoje se tornaram os novos territórios de violência de Altamira, com casas que já exibem rachaduras e se deterioram de forma acelerada?
Num campo, apresenta-se uma demanda para embargar a memória. No outro, usa-se a marquetagem política para silenciar realidades, criando um espetáculo. Ao ser produzida como factoide, caso da intervenção federal no Rio, o ato encobre o fato. A segurança é uma questão urgente. Mas não é possível enfrentá-la sem admitir que a política de “guerra às drogas”, que já foi abolida em partes mais sérias do mundo, é parte determinante do aumento da violência.
Em vez disso, consolida-se, pela escolha de uma operação militar, com soldados e tanques nas favelas e comunidades pobres, a guerra também como estética. De espasmo em espasmo, toda a atenção e a energia são deslocadas tanto para construir o espetáculo como para desconstruí-lo, como se testemunhou desde o anúncio da operação que tragou as atenções no Brasil e a maior parte do noticiário. Enquanto isso, o país se arruína um pouco mais.
Não pretendo usar mais parágrafos para analisar a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como silenciamento das causas reais de uma violência que tem destruído as vidas dos mais pobres, em muito maior número a dos jovens negros. Há uma quantidade considerável de análises consistentes em circulação, produzidas por gente que se dedica ao tema há muitos anos. Meu ponto nesse artigo é analisar o silenciamento produzido no campo da esquerda ligada a Lula e ao PT. E como esses silenciamentos, só aparentemente polarizados, se conectam e se confundem.
A recente declaração do comandante do Exército ilumina a questão: o general Eduardo Villas Bôas afirmou, em 19 de fevereiro, que os militares que atuarão na intervenção no Rio precisam de “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. O que significa essa declaração? Que haverá torturas, sequestros e assassinatos de civis nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro como houve na ditadura civil-militar (1964-1985)? Que o general quer “garantias” para que as tropas possam torturar, sequestrar e assassinar civis em nome do Estado, na operação do Rio, sem responder por isso? Que o general quer quebrar a lei e oficializar o Estado de exceção?
A crise da democracia é global, mas há algo de particular na crise de cada país. Já escrevi em artigo anterior que acredito que as raízes da atual crise da democracia no Brasil estão no próprio processo de retomada da democracia, após 21 anos de ditadura. As raízes da atual crise brasileira estão no apagamento dos crimes do regime de exceção e na impunidade dos torturadores e assassinos a soldo do Estado.
Ao retomar a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos da ditadura civil-militar, o Brasil seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que, para retomar a democracia, precisa esconder os esqueletos no armário – ou em covas clandestinas – é um país com a democracia deformada, no qual as fardas são sempre um ponto de instabilidade assombrando o cotidiano. Uma democracia deformada está aberta a mais deformações, como a história recentíssima do Brasil é pródiga em provar.
A desmemória não é um traço banal na história do Brasil. Ela costuma ser defendida como um “agora não é hora”, “este não é o momento”, “depois a gente cuida disso”. Foi assim com a Lei da Anistia, de 1979, que até hoje grupos da sociedade lutam para rever com o objetivo de fazer a justa responsabilização dos torturadores e assassinos do regime. O ato mais significativo para lidar com a memória do período de exceção foi justamente a Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura, que tanto preocupa o general, e a série de movimentos em torno dela, como as Clínicas do Testemunho pelo Brasil afora.
Esse processo de produção e documentação da memória sobre a ditadura foi, porém, interrompido pelo atual governo. O fato de que a democracia no Brasil supera os 30 anos sem lidar com o passado autoritário é um forte fator de desestabilização que costuma ser minimizado. Os efeitos do apagamento estão visíveis hoje nas ruas.
O Brasil é carente de uma direita com postura responsável e projeto consistente, capaz de pensar o país para além da política rasteira de ganhos privados e locupletações imediatas. O campo da direita não é coeso, mas nele predomina o discurso tosco, que tem nas bancadas do boi, da bala e da bíblia do Congresso, assim como nas milícias da internet, sua expressão mais barulhenta. Forjar realidades falsas se impôs como modo de operação, como por exemplo a recente difusão de que os espaços da arte estavam tomados por pedófilos. No caso das milícias, o próprio anúncio de uma filiação liberal é uma falsificação, na medida em que a prática contradiz os valores liberais mais básicos.
