segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Pensamento de Natal

 


Querido Papai Noel


Em um país tão perverso, no qual o imprescindível equilíbrio das contas públicas esbarra em um Parlamento que limita o reajuste real do salário mínimo e ao mesmo tempo libera o fura-teto nos ganhos dos privilegiados de sempre, é difícil se imbuir do espírito do Natal. Nem os mais otimistas, entre os quais me encaixo, encontram ânimo diante da sucessão de escárnios perpetrados em todas as esferas e níveis de poder. Mas é Natal, então, escoro-me na ficção do bom velhinho, a quem se remetem desejos – mesmo os impossíveis.

Os pedidos na cartinha não são muitos e se concentram na nossa terra natal, ainda que a utopia maior seja tempos de paz, com o fim de guerras e de governos autocráticos, repressores e criminosos. E antecipo as desculpas por beirar a pieguice, talvez perdoável em um texto natalino. Vamos lá:

Queria que divergências não se tornassem brigas de foice e morte; que diferentes respeitassem as diferenças dos outros, fossem elas políticas, intelectuais, sociais, de crença, cor ou gênero; que os argumentos e não a imbecilidade prevalecesse no debate entre opostos.

Que tentativas de golpe como a gestada antes do Natal de 2022 fossem punidas e enterradas de vez.

Peço que os governantes governem sem sugar o pagador de impostos e quase nada devolver a ele em serviços; que as polícias prendam bandidos sem matar inocentes com balas perdidas ou em falsos confrontos; que a corrupção deixe de ser a principal cartilha de regência do país.

Que não se privilegiem alguns fidalgos acima da lei e todos possam ser iguais perante ela, seguindo a óbvia e não cumprida determinação constitucional.

Mesmo sabendo que não há qualquer chance, queria que deputados e senadores olhassem para além dos milhões que buscam (e secretamente conseguem) abocanhar para os seus quintais, para os próprios bolsos e para uns e outros que os financiam; que a chantagem com emendas pudesse ser estancada – e até as tais emendas, limitadas.

Que os eleitos não agissem no sentido inverso da expectativa de quem os elegeu; que pelo menos tentassem representar o voto a eles empenhado; que não aprovassem absurdos como a proibição de aborto para crianças estupradas, facilidades para compra de armas de fogo e munições, perdão para desmatadores e garimpeiros ilegais.

No particular, rogo que os vereadores paulistanos se arrependam da autorização para o corte de 10 mil árvores, boa parte nativas, em uma cidade que clama por verde; que a Amazônia sobreviva e com ela todos nós; que a COP 30, que acontecerá em Belém, vá além da festa e dos fogos de artifícios.

Quero ainda que o Judiciário baixe a bola, limitando-se às suas atribuições originárias. Ou seja, que o STF volte a ser Supremo, acima das peraltices da política, sem a arrogância e a persona de salvador da pátria que se auto-atribuiu.

Faço figa para que o governo consiga equilibrar as contas; que a entidade mercado compreenda que há risco, mas há ganhos (alta do PIB, quase pleno emprego); que bolsonaristas e parcela do PT que torcem contra deixem o ministro Fernando Haddad trabalhar; que o crescimento da economia ultrapasse a linha do esquentamento do consumo sustentada por programas sociais e incentivos fiscais; que a inflação não volte a nos empobrecer ainda mais.

Importantíssimo (grafado com asterisco): que Lula se renda aos textos pré-escritos, abandonando de vez o improviso alimentador do caos.

Na verdade, não se trata deste ou de outro governo. O Brasil é um país disfuncional há muitos natais. Finge tentar, cisca daqui e dali, mas até o seu repetitivo voo de galinha acaba sempre pesando sobre os mais pobres.

Por aqui, Noel, é de chorar. Enquanto alguns poucos se deliciam com mimos e regalias, milhares de crianças pobres pedem cestas básicas nas cartinhas que escrevem para você.

Frustradas em anos anteriores, desta vez elas estão sendo atendidas em um trabalho louvável da ONG Ação Cidadania. Ufa! Pelo menos existem aqueles que nos fazem crer – e emocionar – com o espírito do Natal. É na toada deste último parágrafo que desejo boas festas a todos.

O que escorre sob a ponte da civilidade

Para Antoine de Rivarol, polemista do século 18, a Revolução Francesa terminou quando acabaram as execuções em praça pública, e o povo já não mais cantava "ça ira, ça ira /les aristocrates on les pendra" ("vai dar certo, vai dar certo / vamos enforcar os aristocratas"). Ou seja, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade seriam coisa de intelectuais iluministas, enquanto à massa interessava o espetáculo da vingança pela guilhotina. Essa impulsão parece intemporal, próxima ao que os alemães conhecem como "Schadenfreude", o prazer de infligir sofrimento a outros.

