sábado, 30 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Brasileiro, homem do amanhã

Há em nosso povo duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Constituindo as colu­nas da brasilidade, as duas constantes, como todos sabem, são: 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar.

A primeira é ainda escassamente co­nhecida, e muito menos compreendida, no estrangeiro; a segunda, no entanto, já anda bastante divulgada no exterior, sem que o corpo diplomático contribua direta ou sistematicamente para isso.

Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain diziam apenas por humorismo (nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer depois de amanhã) não é no Brasil propriamente uma deliberada norma de conduta, uma diretriz de base. Não, é mais, é bem mais forte do que princípio voluntarioso: é um instinto inelutável, uma força espontâ­nea da estranha e surpreendente raça bra­sileira.

Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada).


Adiamos em virtude de um verdadeiro e inevitável estímulo, se me permitem, psi­cossomático. Trata-se de um reflexo condi­cionado, pelo qual, proposto um problema a um brasileiro, ele reage instantaneamente com as palavras: daqui a pouco; logo à tar­de; só à noite; amanhã; segunda-feira.

Adiamos tudo, o bem e o mal, o bom e o mau, que não se confundem, pelo con­trário, que tantas vezes se desemparelham. Adiamos o trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista, a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do automóvel, o túnel para Niterói, a festa de aniversário da criança, as relações com a China, o pagamento da prestação, adiamos até o amor. Só a morte e a promissória são mais ou menos pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento trimestral da reforma, uma instituição sacrossanta no Brasil. Quanto à morte, é de se lembrar dois poemas típicos do Romantismo: na “Canção do Exílio”, Gonçal­ves Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, pra cá; já Álvares de Azevedo, tem aquele poema famoso cujo refrão é sintomaticamente bra­sileiro: “Se eu morresse amanhã!” Nem os românticos queriam morrer hoje.

Sim, adiamos por força de um incoer­cível destino nacional, do mesmo modo que, por força do destino, o francês poupa di­nheiro, o inglês confia no Times, o português espera o retorno de dom Sebastião, o ale­mão trabalha com um furor disciplinado, o espanhol se excita diante da morte, o japo­nês esconde o pensamento e o americano usa gravatas insuportáveis.

O brasileiro adia; logo existe.

Como já disse, o conhecimento da nos­sa capacidade autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, achei no fim do volume algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre endereços de embai­xadas e consulados, estatísticas, informações culinárias, o autor intercalou o seguin­te tópico:

DES MOTS
Hier: ontem
Aujourd’hui: hoje
Demain: amanhã
Le seul important est le dernier


A única palavra importante é amanhã. Esse francês malicioso agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.

Paulo Mendes Campos, Manchete (14.3.1964)

Populismo requer humildade dos especialistas

Em 2018, o Porta dos Fundos lançou a série “Polêmica da semana”, satirizando a prática jornalística de dar voz aos “dois lados”, mesmo quando uma das posições é desqualificada. No primeiro vídeo da série, um mediador tenta permanecer equidistante num debate entre a defesa científica das vacinas por uma professora da UFRJ e a defesa da eficácia do “óleo de coco e da bala de gengibre” por um gamer. A série segue satirizando outras falsas polêmicas, como o aquecimento global e o racismo. Como quase tudo do Porta dos Fundos, os vídeos são muito engraçados. O problema que apresenta, porém, é mais complicado do que parece: qual a responsabilidade dos especialistas na era do populismo?

Movimentos populistas, como bolsonarismo ou trumpismo, caracterizam-se pela profunda desconfiança das elites intelectuais e das instituições liberais. Populistas não confiam nos cientistas, nos jornalistas, nos artistas e em suas respectivas instituições. Acreditam que esses “sabidos” são movidos por interesses escusos ocultos — pela agenda woke ou por privilégios econômicos, como as “boquinhas” da Lei Rouanet. O populismo foi capaz de organizar um ressentimento social contra os especialistas e transformá-lo em plataforma política poderosa. Diante do desafio populista, as instituições têm agido da maneira recomendada pela sátira do Porta dos Fundos, negando acesso a vozes desqualificadas. Será que essa estratégia tem funcionado?


Negar espaço institucional a tais vozes não fará com que desapareçam ou permaneçam marginalizadas. O discurso populista tem forte penetração social e, quando a universidade ou o jornalismo profissional não oferecem respostas adequadas, as inquietações encontrarão acolhimento nos meios militantes. Há vários motivos por que devemos levar o discurso populista a sério, descer do pedestal das instituições consagradas e nos engajar didaticamente com as inquietações do povo comum seduzido pelo discurso populista.

Em primeiro lugar, temos de ter respeito e consideração com as inquietações. Caçoamos demais de gente que quer se certificar de que as vacinas são seguras. Não apenas caçoamos, também caricaturamos sua posição. Não ajuda a persuadir e ainda colabora para ampliar a desconfiança dos especialistas. Muitas posições populistas têm formulações mais sofisticadas que deveríamos incorporar, entender e debater, no espírito da “caridade interpretativa”, princípio filosófico de que devemos sempre tomar a versão mais racional das posições do interlocutor.

No debate sobre o voto impresso, juízes, jornalistas e acadêmicos retrataram a proposta como retrocesso ao voto manual dos anos 1980 e 1990 ou como se sugerisse que o eleitor poderia levar o voto impresso para casa. A proposta, porém, previa que a urna eletrônica imprimisse uma cópia do voto automaticamente numa urna física, para conferência em caso de suspeita de fraude — uma ideia razoável, adotada noutros países e respaldada por especialistas. Deveríamos ter enfrentado a proposta real e mostrado que ela não poderia ser implementada naquele momento por questões financeiras e logísticas. Além disso, era necessário explicar como essa proposta séria era usada para promover desconfiança em nosso robusto sistema eleitoral. A estratégia da caricatura não funcionou, fez a população se sentir desrespeitada, com ainda menos confiança nos especialistas.

Fizemos o mesmo com o debate sobre o poder moderador atribuído às Forças Armadas pela leitura dos golpistas do artigo 142 da Constituição, apresentando-o como se fosse uma interpretação amalucada, e não como um incômodo enxerto autoritário imposto pela ditadura na Constituinte de 1988. Poderíamos ter explicado isso e, em seguida, argumentado que ele não era acolhido pelo espírito democrático do conjunto da Carta. Mas preferimos tratar os proponentes como iletrados e ignorantes.

Fizemos isso de novo com o debate sobre os excessos do Judiciário, apresentando as críticas contra as exclusões de contas nas redes sociais como se fossem apenas uma defesa do direito de atacar a democracia ou de publicar fake news. No entanto a ideia de que essas exclusões poderiam configurar censura prévia era um lugar-comum no debate jurídico especializado antes dos eventos do 8 de Janeiro. Muitas vezes, temos feito o oposto do princípio da caridade interpretativa, acreditando, de forma equivocada, que maltratar o interlocutor e sugerir que siga a luz dos especialistas será suficiente para convencê-lo.

O caminho atual de ridicularizar, desqualificar e caricaturar falhou em recuperar a confiança pública nas instituições. Mais que nunca, especialistas precisam adotar uma postura humilde e didática, engajando-se com as preocupações populares e mostrando, com respeito, que o conhecimento científico e as instituições liberais ainda podem ser os pilares de uma sociedade democrática.

Petroleiras são responsabilizadas por crise do lixo plástico

É até difícil de conceber o que 400 milhões de toneladas representam. No entanto, esse é o volume de plástico virgem produzido anualmente – o equivalente ao peso de toda a população humana.

Mesmo com essa pegada gigantesca, o plástico está em vias de ocupar ainda mais espaço no mundo. Projeções atuais sugerem que a produção praticamente triplicará até 2060. Estima-se que 20 milhões de toneladas de plástico acabem no meio ambiente a cada ano, enquanto as taxas anuais de reciclagem global são de apenas 9%.

Há anos, especialistas e grupos da sociedade civil têm alertado sobre a impossibilidade de resolver o problema das crescentes montanhas de resíduos plásticos apenas por meio da reciclagem. Um limite para a produção tem sido sugerido no lugar, na contramão do que vem acontecendo na prática.

Em uma era de expansão das fontes de energia renováveis, o aumento do volume de produção de plástico virgem tem muito a ver com os setores de petróleo e gás, já que a grande maioria desse material é produzida a partir de combustíveis fósseis.

Cavalo em meio a lixo plástico no reservatório de Cerron Grande (El Salvador)

"Atualmente, as empresas de combustíveis fósseis não dependem da venda de gasolina ou combustível para energia ou transporte como forma de se manterem vivas", disse Delphine Levi Alvares, gerente da campanha global de petroquímicos do Centro de Direito Ambiental Internacional (CIEL), em um comunicado. "Elas estão dependendo cada vez mais da produção de produtos petroquímicos."

Em outras palavras, as empresas que tradicionalmente vendiam combustível para o mundo agora estão investindo cada vez mais na produção de plástico. Na ordem de dezenas de bilhões de dólares.

A redução da produção surgiu como uma questão polêmica durante dois anos de negociações para chegar a um tratado global sobre plásticos. Ainda não se sabe se a rodada final, em andamento na Coreia do Sul, chegará a um acordo sobre esse ponto.

Mas há outros movimentos significativos em curso para forçar mudanças, como a queixa legal apresentada no início deste ano pelo estado americano da Califórnia contra a ExxonMobil, grande empresa de petróleo e gás.

Na ação judicial, o procurador-geral da Califórnia, Rob Bonta, alega que a ExxonMobil, a maior produtora de plásticos de uso único do mundo, "promoveu agressivamente o desenvolvimento de produtos plásticos baseados em combustíveis fósseis e fez campanha para minimizar a compreensão do público sobre as consequências prejudiciais desses produtos".