Neste momento, porém, chama a atenção como a esquerda ligada a Lula e à parte do PT tem atuado para embargar a memória. Caminham neste sentido os ataques àqueles que buscam refletir sobre os 13 anos do PT no poder, associado intimamente ao PMDB a partir do segundo mandato de Lula, e o papel desempenhado pelo partido, por Lula e por Dilma Rousseff na atual situação do Brasil.
Nenhum projeto de esquerda ou de centro-esquerda para o país faz sentido se, para se manter, precisa apagar capítulos da história. Por todas as razões e porque não se pode construir um projeto responsável de país sem a compreensão de onde se errou, assim como a consequente responsabilização pelo que foi causado pelos erros. É possível cogitar a hipótese de que, se tantos não tivessem silenciado após a primeira denúncia do mensalão e adiado a crítica e a autocrítica para um dia que nunca chega, os rumos poderiam ter sido diferentes também para Lula, Dilma Rousseff e o PT.
A pedra que barra a operação de apagamento nas biografias de Lula, de Dilma e do PT se chama Belo Monte, uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não é uma pedra, mas milhares de toneladas de aço e cimento no rio Xingu, no Pará, sob as quais pairam a suspeita de propinoduto nas investigações da Lava Jato. A forma como a usina saiu do papel, depois de décadas de resistência dos povos indígenas e dos movimentos sociais da região, é claramente suspeita desde pelo menos o leilão, em 2010.
Mas, nesta área, a da Lava Jato, sempre se pode negar e alegar inocência para a opinião pública. A forma e a rapidez com que o processo de Lula foi conduzido na Justiça, no caso do tríplex do Guarujá, a fragilidade das provas e o comportamento pouco convencional de juízes de ambas as instâncias, que opinaram antes de julgar, conduzem a dúvidas razoáveis sobre a legitimidade das sentenças, embaralhando ainda mais a paisagem já bastante enevoada do Brasil atual.
Em Belo Monte, porém, as violações ao meio ambiente e aos direitos humanos, promovidas durante os governos do PT, são literalmente visíveis. E bastante difíceis de explicar quando um político e um partido afirmam defender o povo – e afirmam serem perseguidos por defender o povo.
Como explicar que milhares de famílias foram expulsas de suas casas, terras e ilhas ou “removidas forçadamente”, sem nenhuma assistência jurídica, muitas delas assinando com o dedo papeis que eram incapazes de ler? Como explicar que as greves de operários da usina, assim como as manifestações contra Belo Monte promovida por indígenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores e moradores urbanos de Altamira foram reprimidas pela Força Nacional no período em que o Partido dos Trabalhadores estava no poder?
Como explicar que o PT permitiu, quando não apoiou, que a obrigatoriedade da proteção dos povos indígenas durante a construção da usina, assim como das ações de mitigação de seus efeitos sobre o rio e a floresta, se desvirtuasse num fluxo de mercadorias? Que as aldeias indígenas, mesmo as de recente contato, recebessem de TV e colchão a açúcar e refrigerantes, produzindo o que foi caracterizado formalmente pelo Ministério Público Federal como “etnocídio” (morte cultural), sem contar um aumento de mais de 100% na desnutrição de crianças indígenas entre 2010 e 2012?
Como explicar que a violência urbana disparou, em grande parte por causa do processo de Belo Monte, e Altamira se tornou o município com mais de 100 mil habitantes mais violento do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2017, produzido pelo Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Nacional de Segurança Pública? Como explicar que os bairros construídos para abrigar as famílias expulsas de suas casas não cumprem os requisitos mínimos determinados durante o licenciamento da usina e hoje se tornaram os novos territórios de violência de Altamira, com casas que já exibem rachaduras e se deterioram de forma acelerada?
Leia mais o artigo de Eliane Brum
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
A corrupção e o voto
A ONG Transparência Internacional divulgou, na quarta-feira, a mais nova edição do Índice de Percepção da Corrupção, correspondente a 2017, e o Brasil continua a cumprir sua sina de cair nos rankings mais diversos: de 180 países, aparece em 96.º lugar, tendo perdido 17 posições. O índice vai de zero (mais corrupção) a 100 (menos corrupção), e o Brasil tem 37 pontos, três a menos que na edição de 2016.