As noções de sociopatia e psicopatia, pertencentes ao campo cognitivo desse fenômeno, têm valência política. Mas não são exclusivas de época nem de classe social. Ajudam a explicar o comportamento da Polícia Militar de São Paulo. Uma sociopatia fardada é matriz da violência de psicopatas contra marginais pés de chinelos, exibindo estatísticas ineficazes, recuando apenas da boca para fora ante o alarme da mídia. À boca pequena, há o consenso de que isso rende votos, de que extermínio teria grande aprovação popular. O "tô nem aí" do governador é a frase mais obscena do ano.


Os alvos críticos da agenda progressista costumam ser os aparatos de Estado, a economia e as elites. É difícil sondar a alma popular, as pesquisas surfam na superfície plebiscitária dos números. Daí a surpresa quando ressoam vozes aprobatórias nos EUA para o assassinato de alto executivo da indústria da saúde. O ato frio do acusado, filho da elite americana, fica em segundo plano pela aparência e educação do jovem.

Pode-se especular que o sentimento seria outro se o assassino fosse negro. Ainda assim, o que está mesmo presente é a violência latente, em intensidade variável, numa sociedade que favorece impulsões de vingança. É possível lançar um olhar crítico para as estruturas, as diferenças de classe em termos de renda e cultura. Mas há outro lado, despercebido pelo racionalismo analítico, presente na grande literatura: "Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura" (Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa).

Entretanto amor e ódio são modos fundamentais de existência, permeáveis à passagem de um para o outro, o que se exacerba quando a incivilidade é alimentada pelo debilitamento das instituições e dos processos civilizatórios. Por isso, na percepção de desamparo ou de medo, em plena modernidade civil, o odioso sentimento de vingança ainda se acende como brasa do passado. Intemporal, ele irrompe na insegurança cidadã diante da criminalidade ou de impiedades industriais. E, claro, preside à popularidade eleitoral de sociopatas.

Sob a ponte da civilidade, escorre, surdo, o ódio, fonte do inaceitável. É o que sempre acontece nos picos de barbárie. Dirigentes que hoje o estimulam transbordam da lata de lixo da história como baratas refratárias ao espírito do tempo, que é avesso ao patológico "espírito de corpo" de tropas fardadas. O tempo vivido é de repúdio ao horror em estado puro do passado.

Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

José Saramago

A busca pela ignorância

Aristóteles escreveu que o ser humano busca o conhecimento. Acho até que dá para avançar um pouco mais e afirmar que quase tudo de bom que a civilização nos proporciona se deve ao fato de termos esse impulso natural pelo conhecimento e sermos capazes de acumulá-lo coletivamente e transmiti-lo às próximas gerações.

Se cada pessoa que chega ao mundo tivesse de reinventar a roda e recriar a escrita por conta própria, a história de nossa espécie seria muito diferente. Talvez nem houvesse História.


Mark Lilla mostra em "Ignorance and Bliss" (ignorância e contentamento) que Aristóteles capturou apenas parte do quadro. Existem situações em que humanos fazemos uma opção preferencial pela ignorância. E existem períodos históricos em que essa tendência assume proporções epidêmicas. Vivemos numa dessas épocas.

A ignorância voluntária se manifesta das mais variadas formas. Ela pode vir como crença em falsos profetas, em rumores infundados, em pensamento mágico e outras formas de fanatismo. Em muitas dessas situações, optamos por não saber porque a busca pela verdade nos obrigaria a questionar coisas que julgamos já saber e que nos dão conforto e senso de propósito.

Lilla destrincha esse e outros mecanismos psicológicos pró-ignorância e o faz recorrendo a não apenas a situações do mundo real como também da literatura. Sófocles, Dostoiévski e Freud são grandes contribuidores do livro, o que torna sua leitura um smorgasbord intelectual.

O autor reserva palavras especialmente duras para Paulo de Tarso. Segundo Lilla, foi este santo católico que criou e deu lustro a uma ideologia anti-intelectualista que se fixou no pensamento cristão e depois vazou para sociedades seculares.

O curioso é que o próprio Paulo não era um ignorante, muito pelo contrário. Ele conhecia bem a filosofia grega e era versado na lei judaica. Mas, imbuído do espírito prosélito dos fanáticos, pensava que uma verdadeira conversão ao cristianismo passava pela destruição de crenças anteriores. Foi Paulo de Tarso que deu respeitabilidade à ignorância.

Pequeno dicionário do Brasil

Aventuro-me a apresentar o dicionário do Brasil que chega ao final de 2024, desejando a todos os meus leitores Votos de um Feliz Natal e Próspero 2025.


A

Autoridade – Essencial para o exercício do Poder e o governo do Estado. No Brasil, tornou-se sinônimo de caciquismo, coronelismo, mandonismo, familismo, filhotismo, assistencialismo, patrimonialismo.

B

Bala – É o que não falta aos grupos armados, cujo estoque de armamentos é dos mais modernos e poderosos. Balas perdidas no RJ matam crianças. Conceito de “munição” de campanha política. Exemplos de locuções: “faltou bala; o candidato tem ainda muita bala”.

Bíblia – Manual mais lido nos cárceres brasileiros, que funciona como uma espécie de “ponte” entre pastores de credos e seitas religiosas e detentos. Disponível em mesinhas de criados-mudos de hotéis do Interior do país.