Dessa forma, a empresa "enganou os californianos por quase meio século ao prometer que a reciclagem poderia e resolveria a crescente crise do lixo plástico", sustenta a procuradoria.

Mark James, diretor interino do Instituto de Energia e Meio Ambiente da Faculdade de Direito de Vermont, disse que, embora a ExxonMobil não venda diretamente aos consumidores, as empresas de petróleo e gás têm sido muito intencionais na criação de mercados para os produtos plásticos que vão para a cesta de compras.

"Definitivamente, houve marketing da reciclabilidade dos plásticos para esses usuários finais", disse ele. "Mas essa é uma criação do setor e, quando sabemos disso, podemos entender tudo o que eles têm feito para manter essa falsa sensação de reciclabilidade de seus produtos."

Em resposta, a ExxonMobil argumentou que as autoridades da Califórnia "sabiam que seu sistema de reciclagem não era eficaz" e não agiram. Procurada pela DW, a empresa não comentou o assunto.

Levi Alvares vê a ação judicial da Califórnia como um passo fundamental para unir os pontos que o público em geral nem sempre vê – o elo entre a produção de plástico e as empresas de combustíveis fósseis.

"Esse tipo de ação judicial realmente consolida na mente das pessoas essa tendência de que muitos não estão conectando o impacto que essas empresas têm sobre a crise climática ao impacto que elas têm em outros setores."
"Reciclagem avançada" seria a solução?

Apesar da taxa historicamente baixa de reciclagem global – apenas 10% de todo plástico já produzido foi transformado em outra coisa – e da realidade de que muitos produtos não podem ser facilmente transformados em outros bens, a ExxonMobil está apostando na "reciclagem avançada". Essa tecnologia, segundo a empresa, "converte os resíduos plásticos de volta em blocos de construção molecular", o que significa que eles se tornam a matéria-prima para novos produtos.

A empresa afirma ter usado a reciclagem avançada para "processar mais de 60 milhões de libras [aproximadamente 27 mil toneladas] de resíduos plásticos em matérias-primas utilizáveis, mantendo-os fora dos aterros sanitários". E poucas semanas depois que a Califórnia entrou com a ação, a ExxonMobil anunciou que estava expandindo sua capacidade.

Mas a denúncia da procuradoria californiana, que se baseia em dois anos de investigação, diz que mesmo no "melhor cenário possível" da ExxonMobil, a reciclagem avançada será responsável por uma pequena fração do plástico que a empresa continua a produzir. E, portanto, "nada mais é do que um golpe de relações públicas destinado a incentivar o público a continuar comprando plásticos de uso único que estão alimentando a crise da poluição por plásticos".

Adam Herriott, especialista sênior da ONG de ação ambiental global WRAP, afirma que, devido à sua posição no início da cadeia de suprimentos de plástico, as empresas de combustíveis fósseis "afetam significativamente o volume de plástico que entra no mercado" e que "ao participar ativamente dos esforços para reduzir a produção de plástico virgem, elas podem ajudar a promover mudanças sistêmicas".

No entanto, assim como outras importantes empresas de combustíveis fósseis, petroquímicas e de bens de consumo de alta rotatividade, a ExxonMobil é membro da Alliance to End Plastic Waste (AEPW), uma organização global independente e sem fins lucrativos, que trabalha para lidar com o plástico depois que ele se torna resíduo, em vez de abordar o problema por meio da redução da produção.

Em um e-mail enviado à DW, Louise Lam, gerente de comunicações corporativas da AEPW, disse que seu mandato se concentra principalmente no desenvolvimento de "soluções que apoiem a coleta, a classificação e a reciclagem de resíduos plásticos para promover uma economia circular para o plástico". Lam acrescentou que a AEPW acredita que "é a soma do trabalho das várias partes interessadas – de soluções 'upstream' a 'downstream' – que ajudará a resolver o desafio".

Há muita coisa em jogo no caso da Califórnia contra a ExxonMobil. Além de definir se a empresa será condenada a atender às exigências da procuradoria, que incluem reparações financeiras, e se deixará de fazer alegações enganosas, o processo pode criar precedente e levar outras empresas de combustíveis fósseis para os tribunais.

Patrick Boyle, advogado de responsabilidade corporativa da CIEL, diz que espera ver mais casos desse tipo nos Estados Unidos, e até mesmo em outros países, porque as provas e os depoimentos apresentados no contexto do processo da Exxon – que provavelmente se desenrolará ao longo de alguns anos – se tornarão registros públicos.

Mesmo que um caso não pareça exatamente com esse litígio contra a Exxon, com essas alegações específicas, as evidências coletadas podem ser aproveitadas no futuro para combater outros casos relacionados a questões como microplásticos, lavagem verde ou licenças para reciclagem avançada, afirma Boyle.

"Portanto, acho que há muitas conversas e 'brainstormings' realmente interessantes a serem realizados e iniciados com parceiros para ver como podemos aproveitar o que obtemos aqui, no contexto internacional."

Enquanto isso, Levi Alvares diz que a queixa contra a Exxon está fortalecendo o entendimento de que os resíduos plásticos são um problema "criado pela indústria".

O que andam ensinando nas escolas militares?

Pelo português típico dos bordéis de zona portuária, pela visão de mundo da altura de uma sarjeta e pelo apego à violência com base na premissa de que atentados à vida são meios que justificam quaisquer fins, os militares presos pela Polícia Federal por terem elaborado um plano para matar o presidente da República, o vice-presidente e um ministro do Supremo Tribunal Federal, na passagem de 2022 para 2023, entreabrem três perguntas.

São elas: 1 - Qual a formação que esse pessoal obteve nas escolas militares?; 2 - Em que medida eles representam o alunado médio dessas escolas?; 3 - Em caso negativo, de que modo esses militares conseguiram diplomar-se e fazer uma carreira nas Forças Armadas, ascendendo a posições de destaque e chegando à irresponsável iniciativa de afrontar o Alto Comando do Exército ao planejar um golpe de Estado?


Uma das respostas possíveis é a que tem sido dada por importantes historiadores, como José Murilo de Carvalho. Segundo eles, a República foi fruto de uma intervenção militar, configurando um golpe que viciou o regime político desde seu início. A partir daí, a intervenção militar na vida pública teria se convertido numa espécie de norma, em decorrência da propensão dos membros das Forças Armadas a intervir na via política quando assim o desejassem, como se sua missão fosse tutelar a sociedade.

Outra resposta tem sido dada por respeitados analistas e sociólogos, como Roberto Godoy, Eliezer de Oliveira e Celso de Castro. Por ficarem reclusos aos quartéis e às academias, apartando-se do restante da sociedade, os militares transformaram-se progressivamente num grupo social específico dotado de formação técnica. Constituindo-se numa corporação disposta a se emparelhar com a elite civil, eles se imaginaram como um "poder moderador", agindo a partir daí como um poder potencialmente desestabilizador da ordem jurídica.

Por mais que nos primórdios do golpe de 1964 o então ministro Roberto Campos dissesse que o "‘projeto de grandeza’" do novo regime apagaria "a imagem do militar como um profissional abrutalhado pela caserna, de treinamento estreito e bitolado", isso não ocorreu, como revelam as gestões de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.

Desde então, o que se vê é um confronto entre duas burocracias. A inerente ao sistema representativo, com suas negociações e acertos, garantindo governabilidade mas não o desenvolvimento econômico e social. E a burocracia militar, com suas concepções de patriotismo. Enquanto na vida política os atores são obrigados a respeitar a ordem jurídica, no caso dos militares —ainda que estejam sujeitos ao direito positivo— prevalecem mais a autoridade hierárquica superior e os regulamentos disciplinares.

São duas formas de pensar e agir, como dizia o professor Oliveiros Ferreira, nos anos 1960. Ao decidir, o burocrata civil se ampara nas leis, com base nas quais pode se recusar a cumprir decisões impostas por seus chefes, colocando-os diante da alternativa de serem responsabilizados no caso de irregularidades.

Já o militar se ampara em decisões superiores tomadas por seus chefes e adotadas com base em princípios diferentes daqueles que regem os cidadãos comuns. Como os dois grupos disputam o controle de recursos escassos, decorre daí a tensão entre eles —e, principalmente, a hostilidade dos segundos aos primeiros.

Este ponto é essencial. O que se viu na prisão de militares pela PF não é apenas um choque entre as duas burocracias, como em 1964. Foi, sim, um choque dentro da própria burocracia militar. Foi um embate em que os defensores de um plano de assassinato de três autoridades agiram contra a vontade de seus próprios superiores. E os palavrões que disseram ao afrontar generais oficialistas dá a medida do desrespeito desse pessoal pela hierarquia.

Felizmente, as instituições foram mais fortes do que esses aventureiros bolsonaristas. Mas isso não obscurece as indagações feitas acima: o que se passa com as escolas militares, que diplomam fardados sem formação e condições morais de vestir uma farda?

Influencers mirins

Estarrecido. Foi como me senti num tempo em que nada mais estarrece, com a matéria da GloboNews sobre influencers mirins e seus coaches. São crianças de 11, 12 anos dizendo que ganham mais de R$ 100 mil por mês influenciando. Para que estudar? Para que trabalhar? É tudo tão fácil e agradável. É só postar vídeos de cenas divertidas, viagens, bichos, dancinhas, e falar o que fala uma criança de 11, 12 anos. Se forem bonitinhos, com graça, com personalidade, é tiro certo, ganharão milhares de seguidores, influenciarão a opinião e o gostos de milhares de outras crianças. Logo serão patrocinados por uma marca de produtos para crianças, venderão reels e stories como espaço publicitário.