Importante ressaltar que o índice não mede a corrupção objetivamente, mas a sua percepção entre a população. A própria Transparência Internacional explica que, em países onde a corrupção é prática frequente, a descoberta e ampla divulgação de um esquema tende a tornar o cidadão mais consciente da roubalheira que ocorre à sua volta, o que por sua vez contribui para números piores no índice. No entanto, se depois do impacto inicial há a efetiva punição dos responsáveis, a população tende a acreditar que a corrupção está sendo combatida, o que por sua vez refletiria em melhoria no índice. E o Brasil da Lava Jato é o exemplo perfeito dessa dinâmica.
O índice medido pela Transparência Internacional tem caído desde 2014, no caso brasileiro. Isso coincide com o estouro do petrolão e as primeiras prisões da Lava Jato, que não pouparam figuras importantes da política nacional. O brasileiro descobriu – mais uma vez – que vinha sendo roubado em um esquema montado para garantir o projeto de poder petista, desta vez por meio da pilhagem da Petrobras. As fases da Operação Lava Jato se sucediam, e o juiz Sergio Moro começava a emitir as primeiras condenações. Tanto que, em 2016, a percepção da corrupção entre o brasileiro manteve-se estável: havia um fio de esperança de que este grande mal estava, finalmente, sendo combatido como se deve.
Mas 2017 trouxe uma série de baldes de água fria: o Supremo Tribunal Federal não julgou nenhum dos réus da Lava Jato com foro privilegiado; Michel Temer continuou mantendo a seu lado figuras suspeitas como Eliseu Padilha e Moreira Franco, este último transformado em ministro para ganhar uma “blindagem”; e o próprio Temer se viu no olho do furacão com as gravações de Joesley Batista, tendo de gastar seu capital político no Congresso para escapar de duas denúncias da Procuradoria-Geral da República. A condenação de Lula por Sergio Moro (a confirmação desta decisão, tendo ocorrido já em 2018, não impactou o índice da Transparência Internacional) não foi suficiente para impedir a população de perceber que o combate à corrupção estava chegando a um beco sem saída.
E, neste ano eleitoral, se o brasileiro está se tornando mais consciente da corrupção que permeia seu ambiente político, ele saberá usar essa informação sabiamente? No passado, o “rouba, mas faz” havia encontrado sua encarnação no ex-prefeito e ex-governador paulista Paulo Maluf, eleito e reeleito inúmeras vezes a despeito dos escândalos em que se via envolvido – em 2006, Maluf foi eleito deputado federal e conseguiu a reeleição duas vezes; agora, está preso na Papuda, com o mandato suspenso por decisão do presidente da Câmara.
Maluf pode estar com a vida política perto do fim, mas a mentalidade que fez dele um vencedor nas urnas ainda persiste. Só isso explica que partidos e figuras que foram protagonistas de todos os escândalos de corrupção recentes continuem gozando de algum prestígio popular, apoiando-se na mística mentirosa do “nunca antes na história deste país” para alegar que fizeram muito pelos pobres, quando na verdade se aproveitaram do legado (jamais reconhecido) de antecessores e de uma conjuntura internacional favorável para promover um “crescimento” e uma “inclusão social” que foram totalmente anulados pela maior recessão de nossa história.
Não basta que o brasileiro perceba a corrupção; é preciso que ele a trate como um critério importante – se não o principal deles – na hora do voto. O “rouba, mas faz” é uma ilusão em que se pequenas melhorias são oferecidas para que o cidadão feche os olhos a uma prática que mantém o Brasil no atraso.
Importante ressaltar que o índice não mede a corrupção objetivamente, mas a sua percepção entre a população. A própria Transparência Internacional explica que, em países onde a corrupção é prática frequente, a descoberta e ampla divulgação de um esquema tende a tornar o cidadão mais consciente da roubalheira que ocorre à sua volta, o que por sua vez contribui para números piores no índice. No entanto, se depois do impacto inicial há a efetiva punição dos responsáveis, a população tende a acreditar que a corrupção está sendo combatida, o que por sua vez refletiria em melhoria no índice. E o Brasil da Lava Jato é o exemplo perfeito dessa dinâmica.