C

Corrupção – Desvio amoral e aético que está impregnado na alma brasileira, decorrente de heranças coloniais.

Crise – Um dos mais recorrentes termos do vocabulário nacional. De tão constante na vida das pessoas, deixou de causar medo.

D

Deus – Uma das expressões mais usadas para designar perplexidade, espanto, indignação, admiração, incredibilidade, descrença. Vem geralmente acompanhada do termo “do céu”. Lula seria Deus.

Diabo – Imprecação comum no cotidiano dos brasileiros, geralmente destinada a mandar outra pessoa para o reino dos infernos. O mercado é diabo, Lula é Deus.

Dólar – Referência diária para interpretar a fragilidade nacional. Um dólar vale R$ 6,30.

E

Empurrar com a barriga – Adiar, protelar decisões, levar devagarzinho, dando a ideia de que a coisa está andando sem avançar, do tipo patinando numa esteira

Executivo – Expressão mais conhecida para designar profissionais bem-sucedidos e com boa remuneração no mercado. Na esfera política, o Executivo é o mais visível dos Poderes.

F

FDP – (Filho/a da…) – Imprecação mais comum contra adversários, inimigos, opositores ou pessoas que fizeram alguma maldade ao interlocutor. Expressa raiva, ódio, indignação, condenação, desprezo etc.

Futebol – Paixão nacional, motivo de alegrias e tristezas. Ao lado do carnaval, é uma das grandes alavancas de mobilização de massas.

G

Gosto – O brasileiro tem gosto para tudo. Não há homogeneidade na escala dos gostos nacionais. As diferenças não se apresentam apenas no plano estético, mas na esfera dos alimentos, da música, dos perfis admirados, das belezas naturais.

H

Hilário – O brasileiro gosta de rir. Tira motivos para rir até em velório. Entre uma coisa séria e uma hilária, esta é a preferida pela alma nacional.

Hino (Nacional) – Mais conhecido e recitado nas primeiras estrofes. Como é longo, costuma-se, ao final, balbuciá-lo, numa espécie de mentirinha para se dizer que a pessoa sabe cantar o hino todo.

I

Igreja – Historicamente, conceito associado à Igreja Católica. Ultimamente, termo mais associado às seitas religiosas ou à Igreja Universal do Reino de Deus e outros credos.

J

Jeitinho – Capacidade de driblar situações para conseguir atingir metas e objetivos.

Judiciário – Fonte de poder e mando, espaço de tradição e credibilidade. Nos últimos tempos, a identidade incólume de instituição sagrada passou a frequentar a agenda de desconfiança dos brasileiros.

L

Ladrão – Palavra muito usada do vocabulário nacional. Termo aplicado aos juízes de futebol e, com mais força, aos políticos

M

Mãe – Tronco familiar dos mais respeitados no país, servindo, paradoxalmente, ao maior conjunto de imprecações da linguagem cotidiana das ruas. “Filho de uma mãe”, intenção de dizer que o interlocutor não é bem filho de uma mãe.

Massas – Contingentes amorfos, que agregam letrados ingênuos a iletrados sofridos, bafejados pelos candidatos de quatro em quatro anos.

N

Nação – Está longe de ser implantada, quando se considera a identificação com Pátria e valores.

Natureza – O tema dos próximos tempos. Expressão que começa a tomar vulto nas consciências de grupos de classe média e entidades de defesa do meio ambiente.

O

Obrigação – O brasileiro cultiva a obrigação quase na marra.

Ordem – É uma coisa que pouco se vê nos espaços nacionais.

P

Paixão – Sentimento muito peculiar ao caráter brasileiro. Cada coração abre espaços enormes para abrigar ciúmes, casos conflituosos, pequenas raivas do cotidiano ou discursos eloquentes em defesa do time predileto.

Progresso – Ao lado da Ordem, trata-se de pedaço do ideário que povoa o imaginário nacional. Como o Progresso está demorando, a sensação é a de que o termo denota a falta de seriedade.

Q

Quase – Assim como o “mais ou menos”, o quase traduz a mania do brasileiro de querer permanecer na esfera intermediária. “Quase acertei”, “fulano quase se elegeu”, “o time quase ganhou”.

R

Razão – Fator em crescimento na ordem dos valores sociais. A taxa de racionalidade cresce.

Renda – Fator de grande disparidade social. Quase 40% da população brasileira vivem abaixo da linha de pobreza.

S

Segurança – Preocupação permanente dos brasileiros, forte determinante do PNBinf (Produto Nacional Bruto da Infelicidade). Tema central da campanha de 2026. Valor em queda no mercado de valores.

T

Terra – É o que não falta ao país. E é das coisas mais reclamadas por imensos contingentes. Um país de muita terra com muita gente sem-terra.

U

União – A união é um dos mais fortes ícones da brasilidade. No capítulo da sociedade, o abismo entre as classes sociais denuncia a intensidade da desunião e da desigualdade.