Sim, a publicidade gasta cada vez mais dinheiro na internet do que na mídia tradicional. Já estão no mercado malandros que vendem cursinhos para aspirantes a influencer mirim. O pior: muitas vezes os pais incentivam. Em alguns casos são crianças pobres que se tornam arrimo de família, o que é bacana, em outras são os pais, de várias classes sociais, que estimulam e faturam em cima da popularidade do seu influencer mirim. Um vídeo promocional de um cursinho impressiona: o garoto paupérrimo que dá para o pai seu grande sonho, um celular — a arma de fazer dinheiro do filho. Não é preciso dizer que as consequências serão desastrosas, para influenciadores e influenciados.

Sim, tem todo um problema legal, de menores de tantos anos só poderem exercer certas atividades com autorização judicial. No caso de novelas, filmes, teatro e comerciais, a fiscalização pode ser realizada com relativa facilidade. Mas um influencer mirim... acho que a lei ainda nem prevê essa possibilidade. Os juizados de crianças e adolescentes podem tirar do ar páginas e sites de crianças? Como controlar e fiscalizar isso, sem a ajuda dos pais? Mas os pais querem essa grana mole. Quem não?

Estarrecedor 2: saber que 9 entre 10 crianças, quando perguntadas o que queriam ser quando crescessem, responderam em massa: influencer. É claro: moleza máxima, é só fazer o que quiser e gravar em vídeo, não tem que fazer nenhum esforço, nenhuma pesquisa, estudar nada. O que pode ser melhor?

As dicas e os conselhos e valores dessas crianças não valem nada, mas tem o poder de fazer outras crianças acreditarem naquelas bobagens. Só o que conta são as aparências, o conteúdo é vazio, fugaz como os stories. E crianças passam horas on-line vendo páginas de crianças, em vez de estudar, brincar, jogar, aprontar alguma, como crianças. E quando são manipuladas pelos pais, o inferno é o limite.
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Poeminha dos 80 anos

não tenho saudades de nada,
porque tudo foi vivido intensamente,
até o fundo em cada momento,
de felicidade e de sofrimento.
saudades, só de algumas pessoas
amadas, idas mas sempre presentes,
e não de tempos e acontecimentos,
de vitórias, derrotas e vivências.
não tenho mais tempo a perder
para lembrar, tenho mais a fazer,
lazer, viagens, diversão, prazer,
amar, criar, curtir e compartilhar.
Nelson Motta

Os criadores de boatos aproveitam a indignação para espalhar mentiras online

A indignação vende. Quem mexe os cordelinhos da desinformação na internet, seja quem for , sabe disso melhor do que ninguém e usa isso a seu favor para amplificar suas narrativas. Um estudo publicado esta quinta-feira na revista Science mostra que as publicações nas redes sociais que contêm informações falsas provocam mais indignação do que aquelas que incluem informações fiáveis. E é precisamente essa emoção que facilita a propagação de mentiras pela Internet.


Para chegar a essa conclusão, Killian McLoughlin, doutorando em psicologia e política social na Universidade de Princeton e principal autor da pesquisa, e sua equipe analisaram mais de um milhão de links no Facebook e 44 mil postagens na rede social, classificando as fontes como confiáveis ou desinformativo. Eles então conduziram dois experimentos nos quais mediram a indignação gerada por certas manchetes – verdadeiras e falsas – em 1.475 participantes. McLoughlin concluiu que “as pessoas podem partilhar informações ultrajantes sem verificar a sua exatidão, porque a partilha é uma forma de sinalizar a sua posição moral ou o pertencimento a determinados grupos”. E isso parece importar mais do que a verdade ou a mentira.

À luz dos resultados, Ramón Salaverría, professor de Jornalismo da Universidade de Navarra e coordenador do Observatório Ibérico dos Meios Digitais, assegura que “esse estudo confirma com fortes evidências empíricas a hipótese de que as emoções desempenham um papel fundamental nos processos de comunicação pública”. O especialista acredita que a principal novidade deste estudo é que “detecta que a indignação é especificamente a emoção chave na ativação dos processos de disseminação de falsidades”.

Sander Van Der Linden, diretor do Laboratório de Tomada de Decisões Sociais de Cambridge, que não esteve envolvido na pesquisa, confirma que a indignação é uma emoção muito intensa e negativa. “Não acho que a maioria das pessoas goste de experimentar isso. Pode haver um sentimento de indignação moral coletiva face aos acontecimentos mundiais que pode ser socialmente gratificante, mas, de um modo geral, não é uma emoção que as pessoas persigam.”

Então, qual é a recompensa? Van Der Linden arrisca uma hipótese: “Os usuários que compartilham esse tipo de notícia, verdadeira ou falsa, buscam interação, pois isso leva tanto à validação social quanto a recompensas financeiras em plataformas como X. Se você produz conteúdo que gera muita interação, você pode monetizá-lo, o que cria incentivos perversos nas redes sociais.” O negócio da indignação existe, muitas vezes impulsionado pela amplificação algorítmica das próprias plataformas.

Os pesquisadores também descobriram que os usuários são mais propensos a compartilhar informações falsas e indignantes sem lê-las primeiro. Esta descoberta coincide com a de outro estudo publicado dias atrás na revista Nature Human Behavior . Uma análise de mais de 35 milhões de publicações com links para notícias que circularam na rede social com grande virulência entre 2017 e 2020, mostrou que três em cada quatro usuários as compartilharam sem clicar ou ler seu conteúdo. Ou seja, se você encontrou este artigo no Facebook e está lendo estas linhas, você foi muito além de 75% dos usuários.

Esta segunda pesquisa sugere que a maioria dos internautas se limita a ler manchetes e notas curtas sem se envolver muito com a informação. S. Shyman Sundar, co-diretor do Laboratório de Pesquisa de Efeitos de Mídia da Penn State e principal autor do estudo, diz que sempre se preocupou com a facilidade com que os usuários das redes sociais confiam no que veem por aí. “Neste projeto, meus colaboradores e eu nos perguntamos se as pessoas leem e verificam o que compartilham”, acrescenta. A resposta à sua pergunta é categórica na maioria dos casos: não.

“O fato de o percentual de pessoas que compartilham notícias sem lê-las chegar a 75% nos chocou muito”, diz o pesquisador. Embora os dados deste estudo tenham sido limitados ao Facebook, Shyman diz que os padrões não deveriam ser diferentes em outras plataformas como X. “O que descobrimos é uma tendência psicológica, um padrão de comportamento online que resulta da função de compartilhamento de conteúdos. Portanto, desde que uma plataforma ofereça esse recurso, provavelmente veremos resultados semelhantes.”

Agora, por que fazemos isso? Todos os especialistas consultados concordam que grande parte da responsabilidade reside na sobrecarga de informação. “Somos bombardeados diariamente com informações de todos os tipos de mídia por meio de diversos dispositivos, o que esgota nossa capacidade mental. Assim, economizamos nossos recursos cognitivos recorrendo a atalhos, como ler apenas as manchetes e clicar imediatamente no botão de compartilhar, sem pensar muito nas consequências de nossos atos”, arrisca Shyman.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


O capitalismo de compadrio está chegando aos EUA

Estamos no final de 2025, e Donald Trump fez o que prometeu: impôs altas tarifas —impostos sobre importações— em produtos vindos do exterior, com tarifas extremamente altas sobre importações da China. Essas tarifas tiveram exatamente o efeito que muitos economistas previram, embora Trump insistisse no contrário: preços mais altos para os compradores americanos.

Digamos que você tenha um negócio que depende de peças importadas —talvez da China, talvez do México, ou de outro lugar. O que você faz?

Bem, a lei comercial dos Estados Unidos dá ao poder executivo ampla discricionariedade na definição de tarifas, incluindo a capacidade de conceder isenções em casos especiais. Então, você solicita uma dessas isenções. Seu pedido será atendido?

Em princípio, a resposta deveria depender de se pagar essas tarifas impõe dificuldades reais e ameaça empregos americanos. Na prática, você pode adivinhar com segurança que outros critérios terão um papel. Quanto dinheiro você contribuiu para os republicanos? Quando você realiza retiros empresariais, eles são em campos de golfe e resorts de Trump?


Não estou especulando à toa aqui. Trump impôs tarifas significativas durante seu primeiro mandato, e muitas empresas solicitaram isenções. Quem as obteve? Uma análise estatística recentemente publicada descobriu que empresas com laços republicanos, medidos por suas contribuições de campanha de 2016, eram significativamente mais propensas (e aquelas com laços democratas menos propensas) a ter suas solicitações aprovadas.

Mas isso foi apenas um ensaio em pequena escala para o que pode estar por vir. Embora ainda não tenhamos detalhes, as propostas de tarifas que Trump apresentou durante a campanha eram muito mais amplas em escopo e, no caso da China, muito mais altas do que qualquer coisa que vimos na primeira vez; o potencial para favoritismo político será uma ordem de magnitude maior.

Pelo que entendo, o termo "capitalismo de compadrio" foi inventado para descrever como as coisas funcionavam nas Filipinas sob a ditadura de Ferdinand Marcos, que governou de 1965 a 1986. Descreve uma economia em que o sucesso nos negócios depende menos de uma boa gestão do que de ter as conexões certas —muitas vezes compradas por meio de favores políticos ou financeiros para aqueles no poder. Na Hungria de Viktor Orban, por exemplo, a Transparência Internacional estima que mais de um quarto da economia é controlado por empresas com laços estreitos com o partido no poder.

Agora é muito provável que o capitalismo de compadrio esteja chegando à América.