O índice medido pela Transparência Internacional tem caído desde 2014, no caso brasileiro. Isso coincide com o estouro do petrolão e as primeiras prisões da Lava Jato, que não pouparam figuras importantes da política nacional. O brasileiro descobriu – mais uma vez – que vinha sendo roubado em um esquema montado para garantir o projeto de poder petista, desta vez por meio da pilhagem da Petrobras. As fases da Operação Lava Jato se sucediam, e o juiz Sergio Moro começava a emitir as primeiras condenações. Tanto que, em 2016, a percepção da corrupção entre o brasileiro manteve-se estável: havia um fio de esperança de que este grande mal estava, finalmente, sendo combatido como se deve.
E, neste ano eleitoral, se o brasileiro está se tornando mais consciente da corrupção que permeia seu ambiente político, ele saberá usar essa informação sabiamente? No passado, o “rouba, mas faz” havia encontrado sua encarnação no ex-prefeito e ex-governador paulista Paulo Maluf, eleito e reeleito inúmeras vezes a despeito dos escândalos em que se via envolvido – em 2006, Maluf foi eleito deputado federal e conseguiu a reeleição duas vezes; agora, está preso na Papuda, com o mandato suspenso por decisão do presidente da Câmara.
Maluf pode estar com a vida política perto do fim, mas a mentalidade que fez dele um vencedor nas urnas ainda persiste. Só isso explica que partidos e figuras que foram protagonistas de todos os escândalos de corrupção recentes continuem gozando de algum prestígio popular, apoiando-se na mística mentirosa do “nunca antes na história deste país” para alegar que fizeram muito pelos pobres, quando na verdade se aproveitaram do legado (jamais reconhecido) de antecessores e de uma conjuntura internacional favorável para promover um “crescimento” e uma “inclusão social” que foram totalmente anulados pela maior recessão de nossa história.
Não basta que o brasileiro perceba a corrupção; é preciso que ele a trate como um critério importante – se não o principal deles – na hora do voto. O “rouba, mas faz” é uma ilusão em que se pequenas melhorias são oferecidas para que o cidadão feche os olhos a uma prática que mantém o Brasil no atraso.
Falta um ator no teatro da intervenção: o nariz
Tratada pelo próprio Michel Temer como uma “jogada de mestre”, a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro aproximou o noticiário de polícia da editoria de política. Contudo, o mais adequado talvez fosse acomodar todas as notícias sobre o tema no espaço reservado às manchetes de economia. O que são os traficantes dos morros cariocas senão homens de negócios?
Temer declarou “guerra” ao crime organizado. Braga Netto, o general-interventor, arma estratégias para percorrer a anatomia da criminalidade. Tenta-se equipar o poder público para atingir o cérebro do narcotráfico, sem perder de vista que o empreendimento já tem os pés fincados em franquias espalhadas por todos os Estados, com braços que enfeixam negócios variados —da extorsão ao roubo de cargas.
Falta um personagem nesse enredo: o Grande Nariz. Por que existem traficantes?, eis a pergunta singela que todos evitam fazer. Eles estão por aí porque existe um mercado consumidor, eis a resposta óbvia. Vende-se cocaína no Brasil porque há quem a aspire. Vende-se muita cocaína, porque há quem a sorva em grandes quantidades. Simples assim.
Estudo divulgado há dois anos pelo Escritório de Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC, na sigla em inglês) anotou que o Brasil, além de ser um corredor exportador de cocaína, virou um dos maiores mercados consumidores. O relatório estimou que a taxa de consumo da droga no país (1,7% da população adulta) é quatro vezes maior do que a média mundial (0,4% dos adultos).
Para que Temer consiga manter sua pose de “mestre”, será necessário providenciar nos próximos meses um par de prisões espalhafatosas. Não basta anunciar a intenção de higienizar as polícias. A coreografia da guerra exige a captura de prisioneiros vistosos nos morros, que possam ser exibidos à turma do asfalto como troféus das forças interventoras.
O que ninguém diz é que essa modalidade de prisão cenográfica não resolve o problema. Enquanto existir o mercado consumidor sempre haverá um homem de negócios com operadores nos morros para satisfazer a demanda. Prende-se um Beira-Mar, um Ném, um Elias Maluco… E entram no lugar fulano da Rocinha, beltrano da Maré e sicrano do Alemão. Nada muda substancialmente.