Urna – Lugar sagrado onde o eleitor guarda sua arma, o voto. Urna eletrônica, lugar considerado seguro. Mas há quem questione.

V

Valeu – Tempo verbal que funciona mais como interjeição de aprovação, quando um dos interlocutores, em agradecimento ou reconhecimento, abre a palavra para anunciar o célebre: valeu

Vício – É coisa muito comum na vida do brasileiro, a partir do vício de fumar, de andar com o braço na janela do carro, de desobedecer a leis e códigos.

X

Xingar – Mania frequente dos cidadãos. Xingar a mãe é a coisa mais comum.

Z

Zorra – Bagunça, tem muito a ver com algumas situações nas administrações públicas (esferas federal, estadual e municipal).

Os militares não estão sozinhos

Os militares estão na berlinda, sendo avaliados pela opinião pública diante das denúncias de tentativa de dar um golpe de Estado, derrubar o governo Lula, matar o presidente, seu vice, o Ministro do STF Alexandre de Moraes e rasgar a Constituição.

No governo Bolsonaro, esses militares tinham carta branca para praticar o butim do dinheiro público, ocupando ministérios e milhares de postos da administração pública para os quais não tinham nenhuma qualificação, interferindo em licitações, pressionando por propinas, contratando firmas de seus apaniguados, desviando dinheiro público, aparelhando e destruindo os órgãos de Estado, perseguindo seus opositores.

O general Eduardo Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde, é um bom exemplo. Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras, em 1984, formou-se como oficial de Intendência. Fez o curso de Comando e Estado-Maior no Exército e o curso de política e estratégia aeroespaciais, na Força Aérea Brasileira (FAB). Bolsonaro justificou sua escolha para ministro da Saúde atribuindo-lhe a formação de “especialista em logística”. Em sua gestão, a presença de militares saltou de 2,7% para 7,3% na área da saúde, e foram denunciadas várias negociatas, entre elas com a compra de vacinas.

Segundo a BBC News Brasil, Pazuello foi nomeado ministro depois que dois ex-ministros civis se recusaram a recomendar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. A mortandade provocada pela epidemia de Covid-19 recai também em suas mãos. Esse “especialista em logística” deixou de comprar tanto vacinas e até seringas para aplicá-las quanto respiradores.1

Cinco generais do Exército foram nomeados ministros de Estado – Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Eduardo Pazuello (Saúde). A Marinha também foi contemplada, com a nomeação do almirante Bento Albuquerque para o Ministério de Minas e Energia, onde ele elevou a participação dos militares para 10,8% dos funcionários. Sem mencionar os oficiais em segundo escalão nos ministérios e demais órgãos públicos.

Pode-se dizer que, em aliança com empresários e com o apoio norte-americano, as Forças Armadas estiveram profundamente envolvidas no governo anterior, que privatizou, favoreceu as empresas, isentou impostos para corporações, baixou a regulação e permitiu a devastação ambiental, mas também operou abrindo espaço para a espoliação do dinheiro público em larga escala por parte dos governantes de plantão, em especial o clã Bolsonaro, notoriamente vinculado às milícias do Rio de Janeiro.


A tentativa de golpe denunciada pela Polícia Federal foi promovida pelo núcleo duro do governo anterior, mas é preciso deixar claro que não são apenas – grupos de militares que estão à frente dessa tentativa. Vários grupos econômicos do agronegócio, do setor financeiro, da mídia, dos transportes e do comércio estiveram envolvidos, muitos dos quais já identificados em inquéritos da Polícia Federal.

Essa situação, porém, não é de hoje. Em 2005, o então senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, já dizia: “Estou encantado com a crise política. Ela vai livrar a gente dessa raça por pelo menos trinta anos”. Banqueiro, Bornhausen se referia aos trabalhadores, sem-terra, pobres, excluídos, ou seja, todos que não pertenciam à elite. Desde então é possível reconhecer as ofensivas das forças conservadoras, que se propõem a alijar Lula e o PT do governo.

Essa defesa dos interesses da elite brasileira é uma constante. Na fase atual, ela se expressa no golpe parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016; na prisão ilegal de Lula em 2018, para impedi-lo de participar das eleições desse ano; na invasão dos prédios do governo, com o fim de impedir a posse de Lula eleito, em janeiro de 2023. Merece destaque a Lava Jato, processo de law fare, ou seja, o ataque político por meio da manipulação dos instrumentos legais, que foi de 2014 a 2021.

Não se trata de uma quartelada de iniciativa de meia dúzia de aloprados. É um amplo movimento com bases na sociedade que expressa uma aliança política que trabalha há anos pelo desgaste da imagem de Lula e do PT e de setores progressistas, pelo fim das políticas redistributivas, pelo fim da regulação democrática que limita a espoliação das maiorias e defende a “livre” atuação das empresas.

Com sólidos e majoritários blocos parlamentares de direita na Câmara dos Deputados e no Senado, temos de considerar também a participação efetiva de parlamentares na tentativa de golpe. Muitos deles são identificáveis por demandarem nas redes sociais e em outros espaços públicos o golpe e a intervenção militar. Muitos representam também os setores econômicos que se envolveram com o golpe e a tentativa de desestabilização política do governo eleito.