Houve muitas análises do provável impacto macroeconômico das tarifas de Trump, que, se forem tão grandes quanto ele sugeriu, serão seriamente inflacionárias. No entanto, pode-se argumentar que sua influência corruptora será, a longo prazo, uma história ainda maior.

Por que as tarifas criam mais potencial para o compadrio do que outros impostos? Porque a forma como operam sob nossas leis oferece muito espaço para a aplicação discricionária. O secretário do Tesouro não pode simplesmente isentar seus amigos dos impostos sobre a renda (embora Andrew Mellon tenha concedido reembolsos altamente questionáveis na década de 1920).

O presidente pode, no entanto, isentar aliados das tarifas. E alguém realmente acredita que a administração Trump será ética demais para fazer isso? O próprio Trump se gabou de sua capacidade de manipular o sistema; ele se gabou de que não pagar sua parte justa dos impostos o torna "esperto".

As tarifas serão o único grande motor potencial do capitalismo de compadrio sob a nova administração? É duvidoso. Se você pensar bem, os planos de deportação de Trump também oferecerão muitas oportunidades para favoritismo.

Alguns dos conselheiros de Trump, notadamente Stephen Miller, parecem imaginar que podem rapidamente purgar a América de imigrantes que entraram ilegalmente nos EUA, reunindo milhões de pessoas e colocando-as em "vastas instalações de detenção". Mesmo que você deixe de lado questões legais, no entanto, isso provavelmente é logisticamente impossível. O que é muito mais provável que vejamos são anos de tentativas de aplicação dispersas, com batidas em várias empresas suspeitas de empregar tais imigrantes.

Mas quais critérios decidirão quais empresas se tornarão alvos prioritários para essas batidas e quais serão deixadas em paz, efetivamente isentas, por anos? O que você acha?

E há mais, é claro. Por exemplo, Trump sugeriu disposição para retirar as licenças de redes de TV que, em sua visão, fornecem cobertura desfavorável.

Se o capitalismo de compadrio está chegando, o que ele fará com a América? Obviamente, será ruim para a democracia, tanto por ajudar a consolidar uma grande vantagem financeira republicana quanto por garantir apoio empresarial vocal a Trump, não importa o quanto suas políticas causem danos. Também enriquecerá Trump e aqueles ao seu redor.

Além disso, um sistema que recompensa empresas com base em suas conexões políticas certamente exercerá um freio no crescimento econômico. Muitas tentativas de explicar o desempenho econômico desastroso da Itália na última geração atribuem o mau desempenho em parte ao compadrio generalizado. Um estudo recente descobriu que regimes populistas, sejam de esquerda ou de direita —regimes que geralmente também são capitalistas de compadrio— tendem a sofrer uma penalidade de crescimento de longo prazo de cerca de 1 ponto percentual a cada ano.

O tempo dirá. As evidências sugerem que as regras para ter sucesso nos negócios americanos estão prestes a mudar, e não de uma maneira boa.
Paul Krugman

Leitura entre o caos

 

O fotógrafo argentino Eduardo Soteras recebeu o prêmio Foto do Ano da UNICEF ao registrar duas crianças se refugiando entre livros numa biblioteca escolar destruída na região do Tigray, na Etiópia. Soteras tem documentado a situação das crianças no norte da Etiópia desde 2020


Kianush Sanjari matou-se para escrevermos sobre isto

Escrevo este texto porque, ao ler sobre a morte do jornalista iraniano Kianush Sanjari, senti que era essa a sua vontade: que alguém escrevesse sobre Fatemeh Sepehri, Nasrin Shakarami, Toomaj Salehi e Arsham Rezaei.

Poucos sabem quem eles são. Até Sanjari se suicidar, eu só conhecia um, o rapper Salehi.

No dia 13 de manhã, Sanjari escreveu nas redes sociais que iria matar-se se até às 19h os quatro prisioneiros políticos não fossem libertados. Às 19h, sem notícias de qualquer libertação, publicou uma fotografia tirada da cobertura de um centro comercial no centro de Teerão e atirou-se.

Escrevo sabendo que de nada serve. Ainda assim, aqui vai.

Fatemeh Sepehri, 60 anos, é uma activista política e defensora dos direitos das mulheres. Em 2004, viúva há 20 anos, licenciou-se em Administração de Empresas pela Universidade Ferdowsi de Mashhad. Após as eleições iranianas de 2009, o “movimento verde” e os meses de protestos, tornou-se ativista. Um irmão, Mohammad Hossein Sepehri, assinou a célebre Carta dos 14 Ativistas Políticos, em 2019, no 10.º aniversário das eleições de 2009, que pede democracia no país e a demissão do ayatollah. Os dois irmãos estão presos.

Sepehri foi detida a primeira vez em setembro de 2022, durante os protestos Mulher, Vida, Liberdade, contra a morte de Mahsa Amini e o uso obrigatório do véu religioso. Passou 30 dias no Ministério da Informação, onde foi submetida a interrogatórios, e a seguir foi para a prisão de Vakilabad.


Em janeiro de 2023, um tribunal condenou-a a um ano de prisão e uma multa de 20 milhões de tomans por “espalhar falsidades, perturbar a opinião pública através de atividades nos meios de comunicação social e presença em meios de comunicação fora do Irã”, diz a Comissão dos EUA para a Liberdade Internacional Religiosa.

Este verão, Sepehri foi condenada a mais 18 anos e meio de prisão depois de ter feito esta declaração pública: “Condeno o ataque do Hamas a Israel e digo em voz alta que a nação iraniana apoia a nação israelense. A República Islâmica e os seus agentes gastam a riqueza do Irã para comprar balas e atacar Israel. Nós, o povo do Irã, não queremos a guerra nem a matança de pessoas indefesas. Condeno mais uma vez o ataque do Hamas. Desde a ascensão ao poder de Ali Khamenei e a fundação da República Islâmica, o Médio Oriente não tem visto paz.” O Tribunal Revolucionário de Mashhad condenou-a na segunda sessão do julgamento por “propaganda contra o regime”, “colaboração com governos estrangeiros hostis”, “insulto aos ayatollahs Ruhollah Khomeini e Ali Khamenei” e “reunião e conluio contra a segurança nacional”.

No ano passado, Sepehri, muito doente, foi hospitalizada. Tem diabetes e hipertensão. Foi operada do coração e, uma semana depois, reenviada para a prisão. Em outubro, foi hospitalizada de novo. Diz a agência americana que ter-lhe-ão sido “negados os cuidados médicos adequados”.

Nasrin Shakarami, presa em 2024

Nasrin Shakarami é a mãe de Nika Shakarami, de 16 anos, morta a 20 de setembro de 2022, durante os protestos Mulher, Vida, Liberdade, quatro dias depois da morte de Masha Amini.

Nika destacou-se da multidão ao subir em um contentor de lixo no Parque de Laleh, em Teerã, com um lenço a arder e o cabelo descoberto.

Nove dias depois, a mãe soube que estava morta. Pediu explicações e o governo disse-lhe que Nika se tinha suicidado e que a morte não tinha nada que ver com os protestos. Mas quando foi identificar o corpo à morgue, a mãe notou que as mãos, pés e o tronco da filha não tinham qualquer sinal de violência e que a cara, ossos faciais, dentes e cabeça estavam partidos, e o crânio tinha uma contusão tão grande que estava amolgado.

Um mês depois, a televisão estatal CCTV transmitiu uma “reportagem” na qual apresentou a teoria do suicídio, mostrando imagens de um suposto vídeo que teria sido captado por uma câmara de vigilância onde se vê uma rapariga parecida com Nika a entrar no prédio de onde ela teria saltado. A mãe diz que não tem dúvida de que aquela não é a sua filha e mesmo quem que não conheceu Nika consegue ver que as raparigas são diferentes.

Pouco depois, a unidade de investigação da BBC recebeu um documento classificado como “altamente secreto”, seis páginas de um dossier de 350 sobre os protestos de 2022, que incluem entrevistas às forças policiais e militares que prenderam Nika e que estavam na carrinha onde a adolescente terá sido morta.

O relatório secreto, diz a BBC, revela “uma versão muito diferente das razões que levaram à sua morte e dos homens envolvidos”. A BBC dedicou “meses a verificar a autenticidade” do documento com “múltiplas fontes independentes”. Nika Shakarami terá sido morta dentro do carro das forças policiais a caminho da prisão, depois de um ato de abuso sexual. Um dos homens terá metido as mãos dentro das suas calças, a rapariga gritou e insultou-o, ele bateu-lhe na cabeça com muita violência e Nika morreu. Sem saberem o que fazer, com a adolescente morta no carro, os guardas ligaram às chefias, que lhes disseram para abandonarem o corpo numa rua.

Desde cedo que Nasrin Shakarami acusa publicamente as autoridades de terem assassinado a sua filha. Foi presa há pouco tempo.

Toomaj Salehi, condenado a prisão perpétua

Foi também em outubro de 2022, durante os protestos Mulher, Vida, Liberdade, que Toomaj Salehi, um rapper de 33 anos, foi detido por causa das suas canções a criticar o regime. Foi acusado de “espalhar corrupção na Terra” e condenado à morte pelo Tribunal Revolucionário de Isfahan.

Em 2021, o Irã executou 853 pessoas e, em 2022, 600. Salehi passou um ano na prisão e foi libertado sob caução em 2023. Mas em maio deste ano publicou um vídeo nas redes sociais no qual revelava pormenores sobre a sua prisão: foi “severamente torturado”, ficou com “ossos partidos”, “lesões oculares” e “dentes partidos”. Injetaram-lhe alguma coisa no pescoço que, disse-lhe outro preso, era adrenalina, para que se mantivesse consciente e sentisse o máximo de dor. Disse também que tinha sido posto em isolamento durante 252 dias seguidos e privado de cuidados médicos vitais.