Diz-se que a intervenção federal no Rio é uma providências inédita. Que seja. Mas num ponto ela é idêntica às inúmeras operações de garantia da lei e da ordem que transformam as Forças Armadas em polícia. Novamente, arma-se um escarcéu contra o tráfico e suas ramificações. Mas erguem-se barricadas de silêncio ao redor do consumo —como se um pudesse existir sem o outro.
Por que esculhamba-se o traficante e poupa-se sua clientela? Mais uma resposta simples: os consumidores de cocaína estão situados em pedaços do mapa das cidades onde os mandados coletivos de busca e apreensão são proibidos. Não se fala neles porque, se se falasse, talvez não houvesse intervenção no Rio.
O Grande Nariz não está na favela carioca nem na periferia paulista. Ele trafega em ambientes mais sofisticados: festas no Leblon e nos Jardins, sets de filmagem, coxias de shows, camarins de desfiles de moda, recepções à beira do Lago Paranoá, corredores do Congresso, porões da Esplanada, escritórios da Avenida Paulista, redações de veículos de comunicação…
Acionar o Exército para guerrear contra os malvadões incultos de pele escura sempre renderá aplausos fáceis. Mas o desejo de combater o narcotráfico e suas franquias só será genuíno no dia em que a sociedade enxergar o Nariz invisível que financia o fuzil AR-15 distribuído pelos executivos do mal às suas falanges. Impossível derrotar os criminosos sem enfrentar a hipocrisia.
Temer declarou “guerra” ao crime organizado. Braga Netto, o general-interventor, arma estratégias para percorrer a anatomia da criminalidade. Tenta-se equipar o poder público para atingir o cérebro do narcotráfico, sem perder de vista que o empreendimento já tem os pés fincados em franquias espalhadas por todos os Estados, com braços que enfeixam negócios variados —da extorsão ao roubo de cargas.
Falta um personagem nesse enredo: o Grande Nariz. Por que existem traficantes?, eis a pergunta singela que todos evitam fazer. Eles estão por aí porque existe um mercado consumidor, eis a resposta óbvia. Vende-se cocaína no Brasil porque há quem a aspire. Vende-se muita cocaína, porque há quem a sorva em grandes quantidades. Simples assim.
Estudo divulgado há dois anos pelo Escritório de Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC, na sigla em inglês) anotou que o Brasil, além de ser um corredor exportador de cocaína, virou um dos maiores mercados consumidores. O relatório estimou que a taxa de consumo da droga no país (1,7% da população adulta) é quatro vezes maior do que a média mundial (0,4% dos adultos).
Para que Temer consiga manter sua pose de “mestre”, será necessário providenciar nos próximos meses um par de prisões espalhafatosas. Não basta anunciar a intenção de higienizar as polícias. A coreografia da guerra exige a captura de prisioneiros vistosos nos morros, que possam ser exibidos à turma do asfalto como troféus das forças interventoras.
O que ninguém diz é que essa modalidade de prisão cenográfica não resolve o problema. Enquanto existir o mercado consumidor sempre haverá um homem de negócios com operadores nos morros para satisfazer a demanda. Prende-se um Beira-Mar, um Ném, um Elias Maluco… E entram no lugar fulano da Rocinha, beltrano da Maré e sicrano do Alemão. Nada muda substancialmente.
Diz-se que a intervenção federal no Rio é uma providências inédita. Que seja. Mas num ponto ela é idêntica às inúmeras operações de garantia da lei e da ordem que transformam as Forças Armadas em polícia. Novamente, arma-se um escarcéu contra o tráfico e suas ramificações. Mas erguem-se barricadas de silêncio ao redor do consumo —como se um pudesse existir sem o outro.
Por que esculhamba-se o traficante e poupa-se sua clientela? Mais uma resposta simples: os consumidores de cocaína estão situados em pedaços do mapa das cidades onde os mandados coletivos de busca e apreensão são proibidos. Não se fala neles porque, se se falasse, talvez não houvesse intervenção no Rio.