Pesquisas e análises sociológicas identificam vários setores profissionais, das classes média e alta, ligados a esse movimento. Advogados, juízes, promotores, médicos, engenheiros, dentistas e administradores são exemplos de categorias profissionais que se opõem ao PT e à “esquerda”, seja lá o que se entenda por ser de esquerda. Sentem-se ameaçados em seus privilégios pelas políticas redistributivas, pelo acesso dos pobres à universidade, pela presença de negros em seu ambiente profissional e pela afirmação dos direitos das empregadas domésticas, por exemplo. Segundo eles, o aeroporto não pode virar uma rodoviária…

O “Teto dos Gastos”, imposto pelo governo Temer em 2026, ou o “Arcabouço Fiscal” são demandas das classes dominantes que só cortam os gastos sociais. Querem o equilíbrio das contas nacionais sem mexer em seus privilégios, onerando apenas os pobres. Como diziam parlamentares quando da imposição do Teto, “os gastos sociais não cabem no Orçamento Público”.

Como aponta Eduardo Fagnani, “as elites financeiras nacionais e internacionais jamais aceitaram que o movimento social capturasse uma parcela do orçamento do Governo Federal (cerca de 10% do PIB), a maior parte concentrada na Previdência Social (8% do PIB)”.2 E continuam não aceitando o governo que se propõe enfrentar a fome e a pobreza.

Que fique claro: a tentativa de golpe não foi um raio em céu azul; ela vem sendo gestada há décadas. É a democracia que foi e continua sendo atacada. Como interpretar essa iniciativa, presente no Congresso, que pretende mudar a Constituição para subordinar o Supremo Tribunal Federal aos seus desígnios? Como interpretar a apropriação da receita pública por parlamentares para a doação de emendas se a atribuição da execução orçamentária é do Executivo?

Se as punições aos golpistas forem efetivas e envolverem financiadores, a mídia e parlamentares, o Brasil terá dado um passo importante para consolidar a democracia e afirmar que os benefícios do desenvolvimento não serão uma exclusividade das elites, das classes dominantes, mas favorecerão também as maiorias.
 Silvio Caccia Bava

1 André Shalders, “Quem é Eduardo Pazuello, o general que assume interinamente o Ministério da Saúde”, BBC News Brasil, 16 maio 2020.

2 Eduardo Fagnani, “As demandas sociais da democracia não cabem no orçamento?”, Plataforma Política Social, 2020.

sábado, 21 de dezembro de 2024

É isto um homem?

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
    pensem bem se isto é um homem
    que trabalha no meio do barro,
    que não conhece paz,
    que luta por um pedaço de pão,
    que morre por um sim ou por um não.
    Pensem bem se isto é uma mulher,
    sem cabelos e sem nome,
    sem mais força para lembrar,
    vazios os olhos, frio o ventre,
    como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
    Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
    a doença os torne inválidos,
    os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

Primo Levi

A sociedade e Rubens Paiva

A prisão do general Braga Netto é o mais visível sinal de que os militares no Brasil se envolveram profundamente na política nacional. A profusão de golpes e contragolpes ocorridos ao longo do século 20 no país é um claro indicativo de que a República, criada por militares, não convive bem com civis. Os paisanos terminam sendo atropelados pelas convicções ideológicas dos fardados. Foi assim em 1964, para ficar em apenas um exemplo, e radicalizado em 1968, quando o regime mostrou sua face autoritária com a decretação do Ato Institucional nº 5, que censurou a imprensa, suspendeu o habeas corpus, acabou com o direito de reunião, fechou o Congresso, cassou parlamentares e abriu as portas da repressão política. Centenas de brasileiros foram presos, torturados e mortos pelas forças de segurança.

A Constituinte de 1988, resultado da grande mobilização popular iniciada na discussão da emenda Dante de Oliveira (Diretas já), teve por objetivo redemocratizar o país. Acabar com a prevalência dos militares nos assuntos políticos. O Brasil não enfrenta guerras desde o conflito com o Paraguai, ocorrido na metade do século 19, suas forças armadas são tecnicamente desatualizadas, não possuem equipamentos modernos e carecem de comunicação de geração mais recente. Utilizam satélites estrangeiros para estabelecer contatos dentro do vasto território nacional. Resultado dessa inércia, as Forças Armadas se transformaram em partidos políticos fardados e perderam eficiência operacional.


Mas um setor se manteve atualizado e eficiente ao longo dos últimos anos. Os serviços de repressão, de inteligência e de investigação sigilosa continuaram a funcionar normalmente mesmo depois da queda dos governos militares. O presidente Fernando Collor acabou com o Serviço Nacional de Informações (SNI), e todos dados contidos nos seus arquivos foram entregues a pesquisadores que se interessavam pelo assunto. Porém, os serviços secretos militares, de cada uma das três armas, continuaram a funcionar, pesquisar e guardar seus segredos. Seus informantes persistiram ativos. Eles comandaram a pressão contra a abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel e avançada pelo presidente Figueiredo, que, aliás, assinou o decreto da anistia política, que é, até hoje, tema de polêmica.