No vídeo, o rapper amigo do cineasta Jafar Panahi conta que essa foi a quarta vez que foi preso. Nas vezes anteriores, por causa de canções a criticar o regime e a pedir liberdade e democracia. Logo a seguir ao vídeo, o músico foi preso outra vez. A pena de morte terá sido alterada para prisão perpétua.

Arsham Rezaei, preso em 2023

Este outubro, o Tribunal de Apelação de Teerã manteve a sentença de 50 chicotadas e uma multa de 16 milhões de tomans a Arsham Rezaei, preso na famosa prisão de Evin desde o ano passado. As novas acusações decorrem de um caso iniciado durante a sua prisão.

Preso por agentes de inteligência do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, Rezaei foi condenado em dezembro a 15 anos de prisão. A sua condenação foi decidida num processo conjunto no qual o juiz terá condenado 11 presos políticos a 95 anos de cadeia. É talvez a sétima ou oitava vez que o ativista é preso.

Em agosto de 2023, Rezaei publicou um vídeo no Instagram onde conta que 12 agentes do Governo tocaram à porta da casa da sua mãe. Identificando-se como “funcionários do departamento de eletricidade”, invadiram a casa e confiscaram todos os seus documentos e cartões bancários. Foi preso dois meses depois. Em 2018, foi julgado no Tribunal Revolucionário de Teerã sem a presença de um advogado de defesa e condenado a uma pena suspensa de oito anos e seis meses sob a acusação de “propaganda contra o sistema”, “reunião e conluio com a intenção de agir contra a segurança nacional” e de “insultar os líderes” do país.

Não sei que razões levaram Sanjari a escolher estes quatro presos políticos. Há centenas de presos políticos no Irão, muitos deles jornalistas.

Sei que Sanjari foi preso, libertado, que conseguiu fugir do país e em 2008 chegou aos EUA, onde recebeu o estatuto de exilado político. Até 2016, trabalhou como jornalista para o serviço de notícias em farsi da rádio e agência de notícias Voice of America, ao mesmo tempo que fazia trabalho de pesquisa em organizações de direitos humanos. Em 2016, a mãe ficou doente e Sanjari voltou para o Irã. Os amigos dizem que acreditou que já ninguém se lembraria dele, tantos anos depois. Mas foi preso e condenado a 11 anos de prisão, dos quais cumpriu cinco.

Agora, antes de saltar, escreveu no X: “Ninguém devia ser preso por exprimir as suas opiniões. Protestar é o direito de cada cidadão iraniano.”

Muita calma nesta hora da vida brasileira

Duas dúvidas rondam a cena política do Brasil: se Jair Bolsonaro (PL) vai ser preso é uma. A outra diz respeito à possibilidade de o país caminhar para um ambiente de concertação e civilidade na convivência político-institucional.

Guardadas as devidas proporções inerentes às duas conjunturas, algo parecido aconteceu no Brasil nos anos 1980, quando a pressão da sociedade dentro dos meios legais e a união das forças políticas em torno de um objetivo comum permitiram a transição da ditadura militar para o regime democrático.



A primeira pergunta posta acima permeia o universo da política, mas objetivamente só poderá ser respondida pela Justiça. Ela tem a última palavra. Portanto, isso não será resolvido por obra do afã das torcidas nem em decorrência das redes sociais.

O segundo questionamento depende das partes em conflito se mostrarem dispostas e capacitadas a fazer o que foi feito lá se vão mais de 40 anos, numa transição negociada, cujos antagonistas precisaram cada qual dar sua parcela de concessões.

Ativistas da luta armada hoje reconhecem que erraram na escolha de métodos extremos para combater o arbítrio instalado no Brasil a partir de 1964. Os golpistas da época tiveram êxito, o que lhes permitiu reagir com capturas, torturas, matanças, censura e toda sorte de opressões.


Tudo ficou legalmente perdoado, mas não esquecido sob a luz da realidade histórica. Perdurou a sensação de dívida em aberto. Isso levou a uma desconfiança permanente em relação à firmeza do compromisso das Forças Armadas de guardarem distância da política e de submissão ao poder civil.

A suspeita de que havia subversão incubada mostrou-se fundamentada na conspiração levada a cabo no governo Bolsonaro e agora desvendada pela Polícia Federal mediante investigações com responsabilizações que certamente virão, estas sim nos limites da Constituição.

A preservação do império da legalidade aconselha fortemente a superação do ambiente polarizado sob o qual vivemos há anos. A vontade retórica frequenta discursos, mas não se materializa em ações efetivas de que os polos oponentes estejam dispostos a retirar os dedos do gatilho em prol do apaziguamento de ânimos.

Isso depende de fatores que não estão em cena. Os adversários seguem sendo vistos como inimigos, as palavras sendo ditadas pela hostilidade exacerbada, a intolerância com a diferença de opiniões está presente e os conflitos normais postos como desejo de aniquilação dos contrários. Tudo isso incita à violência.

A atmosfera radicalizada é terreno fértil para defensores de rupturas. Os tais rebeldes "antissistema" se criam nesse tipo de solo. E quem pretende combatê-los com o uso das mesmas moedas, ainda que retóricas, fomentam a dinâmica do atrito.

Desrespeitam, assim, as balizas da política, que é a arte de construir convergências preservadas as divergências das visões de mundo. Na democracia não cabem as hegemonias absolutas. Alcançá-las parece ser o intuito de grupos que pretendem prevalecer sobre as demais correntes de pensamento.

Esse mundo de harmonia entre opositores é possível? Prova de que não é uma utopia vem de ser dada na recente eleição presidencial no Uruguai. Venceu a esquerda, substituindo a direita que antes havia sido vencida num ciclo de alternância em que não se considerou a vitória do adversário uma tragédia nem se fez da violação das leis uma profissão de fé eleitoral.

Segundo o chanceler uruguaio, Omar Paganini, isso se deve a solidez do sistema partidário que interdita a ação de aventureiros. Tem a ver, sobretudo, com a lição deixada por 11 anos de ditadura (1973-1984) sobre o valor da estabilidade democrática como bem a ser preservado em nome da sobrevivência de todos.

As falas da rataria

Deus está chocado. A Pátria e a Família, então, nem se fala. Pois não é que justo aqueles que vivem falando em Seus nomes demonstraram que, ao querer passar os adversários na bazuca, no punhal e no veneno, estão pouco ligando para os valores que os ditos Deus, Pátria e Família defendem? Deus, a Pátria e a Família se referem aos áudios descobertos outro dia, que mostram generais espumando de patriotismo e pregando ódio e ranger de dentes.

E que gente grosseira e desbocada, meu Deus! Se é assim que eles conversam em família ou nas igrejas que frequentam, eu não gostaria de vislumbrar meus sobrinhos ou os filhos pequenos dos meus amigos, das minhas amigas, ao alcance de tanta boca suja. Para eles, palavrão é vírgula. Duvida?

"O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o caralho. Quatro linhas da Constituição é o caceta!" "Kid Preto, porra, por favor, o senhor tem que dar uma forçada de barra com o Alto Comando, cara. Tá na cara que houve fraude, porra. Não dá mais pra gente aguentar essa porra. Tá foda! Tá foda!" "Vai agora esperar virar uma Venezuela para virar o jogo, cara? Democrata é o cacete! Não tem que ser democrata mais agora. Acabou o jogo, pô!" "O presidente tem que fazer uma reunião com o petit comitê. Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser a rataria!"

Ah, está explicado. Eles são a rataria, a turma abaixo da linha da ética. Mas Deus, a Pátria e a Família se perguntam: foi isso que aprenderam nos cursos que fizeram no quartel e lhes renderam aquelas chapinhas no peito? E o mais inacreditável vem agora: "Olha, general", diz um da rataria, "eu sou capaz de morrer, cara, pelo meu país, sabia? Pelo meu presidente, cara. Eu não consigo vislumbrar, né, meus sobrinhos, né, os filhos pequenos dos meus amigos, das minhas amigas, vivendo sob o julgo [sic] desse vagabundo [Lula]. Aprendi na caserna a honrar o meu presidente [Bolsonaro]. E eu tô pronto a morrer por isso".

Deus, que é Onisciente, avisa: "Vá devagar, meu rato. O ratão por quem você se dispõe a morrer vai te deixar na rua assim que as coisas apertarem para ele".

O golpe durou o governo inteiro

Não foi um governo. Foi uma conspiração que durou um mandato. Começou em 2019 e a arma inicial foi a mentira. Durante todos os quatro anos a mentira foi usada como método. O objetivo era sedimentar a ideia, por repetição, de que o sistema eleitoral era fraudado e, assim, minar a confiança na democracia. A partir daí seus atos pareceriam legítimos. Os desdobramentos foram sendo escritos mas eram previsíveis. Cercar-se de militares, cortejar as Forças Armadas, especialmente o “meu Exército”.

Escolher alvos que seriam atacados tanto pelo então presidente da República, quanto pela milícia digital para o desmonte institucional. Por fim levar seguidores para Brasília, produzir o “clamor popular de 64”.

O relatório da Polícia Federal ajuda a entender a força da mentira. “O grupo investigado criou, desenvolveu e disseminou a narrativa falsa da existência de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação”, diz a PF, no início do documento. E isso começou com Bolsonaro dizendo que houve fraude na eleição que ele ganhou. “O objetivo era sedimentar na população a falsa realidade”, para depois “ser utilizada como fundamento dos atos”.


Foi para isso que se criou a milícia digital, o gabinete do ódio. Não era apenas para hostilizar as pessoas que eles consideravam inimigos. A milícia escolheu alvos e os atacou por quatro anos. Mas o principal era o sistema eleitoral. “ Os produtores de dados falsos difundiram em alto volume, por multicanais, de forma rápida, contínua e repetitiva” a ideia de que houve fraude em 2018 e haveria em 2022.