O Grande Nariz não está na favela carioca nem na periferia paulista. Ele trafega em ambientes mais sofisticados: festas no Leblon e nos Jardins, sets de filmagem, coxias de shows, camarins de desfiles de moda, recepções à beira do Lago Paranoá, corredores do Congresso, porões da Esplanada, escritórios da Avenida Paulista, redações de veículos de comunicação…
Acionar o Exército para guerrear contra os malvadões incultos de pele escura sempre renderá aplausos fáceis. Mas o desejo de combater o narcotráfico e suas franquias só será genuíno no dia em que a sociedade enxergar o Nariz invisível que financia o fuzil AR-15 distribuído pelos executivos do mal às suas falanges. Impossível derrotar os criminosos sem enfrentar a hipocrisia.
Mais uma vez o povo contra o povo
Uma coisa que me revolta é que eu, que sou trabalhador, não tenho valor nenhum pro governo. To valendo só 900 reais acordando 5 horas da manhã pra pegar o ônibus lotado. Se eu tiver pagando imposto e INSS em dia e tomo tiro na cabeça, vai ser difícil pra caralho conseguir o que tenho direito
Wellington, 33 anos e morador na Vila Kennedy
O delírio da certeza
Duas coisas fundamentais para o viver: a dúvida e a confiança. O mundo gira em torno desses dois sentimentos. Tanto a dúvida quanto a confiança nos impulsionam. Ambos, porém, estão em falta no Brasil.
Ainda que possa parecer paradoxal, os idiotas têm muitas certezas. Já os sábios têm dúvidas e confiança na necessidade de buscar respostas. No Brasil, os idiotas fazem mais barulho do que os homens comuns e os sábios. A certeza é outro componente da questão central da dúvida e da confiança. Mas é uma vulgata, já que a certeza foi vulgarizada pela sua banalização.
Sem dúvidas e desconfiando de tudo, os adoradores do “não é possível que” utilizam essa expressão como abertura dos trabalhos mentais para, adiante, concluí-los com um “com certeza”. Em especial, nas respostas prontas a perguntas que visam respostas ratificadoras ao que é perguntado. Do tipo entrevista de rua sobre o BBB.
Nesse caso, perguntado e perguntador são hamsters que dividem a roda onde correm para ficar no mesmo lugar. É o prazer de atender à expectativa de quem pergunta e encaixar a sua previsível resposta em um quebra-cabeça de e para debiloides.Hoje, no mundo, existe uma conspiração contra os especialistas. Ironicamente, o tema é tratado por alguns especialistas e não é revanchismo. Milhares de subcelebridades e celebridades falam sobre tudo com aparente propriedade e são validados pela mídia.
Muitas vezes a mídia opera para transportar o que a mediocridade majoritária quer ouvir e/ou manipular os sentimentos de acordo com as suas expectativas. Ignorantes são indagados e respondem o que serve para validar o que se quer mostrar ao público.
Atualmente, sabemos mais em volume de informação do que sabia Michel de Montaigne em 1580 . Contudo, o que ele sabia vale muito mais do que o que sabemos hoje em termos de filosofia. Na roda do hamster, quanto mais sabemos menos sabemos.
Ainda que possa parecer paradoxal, os idiotas têm muitas certezas. Já os sábios têm dúvidas e confiança na necessidade de buscar respostas. No Brasil, os idiotas fazem mais barulho do que os homens comuns e os sábios. A certeza é outro componente da questão central da dúvida e da confiança. Mas é uma vulgata, já que a certeza foi vulgarizada pela sua banalização.
Sem dúvidas e desconfiando de tudo, os adoradores do “não é possível que” utilizam essa expressão como abertura dos trabalhos mentais para, adiante, concluí-los com um “com certeza”. Em especial, nas respostas prontas a perguntas que visam respostas ratificadoras ao que é perguntado. Do tipo entrevista de rua sobre o BBB.
Muitas vezes a mídia opera para transportar o que a mediocridade majoritária quer ouvir e/ou manipular os sentimentos de acordo com as suas expectativas. Ignorantes são indagados e respondem o que serve para validar o que se quer mostrar ao público.
Atualmente, sabemos mais em volume de informação do que sabia Michel de Montaigne em 1580 . Contudo, o que ele sabia vale muito mais do que o que sabemos hoje em termos de filosofia. Na roda do hamster, quanto mais sabemos menos sabemos.
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