O governo Bolsonaro resgatou essa turma dos serviços de inteligência que, na verdade, nunca se dissolveu. Continuou a existir de maneira mais ou menos clandestina dentro das organizações militares. Os torturadores mantiveram situações excepcionais, como a Casa da Morte, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, onde os prisioneiros eram torturados, mortos e depois esquartejados. Seus corpos aos pedaços, sem as falanges dos dedos nem as arcadas dentárias, eram jogados em rios, lagos e em alto mar. A questão da anistia é, portanto, mais profunda, porque perdoou torturadores que, por sua vez, não admitem que os chamados terroristas tenham sido abrangidos pela iniciativa.

Quem quiser ter mais e melhores informações sobre a ação comunista no Brasil e a violenta repressão realizada pelos militares precisa ler o impressionante relato contido no livro cujo título é Cachorros, a história do maior espião dos serviços secretos militares e a repressão aos comunistas até a Nova República, de Marcelo Godoy, editora Alameda. É um trabalho de fôlego, que consumiu 10 anos de pesquisa para que o autor chegasse às 548 páginas do livro, que recebeu vários prêmios.

Esse grupo de militares, que envolve as mais diversas patentes, se inspirou na guerra da Argélia, a guerrilha urbana que foi violentamente reprimida pelo governo francês. E também aprendeu com as ideias de Antonio Gramsci (Cadernos do cárcere), que propôs a revolução comunista por meio de tomada de poder nas universidades, no serviço público, no setor artístico, na imprensa, com objetivo de dominar a opinião pública. Com base nessa possibilidade, um grupo de militares brasileiros torturou e matou à farta.

Esse grupo, que foi distinguido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, proporcionou o vexame de conspirar contra a democracia brasileira e, no momento mais insano, planejar o assassinato do presidente da República, do vice-presidente e do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Tudo isso de maneira quase ingênua, mal traçada, e, pior, com o apoio de pessoal especializado do Exército. E com base no velho argumento anticomunista, quando o comunismo já saiu da vida e entrou para os livros de história.

É oportuno lembrar Ulysses Guimarães, no seu histórico discurso ao final da Constituinte: "Nosso desejo é o da Nação: que este plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte (....) O Estado autoritário prendeu e exilou, a sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram".

O mal de só se acreditar no que se quer acreditar continua matando

Bons tempos aqueles em que ainda se procurava distinguir entre a verdade e a mentira, e uma vez que isso fosse possível, exaltava-se a primeira e condenava-se a segunda. Nem sempre era uma tarefa fácil, mas pelo menos se tentava.

Hoje, na era das redes sociais e da radicalização política que põe em risco a democracia por toda parte, algo que aparenta ser verdade é muito mais importante que a própria verdade, e cada um escolhe no que quer acreditar.

Durante a pandemia da Covid-19, mais preocupado em evitar o debacle da economia do que em salvar vidas, o então presidente Jair Bolsonaro sabotou todas as medidas de isolamento social universalmente adotadas e atrasou a vacinação.

Que morressem, segundo disse Bolsonaro, os que tivessem de morrer, afinal ele não era coveiro. E receitou para os interessados em escapar do vírus drogas que no mundo inteiro eram consideradas ineficazes pelos cientistas para combater o mal.

Entre as drogas estavam a cloroquina e a hidroxicloroquina. Os dois medicamentos foram desenvolvidos para o tratamento e prevenção da malária. A diferença entre eles está na química orgânica, sendo a cloroquina o medicamento mais antigo.


Bolsonaro chegou ao ponto de, no final de julho de 2020, deixar-se fotografar exibindo uma caixa de cloroquina para as emas que vivem nos jardins do Palácio da Alvorada. Duas semanas antes, ele recebera diagnóstico de que contraíra a doença.

Em maio de 2021, ele ainda mantinha a defesa da cloroquina e da hidroxicloroquina para o que chamava de “tratamento precoce” do vírus. Não havia tratamento precoce possível. Mesmo assim, Bolsonaro insistiu em dizer durante uma live na internet:

– Aquele negócio que o pessoal usa para combater a malária, eu usei e no dia seguinte estava bom. Há poucos dias, estava me sentindo mal e, antes de procurar o médico, tomei aquele remédio, fiz exame, e não estava (doente). Mas, por precaução, tomei.

Na terça-feira, o amplamente contestado estudo que popularizou a ideia de uso da hidroxicloroquina contra a Covid foi “despublicado” pela editora Elsevier a pedido de três dos seus autores: Johan Courjon, Valérie Giordanengo, e Stéphane Honoré.

Eles alegam falhas sobre a metodologia, conclusões da pesquisa e apresentação de interpretação de seus resultados. Em seu favor, Bolsonaro não poderá dizer que se baseou no estudo e que, portanto, foi enganado.