“Por mais inverossímil que possa parecer” ela foi repetida para atingir o “público alvo”. E por que repetir tanto? “A repetição maçante das informações, mesmo que falsas, leva à familiaridade, e a familiaridade leva à aceitação.” Para completar, “os investigados fizeram uso de pessoas com posição de autoridade perante o público alvo”.

A rede da mentira era o pilar de tudo o que se seguiu depois. A trama se espalhou em núcleos e propósitos. Tudo sob o comando do beneficiário maior: Jair Bolsonaro, o homem que sempre sonhou com uma nova ditadura. O governo passou a funcionar em torno disso.

A Abin de Alexandre Ramagem não fazia inteligência de Estado. Ajudava na fabricação de mentiras. O GSI, do notório general Heleno, remanescente da linha dura do governo militar, também. Chefe da Casa Civil, depois ministro da Defesa, Braga Netto era o lugar-tenente do conspirador em chefe. Foi usado como peça chave, em 2021, quando Bolsonaro demitiu o Ministro da Defesa Fernando Azevedo e todos os comandantes. Ali, Bolsonaro achou que havia dado o golpe de mestre, escolhendo os que levariam as tropas.

O plano falhou. Há várias razões. Mas veja que, se o general Braga Netto tivesse permanecido ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira é que estaria no comando do Exército. O general Paulo Sérgio não só participou, como convocou uma reunião com os comandantes no dia 14 de dezembro para mostrar a minuta do golpe. Numa instituição baseada na hierarquia, o que aconteceria se o comandante do Exército dissesse sim?

No dia 5 de março, eu contei na minha coluna que os depoimentos dos ex-comandantes Freire Gomes e Baptista Jr haviam implicado diretamente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira. Disse que também Paulo Sérgio havia mostrado a minuta aos comandantes.

“É depoimento, mas está comprovado pela apreensão que foi feita”, me disse minha fonte na época. Contei que o general e o brigadeiro deram detalhes que preencheram lacunas. “E as peças foram se encaixando, como num quebra-cabeças”, me disse a fonte.

O relatório da PF é um imenso quebra-cabeças em que tudo se encaixa. Há provas robustas. Falas recuperadas, documentos apreendidos, reuniões gravadas, captura da presença dos indiciados nos locais e horas dos eventos. Além do decreto do golpe, em várias versões, havia o plano homicida “Punhal Verde e Amarelo”, a estrutura do gabinete de gestão de crise e a minuta 142. Os golpistas redigiram, discutiram, guardaram cópias e a Polícia Federal encontrou.

A ordem de Braga Netto para que a milícia digital atacasse Freire Gomes e Batista Jr. mostra como a mentira era uma arma. Os golpistas queriam neutralizar os obstáculos. Até o dia em que “neutralizar” significava matar. A mentira foi a primeira pedra no tabuleiro do horror que Bolsonaro e seus ajudantes tentaram impor ao país.

Bolsonaro apela a Lula e Alexandre de Moraes para não ser punido

Depois de governar quatro anos só pensando em dar um golpe de Estado, de jogar os brasileiros contra a Justiça, de lançar a descrença sobre o processo eleitoral e de apelar aos militares para que abolissem a democracia, o que Bolsonaro, agora, propõe?

A pacificação do país. Sim, uma anistia para todos os golpistas, inclusive ele. Seria o caso de lhe perguntar: “Se o golpe tivesse sido aplicado, haveria anistia para os presos pelo novo regime e indenização para as famílias dos que foram mortos?”

Nós, jornalistas, não parecemos interessados em fazer as perguntas certas a Bolsonaro, nem a contestá-lo face a face. O que mais nos interessa é arrancar dele declarações, se possível originais e bombásticas, para esquentar o noticiário e atrair mais likes.

A minuta do golpe de dezembro de 2022 teve três ou mais versões. Em uma delas, revisada pelo próprio Bolsonaro, estava previsto o assassinato de Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal.

Em nenhuma das versões falava-se em pacificar o país. Com receio de ser preso a qualquer momento, ou o mais tardar depois de julgado e condenado, Bolsonaro passou a clamar por uma anistia ampla, geral e irrestrita, e quanto mais rápida melhor. Diz

– Para pacificar o Brasil, alguém tem que ceder. Quem? Alexandre de Moraes. Em 1979, foi anistiada gente que matou, soltou bomba, sequestrou, roubou. Agora, se tivesse uma palavra do Lula ou do Alexandre no tocante à anistia, estaria tudo resolvido.


Bolsonaro esqueceu que a ditadura militar de 64 matou, soltou bomba, sequestrou, roubou e torturou à vontade. E que a anistia de 1979, que permitiu a volta dos exilados, perdoou todos os chamados “crimes de sangue” cometidos pelos militares.

Até outro dia, Bolsonaro negava que tivesse conversado com comandantes militares sobre a possibilidade de golpe. Ele jamais faria algo “fora das quatro linhas da Constituição”. Ontem, admitiu ter conversado sobre “artigos da Constituição”. Mas para quê?

Ele respondeu vagamente, sem que que lhe cobrassem precisão: “[…] para voltar a discutir o processo eleitoral. Mas a ideia logo foi abandonada”. Por que discutir o processo eleitoral se ele fôra concluído e o presidente eleito diplomado pela justiça?

A auditoria encomendada pelo Partido Liberal de Bolsonaro encontrou provas ou vestígios de fraude no processo eleitoral? Não encontrou. E a auditoria encomendada por Bolsonaro ao Ministério da Defesa encontrou provas ou vestígios? Também não.

Ora, então por que diabos, Bolsonaro não reconheceu a vitória de Lula, reuniu-se dezenas de vezes com militares e civis que defendiam um golpe de Estado e viajou em seguida aos Estados Unidos para não passar o comando do país ao seu sucessor?

De volta ao início: porque ele governou – ou desgovernou o país – só pensando em dar um golpe. Se fosse reeleito, daria um golpe por dentro corroendo as instituições e mudando as leis com a ajuda de um Congresso comprado com dinheiro.

Se derrotado no voto, permaneceria no poder com o apoio das Forças Armadas. A maioria dos 16 generais do Alto Comando do Exército foi contra o golpe. A totalidade dos generais, porém, assistiu sem se mexer à tentativa de golpe em 8 de janeiro.

Na noite daquele dia, quando um destacamento da Polícia Militar foi prender os golpistas acampados à porta do QG do Exército, o general Júlio César de Arruda, comandante do Exército, mobilizou sua tropa e não deixou. A prisão só ocorreu no dia seguinte.

Muitos dos acampados aproveitaram a madrugada para fugir – entre eles, dezenas de parentes de militares.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Leitura dos brasileiros vai de ladeira abaixo

O nível da leitura de um povo é indicador relevante do estágio cultural de um país e do seu grau de desenvolvimento. Nós vamos muito mal neste requisito, como revelou a sexta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil(*). Na comparação com o levantamento realizado em 2020, perdemos quase sete milhões de leitores. Pela primeira vez, a maioria das pessoas (53%) sequer leu uma parte de um livro nos últimos três meses. A recente pesquisa confirma uma tendência que vem desde 2015, quando o hábito da leitura dos brasileiros entrou em marcha descendente.

Por ser a mais abrangente, a pesquisa é a fotografia mais precisa da leitura no Brasil. Sua sexta edição revelou que, na comparação com o levantamento anterior, o brasileiro está lendo menos. Em 2020 lia, em média, quase cinco livros por ano, agora lê quase quatro. Outra revelação assustadora: apenas 27% leram um livro inteiro e não apenas parte de um livro.

Em nove anos, a perda de leitores foi de onze milhões de leitores, uma severa sangria, com impacto importante em todas as esferas da sociedade, particularmente na cultura e na educação. O diagnóstico da pesquisa é mais preocupante quando se leva em consideração a queda significativa de nove pontos, na faixa de cinco a onze anos de idade.

Essa é a faixa dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Nela, as escolas deveriam desenvolver nas crianças o gosto pela leitura. Estamos falhando em uma das missões mais importantes da educação, a de moldar e desenvolver habilidades sócioemocionais de nossos meninos e meninas e de abrir seu horizonte por meio da leitura. Quanto mais cedo os estudantes estabelecem o hábito de ler livros, melhor será o seu desempenho escolar e sua sociabilidade.

É para se preocupar.

Como revelou a pesquisa, a sala de aula vem perdendo espaço como o ambiente da leitura. Esse fenômeno foi confirmado pela coordenadora do Retratos da Leitura, Zoara Failla: “É preocupante notar como as salas de aula estão deixando de ser um lugar de leitura, conforme a série histórica demonstra”. De fato, a série mostra que em 2007, 35% dos entrevistados citaram o espaço escolar como o lugar onde costuma ler livros. Em 2011, foram 33%. Na edição seguinte, de 2015, as menções correspondiam a 25% da população. Em 2019, foram 23%. E agora 19%, “o menor índice já registrado”.

Diversos fenômenos contribuíram para a sala de aula perder densidade como espaço importante para se adquirir o hábito da leitura, mas certamente tem grande peso a falta de políticas públicas voltadas para o incentivo da leitura, bem como a falta de infraestrutura adequada e de recursos humanos para a escola cumprir esse seu papel. Afinal, muitas delas não contam com bibliotecas nem um bom acervo de livros.

Não só a escola, como instituição, vem falhando na sua missão de desenvolver, desde cedo, o hábito da leitura em nossas crianças e jovens. Em decorrência das intensas transformações e avanços tecnológicos, houve uma importante inflexão na forma como os brasileiros se ocupam seu tempo livre.