Simplesmente porque a maioria dos governantes da época não se deixaram enganar. Bolsonaro acreditou no que quis acreditar porque lhe pareceu conveniente e estava mais de acordo com seus propósitos de salvar a economia mesmo às custas de mortes.

Dados da Organização Mundial da Saúde, em fevereiro de 2022, revelaram que o Brasil era o terceiro país com o maior número de mortes pela Covid-19, só abaixo dos Estados Unidos e da Índia, países mais populosos.

Em março do ano passado, aqui, o número de óbitos pelo vírus ultrapassou a marca dos 700 mil.

Mundo de tolerância

Somos demasiado tolerantes com a aberração moral de estadistas e burocratas.

Kenzaburo Oe 

A moral é obrigatória para os pobres

“Boa noite a todos. Sou o Lor Neves. Pai, marido, imigrante em Portugal e serralheiro de profissão”. A voz quase não lhe treme. Não vem pedir. Vem à Assembleia Municipal de Loures, com um texto na mão, que lê com dignidade e o arranhar nos ‘r’ característico dos santomenses. Veio de longe e a vida fê-lo desembarcar nas Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azóia, onde uma casa vazia e um terreno baldio se transformaram num pequeno bairro improvisado para 99 pessoas, 21 das quais crianças, a mais nova ainda recém-nascida. Lor diz a quem o ouve que os seus vizinhos estão consigo “neste barco”. E é uma tempestade a que enfrentam desde que, a poucas semanas do Natal, encontraram à porta das barracas um papel que lhes dava 48 horas para retirarem todas as suas coisas para que tudo fosse demolido.

Desde esse dia, há colchões, panelas e sofás debaixo de um viaduto. As máquinas não vieram na data marcada para a demolição. Mas ninguém duvida de que virão quando ninguém estiver a olhar. E é por isso que Lor e as suas vizinhas e vizinhos não se calam nem se escondem. É importante vermos os seus rostos. É importante olharmos de frente para aqueles sobre quem já paira até a ameaça de lhes serem retirados os filhos por não terem uma casa para lhes dar.

“Vim para este país à procura de um futuro melhor para minha família. Sempre soube que este caminho ia ser complicado”, confessa Lor Neves, num discurso feito para reclamar a sua humanidade. Porque ela não lhe é garantida à partida. Negro, pobre, imigrante, tem de repetir que vem por bem, que trabalha, que é humano. E é isso que faz.

“Vimos por bem”, “somos um povo trabalhador, queremos dar melhores condições aos nossos filhos, queremos viver com dignidade, trabalhamos, descontamos”, “somos seres humanos”. “Nós não vivemos nesta situação porque queremos”, “vivemos aonde vivemos porque não temos outra alternativa”, “não vimos outra alternativa se não tentar criar um lar naquelas casas abandonadas”, “queremos colaborar com o processo de arranjar casa para nós, queremos pagar rendas”. Justifica-se.

No vídeo que registou a sua intervenção, Lor Neves fala de pé junto a um microfone e, no canto inferior direito do plano, há um homem que o ouve. É apenas uma cabeça de homem branco, careca, de meia-idade, com excesso de peso. Vai franzindo o sobrolho. Levanta e baixa os olhos. Ouve e interroga-se. Em cada prega do seu rosto são visíveis as perguntas que faz em silêncio àquele negro pobre e imigrante. Não se lhe vê qualquer comoção.

Olhamos para aquele homem e ele é parecido com os que tiveram de construir cidades de chapa de zinco e lama às portas de Paris. Chamavam-lhes Bidonvilles. E lá falava-se Português. Mas não sabemos nada deste homem que ouve, com alguma impaciência indisfarçada, o apelo de Lor Neves. E por isso não temos forma de perceber se algum dia teve também de justificar a sua humanidade perante outros homens.

Exigimos muito aos pobres. É pobre, mas honrado. Pomos ali a adversativa para que fique bem claro que a honra é uma coisa que se constrói a custo, ao contrário da pobreza que vem sem esforço e tantas vezes à nascença.

Os pobres têm de ser trabalhadores, têm de ser esforçados, têm de estar acima de qualquer suspeita. Os requisitos morais para um pobre que reclame um direito ou peça uma ajuda estão muito acima do que qualquer banco pede a um milionário para lhe emprestar uma fortuna ou do que qualquer Estado requer para lhe perdoar milhões em impostos. A moral é obrigatória para os pobres. Para os ricos é opcional.

Não é difícil imaginar que Lor Neves tenha de ouvir muitas vezes um “vai para a tua terra”. O que exige muito mais imaginação é pensar que um dos 50 estrangeiros a quem o Estado português deu em 2023 uma borla fiscal de 262 milhões de euros tenha alguma vez ouvido coisa semelhante. Ao todo, estes imigrantes ricos receberam do Estado benefícios fiscais que nos custaram 1,3 mil milhões de euros no ano passado. Mas isso não causa sobressalto.