A Retratos da Leitura mostra que 78% dos entrevistados gastam parte desse tempo na internet acessando o WhatsApp (71%) ou navegando pelas redes sociais (49%). São significativos também os que assistem televisão (71%), escutam música ou rádio (60%) ou assistem a vídeos ou filmes em casa (53%). Segundo a coordenadora da pesquisa, isso afeta especialmente os mais jovens:

“Está crescendo o percentual nessa faixa etária daqueles que dizem que estão nos games, que estão assistindo a vídeos. Então, em vez de os pais estarem apresentando livro para entretenimento, fica mais fácil oferecer o celular com jogos e vídeos”. Assim, a instituição família também não está contribuindo para desenvolver em seus filhos o hábito e o gosto pela leitura.

Desde sua primeira edição de 2007, o Retratos da Leitura no Brasil tem constatado que o livro mais lido pelos brasileiros é a Bíblia. Os livros religiosos sempre estiveram entre os mais lidos, fenômeno reafirmado no levantamento de 2024. Quando se trata da leitura de obras da literatura o quadro é pior. Em média, os brasileiros leem meio livro por ano. Há uma inversão das curvas, até 2019 havia um número maior de brasileiros com hábito de leitura, agora a maioria é de não leitores. Também pela primeira vez é maior o número de pessoas que dizem não gostar de ler (29%) é superior ao que gostam, 26%.

Um povo de baixa leitura é um povo de baixa instrução. Não é de estranhar, portanto, o fato de 30% dos brasileiros serem considerados analfabetos funcionais. Isso se reflete no desempenho dos nossos alunos no sistema de avaliação do ensino. Também incide sobre a qualidade e produtividade da mão de obra brasileira, bem como na sua inserção no moderno mercado de trabalho, cada vez mais exigente de profissionais dotados de espírito crítico, capacidade de liderança, dotado de resiliência e espírito colaborativo.

A falta de leitura contribui negativamente para a inserção de nossa juventude na sociedade e para o exercício pleno da cidadania.
 Hubert Alquéres

(*) A Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil é uma realização do Instituto Pró-Livro com o apoio da Câmara Brasileira do livro (CBL), ABRELIVROS e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL). Ela teve a parceria da Fundação Itaú e o patrocínio do Itaú UNIBANCO. A aplicação da pesquisa foi feita pelo IPEC

Tempo de abundante colheita


Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança
Hannah Arendt

Mídia Ocidental: Branqueando o genocídio israelita e fabricando consentimento

Um Comitê Especial da ONU caracterizou a guerra de Israel em Gaza como genocídio, enquanto a mídia "livre" ocidental abandonou sua responsabilidade ética de cobrir e/ou relatar objetivamente a conduta das guerras de Israel em Gaza e no Líbano.

Os veículos de mídia corporativos ocidentais, sem exceção, concordaram com as diretrizes israelenses que proibiam repórteres de entrar em Gaza. Jornalistas incorporados ao exército israelense relatam apenas o que Israel permite que observem, criando uma narrativa unilateral fortemente filtrada.

A ausência programada privou o público ocidental de informações críticas para mostrar o que a UNICEF descreve como o lugar mais perigoso do mundo para crianças. Desconsiderando essas realidades, os veículos de mídia corporativos ocidentais frequentemente desumanizam os palestinos, descartando suas queixas enquanto demonstram abertamente empatia pelos israelenses.

Um exemplo disso é que eles cobrem amplamente a realocação de centenas de famílias israelenses, enquanto oferecem pouca ou nenhuma cobertura sobre o escolasticídio de 625.000 crianças palestinas que não conseguem frequentar a escola pelo segundo ano porque Israel danificou ou destruiu 85% das escolas de Gaza.


Da mesma forma, eles desconsideram o uso documentado pela ONU de Israel de “fome como arma de guerra... destruindo sistemas vitais de água, saneamento e alimentação”, e negligenciam a situação de 90% da população deslocada internamente de Gaza, muitos dos quais foram forçados a se mudar nove ou dez vezes . Além disso, a omissão intencional da mídia sobre a destruição de todo o sistema de ensino superior, com 100% das 12 universidades de Gaza demolidas, deixando 88.000 estudantes incapazes de continuar seus estudos.

Assim como com a destruição sistemática do sistema educacional de Gaza, a mídia “livre” falhou em relatar criticamente a estratégia deliberada de Israel para desmantelar o sistema de saúde de Gaza. De acordo com a ex- Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, essa estratégia envolveu “ataques implacáveis ​​e intencionais a pessoal e instalações médicas”, incluindo a morte, detenção e tortura de pessoal médico como parte de uma “política concertada para destruir o sistema de saúde de Gaza”.

Até o final de julho de 2024, a Organização Mundial da Saúde relatou que Israel havia conduzido 498 ataques a instalações de saúde. Dos 36 hospitais de Gaza, menos de 16 estão parcialmente operacionais, levando ao colapso quase total do sistema de saúde.

A mídia "livre" gerenciada envia inúmeros repórteres a Tel Aviv para cobrir a eficácia do sistema de mísseis Iron Dome de Israel, mas ninguém no local investiga a fome no norte de Gaza ou sequer mostra o rosto de uma das aproximadamente 16.800 crianças assassinadas ou a angústia de mais de 17.000 crianças que perderam um ou ambos os pais.

Ao mesmo tempo, a mídia programada inunda as telas com imagens de uma janela de vidro quebrada em uma colônia “somente para judeus”, mas nenhuma câmera tem permissão para capturar as 163.778 unidades residenciais devastadas em Gaza.

A chamada mídia ocidental “livre” não questiona ou checa os fatos da desinformação israelense, hasbara, quando jatos americanos alvejam escolas ou demolem torres residenciais sob o pretexto de “centros de comando” dentro dessas instalações. Pior ainda, a mídia propaga uma narrativa falsa, retratando as políticas malévolas de Israel como atos de benevolência porque eles emitem um aviso antes de bombardear casas em pedacinhos, e então assassinam civis enquanto eles evacuam sob as mesmas ordens.

Jornalistas ignoram vozes palestinas apontando que a destruição em larga escala de casas, “abrigos seguros” e infraestrutura crítica é parte de uma estratégia israelense calculada para tornar Gaza inabitável e deslocar à força seus moradores. Suas reportagens de longe normalizam a violência israelense e a limpeza étnica enquanto repetem a Novilíngua israelense sem escrutínio.

Um exemplo gritante da mídia abdicando de sua objetividade é o caso do Hospital Al-Shifa, onde oficiais militares israelenses exibiram um elaborado modelo 3D supostamente representando um centro de comando abaixo do hospital. A desinformação israelense foi ecoada pelo presidente dos EUA Joe Biden e pela Casa Branca, amplificando ainda mais as falsas narrativas israelenses para um público desavisado.

Em novembro de 2023, o Hospital Al-Shifa foi ocupado pelo exército israelense. Médicos foram presos, vários torturados até a morte sob custódia israelense, e o hospital foi forçado a sair de serviço. Jornalistas ocidentais, incorporados ao exército israelense, juntaram-se ao exército israelense para mostrar ao mundo o que foi alegado ser um centro de comando militar abaixo do hospital. No entanto, para descobrir que os únicos edifícios subterrâneos no vasto complexo do hospital foram originalmente projetados pelos arquitetos israelenses Gershon Zippor e Benjamin Idelson, e encomendados pelo Departamento de Obras Públicas israelense ocupante em 1983.

A ferramenta de propaganda israelense incorporada, também conhecida como mídia ocidental, acompanhou o principal oficial de desinformação de Israel em um tour pelo Hospital Al-Shifa, mas saiu de mãos vazias, incapaz de encontrar o ostentado "centro de controle de comando" ou quaisquer instalações militares sob o hospital. A Human Rights Watch concluiu mais tarde que o ataque militar ao hospital constituiu um crime de guerra após não fornecer evidências "para justificar a revogação do status do hospital como protegido pelas leis de guerra".

Em vez de responsabilizar Israel pela destruição de uma grande unidade de saúde, a mídia incorporada continuou a comercializar mentiras israelenses para desculpar violações do direito internacional. A falta de reportagem crítica e checagem de fatos é uma traição às responsabilidades jornalísticas, servindo efetivamente como aprovação implícita ou, no mínimo, normalização dos crimes de guerra israelenses.

Outro caso de como a mídia facilita a violência e a agressão é a adoção de jargões com nuances israelenses que dessensibilizam os leitores e redirecionam o foco. Por exemplo, ao enquadrar as guerras de Israel contra os palestinos em Gaza e o povo do Líbano como uma guerra contra o “Hamas” ou o “Hezbollah”, a mídia emprega eufemismos que desviam a responsabilidade israelense pelo impacto mais amplo da guerra sobre civis inocentes.

Esse enquadramento encobre a culpabilidade israelense pela destruição de 80% das casas, 60% dos hospitais, 85% das escolas, 100% das universidades, o deslocamento de 90% da população, a destruição de aldeias e a fome de crianças, retratando essas atrocidades como meros "danos colaterais" ou vítimas não intencionais em um fogo cruzado.

Além disso, a negligência da mídia ocidental em contextualizar as violações israelenses do direito internacional humanitário, as conclusões do Tribunal Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional, deixa os leitores desavisados ​​das ramificações legais e obscurece a responsabilização. Ao fazer isso, a mídia ocidental se torna, consciente ou inconscientemente, uma plataforma cúmplice da hasbara israelense .

A mídia ocidental até abandonou colegas jornalistas locais que permaneceram em Gaza e foram propositalmente alvos do exército israelense. O ataque de Israel à verdade, incluindo ataques a jornalistas e suas famílias, não tem precedentes em zonas de guerra. De acordo com o Committee to Protect Journalists (CPJ), Israel assassinou 137 jornalistas e profissionais da mídia, tornando-se o mais mortal desde que o CPJ começou a coletar dados em 1992.

A hasbara sionista, apoiada por uma poderosa plutocracia da mídia e grupos de interesses especiais influentes no Ocidente, normalizou as mentiras e o preconceito israelense contra os palestinos por mais de 76 anos. Essa narrativa construída pela mídia distorce a compreensão pública, manipula o discurso público e molda os debates políticos.

Inevitavelmente, a disseminação sistemática de desinformação molda uma visão unidimensional do conflito, suprime a dissidência e posiciona a mídia ocidental como um instrumento fundamental na fabricação de consentimento para as guerras de genocídio de Israel.
Jamal Kanj, autor de “Children of Catastrophe”

A liberdade em quarentena

No Ocidente, que é onde minha vista alcança, a questão da liberdade nesses tempos remete sobretudo ao medo. Como o professor Sul-coreano-alemão, Chul Han, descreve, “a liberdade não é possível onde reina o medo. Medo e liberdade se excluem mutuamente”. O medo aprisiona a sociedade. Contraposto ao espírito da esperança, sobretudo à esperança ativa, comprometida com movimentos de busca do progresso, ele a deixa em permanente quarentena (Byung-Chul Han, 2023).

Por certo, isso não signica esquecer o fato de que há diversos países no hemisfério que enfrentam essa questão na dimensão mais concreta, dura, primitiva - de histórica privação de liberdades públicas. Países onde nunca houve instituições propriamente democráticas, a exemplo entre outros de Zimbábue, Ruanda, Gabão ou Burundi. Outros há em que elas existiram mas foram interrompidas por revoluções autodenominadas democratizantes, mas que se corromperam em regimes autoritários como Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Em todos esses países, na ausência quase absoluta da liberdade, o medo do sistema, o temor aos tiranos, está incorporado permanentemente ao kit de sobrevivência mental dos indivíduos na esfera pública.

Mas não é desse medo que cogito aqui. Tampouco se trata do “medo líquido” de que fala Bauman, cujas raizes são as incertezas relacionadas aos múltiplos riscos da “globalização negativa”. Sejam os desastres climáticos e ambientais, as crises econômicas, as pandemias, ou o terror ( Bauman, 2008).

Dirijo a lente para o sentimento que tem prosperado nesse primeiro quartil do século XXI, difundido regular e sistematicamente - com organização, disciplina e método- , pela extrema direita, em suas diferentes versões nacionais. Um medo “arquitetado”.


Assim, às velhas formas de supressão das liberdades vem se somar agora a estratégia do iliberalismo, promovida pela ultra direita internacional. Nela, a democracia é corroída por dentro, conforme o modelo exitoso da Hungria, de Viktor Orbán (Cas Mudde, 2023). O sucesso dessa estratégia se baseia na promoção desenfreada do medo.

O medo que assume caráter coletivo é polarizador. Magnica as divisões dentro da sociedade. Politiza e aprofunda diferenças que antes se viam pouco valorizadas, eram toleráveis e conciliáveis. Ele produz e dissemina uma sensação de instabilidade que termina por se materializar efetivamente, estimulando descontentamento e protestos, conitos e até derrubadas de governos. Esse medo redesenha o debate público, e leva os eleitores a abandonarem seus partidos e lideranças tradicionais, galvanizando o apoio a outsiders, em geral líderes autoritários que lhes acenam com segurança e proteção. O medo justica, por m, as políticas repressivas, desde a aceitação da restrição de direitos até mesmo o aplauso à hipótese de governos totalitários, como resposta ao que Hanna Arendt já conceituara como “inimigos objetivos”, geradores de suspeita generalizada e indiscriminada, sobre os quais se determinava o “uso da mentira”, administrado primeiro pelo partido e depois pela máquina do Estado (Arendt, 1951).

Nos tempos atuais, para promovê-lo e fazer adoecer a democracia representativa os venenos são atualizados, bem como a posologia adotada. Envolve doses elevadas de desinformação deliberada e disseminação maciça de fake news na internet.

O pior é que não há antídotos cem porcento ecientes. Não há como evitá-los de todo. A emergência das redes sociais tornou isso impossível. Mas é necessário coibí-los. Limitá-los em alguma medida. Sobretudo pela regulação das plataformas, como fez a União Europeia. As deepfakes criadas por inteligência articial e os milhões de usuários e bots, que distribuem informação apócrifa em redes criptografadas de ponta a ponta, agravaram o problema. Elevando o desao a um patamar bem superior ao que foi no passado o de controlar a propaganda política em jornais, rádios e TVs (Lavareda, 2024).

Ocorre que, em países como Brasil e Estados Unidos, há uma enorme resistência à regulação de plataformas e redes. A extrema direita paralisa essa agenda nos respectivos congressos. Anal, é difundindo o medo, e a partir dele agredindo ora as minorias, ora o establishment, mesmo quando estão claramente associados aos interesses das elites econômicas, é com essa fórmula que os novos populistas se valem dos algoritmos das redes para conquistar apoio eleitoral. A combinação dos interesses econômicos das plataformas e da força da ultra direita nesses países torna muito difícil caminhar nessa direção.

A expectativa do mundo se volta nesses dias para tentar prever o que acontecerá na principal potência, os Estados Unidos da América, a partir de 20 de janeiro do ano próximo. Mas a rigor não é necessário qualquer exercício adivinhatório. Basta reler os discursos e rever a propaganda da campanha. Até o momento, temos um show de coerência. Os nomes anunciados para o novo gabinete, por mais bizarros que pareçam a muitos, são pers totalmente congruentes com a retórica do então candidato.

Portanto, é mais que justicado o temor de um retrocesso signicativo na agenda de combate ao aquecimento global, numa quadra em que se multiplicam os desastres climáticos; do anunciado distanciamento dos líderes europeus, agravado pelo maior alinhamento com a Rússia; e o temor de uma redução substancial do apoio à OTAN, e especialmente à Ucrânia, que será levada à paz de joelhos. Na agenda interna, haverá deportações em massa de indocumentados; perseguição a funcionários que no passado não foram complacentes com iniciativas ilegais; demissões em massa de servidores públicos, a pretexto de reduzir a burocracia; posturas negacionistas na condução da saúde pública; e até mesmo a extinção do Departamento Federal de Educação. Tudo isso sob a direção e batuta ideológica da Direita-Tech representada por Elon Musk e J.D. Vance.

Por que Trump volta à Casa Branca? Porque que o medo já estava sucientemente instalado na alma dos americanos ao tempo da votação.

A poucos dias da eleição, uma pesquisa do jornal New York Times, em conjunto com o Siena College, mostrava a vitória de Trump no voto nacional por um ponto percentual (Trump, 47%, Harris, 46%) . Como sabemos, o resultado não foi muito diferente: Trump teve no voto total 50%, e Harris 48.4%.Uma diferença de + 1.6.

Aquela pesquisa mostrou que 76% dos americanos acreditavam que a democracia no país estava sob ameaça. Uma opinião disseminada em todos os níveis de renda e escolaridade. Com presença simétrica nos dois contingentes eleitorais (com 77% entre os eleitores de Harris, e 76% entre os de Trump). Por seu lado, em outro levantamento, o Instituto Gallup revelou que o medo dos imigrantes havia assumido grandes proporções . Para um inédito percentual de 82% dos eleitores republicanos, a imigração aparecia como questão super importante para ser levada em conta na eleição.

Os norte-americanos foram às urnas sob dois signos combinados: o do medo generalizado de que sua democracia estivesse em perigo; e um segundo, potencializado pelo primeiro, o da ansiedade especíca movida sobretudo pelo descontentamento com o governo do dia, com 62% acreditando equivocadamente que a economia estava piorando e 46% insatisfeitos com sua situação econômica contra apenas 25% de satisfeitos.

Perdeu o partido no poder. O que tem ocorrido com frequência no pós pandemia em diversos outros países que enfrentaram diculdades, especialmente no capítulo de inação e juros elevados. Como prescreve a “teoria da inteligência afetiva”, a ansiedade gerada na base eleitoral dos partidos incumbentes cria uma abertura que é usada para encorajar a defecção de eleitores na quantidade suciente para mudar a correlação de forças em favor dos desaantes. ( Mackuen, Marcus, Neuman, and Keele, 2007)

Porém, cabe enfatizar que, se a economia jogou mais uma vez um papel central no voto, o descontentamento com ela ocorreu dessa vez agravado por um clima de medo, propelido por fake news poderosas, pervasivas, mesmo quando desmentidas de forma contundente pelos fatos.

“Haitianos comendo gatos” e “votando em massa”; vídeos produzidos na Rússia denunciando “operações irregulares do FBI”; “democratas apoiando o aborto até depois do nascimento”; Estados Unidos ocupado por “hordas de estrangeiros criminosos importados pelo governo das masmorras do terceiro mundo”. Todas, notícias falsas. Somente as postagens de Elon Musk com alegações falsas e vídeos adulterados acumularam bilhões de visualizações segundo o Grok, concorrente do ChatGPT. Grok que é do mesmo Elon Musk, que doou 200 milhões de dólares e fará parte do governo Trump.

Concluindo, o certo é que a inação aliou-se ao medo, e os americanos deram lugar - com o novo governo Trump majoritário na Câmara e no Senado, e respaldado pela maioria conservadora nos Suprema Corte - a uma era de incerteza como poucas vimos antes. Nesse momento, não é exagero armar, voltando à metáfora de Chul Han, que a liberdade do mundo entrou em quarentena.