O que nos incomoda são os pobres. Incomodam-nos os que nos constroem as casas e depois as limpam, os que nos servem nos restaurantes e nos trazem comida a casa, os que nos apanham a fruta e nos fazem a vindima, os que nos tratam das crianças e nos cuidam dos mais velhos, os que nos transportam e os que com os descontos do seu trabalho nos pagam as pensões.

E é por isso que Lor Neves, serralheiro de profissão, que trabalha e paga impostos, está à beira de ficar sem o teto precário que construiu com as suas mãos, mesmo nas vésperas de Natal, perante uma indiferença quase generalizada. Ele e mais 98, dos quais 21 são crianças, que se arriscam a ser separadas de pais cujo crime é serem pobres.

Há quem exija que ao lado de cada árvore pagã e iluminada se exiba um presépio, esquecendo-se de que esse abrigo precário acolhia um pai carpinteiro e pobre, obrigado a fugir da sua terra para proteger a família. Como acolheriam eles hoje esses três?

Trump sabe que aquário não é sopa de peixe

O ex-presidente ianque Barak Obama fez um desabafo a esse respeito no documentário “The Final Year” (2017), que trata das Relações Exteriores no seu último ano de mandato. Fez um mea culpa por ter tratado Vladmir Putin como um estadista que falava em nome do interesse nacional da Rússia. Obama perceberia tarde demais que os objetivos pessoais do ex-agente da KGB predominavam sobre o Estado e o povo russo.

Neste final de 2024, o mundo se pergunta o mesmo em relação ao presidente americano eleito. Até que ponto, em um segundo mandato, Donald Trump utilizará o poderio econômico e militar dos EUA em favor da Nação, ou do seu projeto particular. Afinal, o narciso de Trump hospeda aquelas distrações terrenas que constituem o fetiche da política (com “p” minúsculo).

O que não quer dizer que ele seja incapaz de interpretar a conjuntura interna e a cena internacional, ou de enxergar as ameaças e oportunidades oferecidas pela geopolítica e pelos mercados. Muito pelo contrário, ninguém chega à Casa Branca duas vezes por ser bobo.

Sendo assim, Trump e seu braço direito Musk certamente sabem que a c
apacidade industrial americana, somada às recentes descobertas de petróleo e gás de xisto na América do Norte, trazem uma tranquilidade ao Tio Sam com relação ao que se pode chamar de Espaço Vital da nação. Inclua-se aí a vasta disponibilidade de terras habitáveis e agricultáveis, abundância de hidrovias fluviais de baixo custo, acesso a dois oceanos e a juventude da população estadunidense.


Segundo o consultor geopolítico da CIA Peter Zeihan (O Fim do Mundo É Só o Começo – 2022), essas “vantagens geográficas estratégicas” permitem que o governo americano reduza sua presença direta em crises regionais mundo afora, que foi indispensável durante a Guerra Fria. Não era à toa que ainda em 2013 Obama já dizia que os EUA não seriam mais a “polícia do mundo”.

Trump sabe que se os Estados Unidos quiserem (e eles querem) continuar sendo a potência líder global, precisarão rearrumar o tabuleiro geopolítico. O resto do mundo também já sabe disso. Aos 45 minutos do segundo tempo, Biden já é página virada do folhetim internacional.

Quem resume bem esse cenário é o analista Niall Ferguson, no seu artigo “A Mudança da Vibração Global” (The Free Press, 2024): “O eleitorado americano reelege decisivamente Donald Trump. Consequência: o governo alemão cai, o governo francês cai, o presidente sul-coreano declara lei marcial, Bashar al-Assad foge da Síria. Há uma reação em cadeia econômica também: Bitcoin sobe, o dólar sobe, ações americanas sobem, Tesla sobe. Enquanto isso, a moeda russa enfraquece, a China afunda ainda mais na deflação e a economia do Irã cambaleia. Parece que Trump já é presidente”.

Ferguson fecha a tampa do ataúde da velha ordem, concluindo: “A mudança de vibração na cultura é sobre o modo fundador versus os comitês de diversidade e inclusão; a mudança global é sobre paz através da força versus a ordem internacional liberal em desintegração. Agora é O Papai Chegou”.

O inusitado governo Trump-Musk, armado com novos computadores quânticos (e velhos mísseis), sabe também que os EUA têm que correr contra as mudanças climáticas que podem bagunçar a geopolítica (e os negócios). Também sabe que, como diziam os antigos russos, você pode transformar um aquário numa sopa de peixe, mas o contrário é impossível.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Pensamento do Dia



Impunidade em crimes bárbaros mina crença na democracia

Os episódios de impunidade em crimes bárbaros se avolumam numa intensidade que, além de desmoralizar o sistema de Justiça, mina a confiança na democracia. Erra quem não enxerga a correlação. Num par de anos, a proporção de brasileiros que creem no regime como melhor forma de governo caiu 10 pontos percentuais, de 79% para 69%, informou o Datafolha após pesquisa com 2.002 eleitores nos últimos dias 12 e 13 de dezembro.

O sistema eleitoral foi testado, e a transição de poder estressada até o golpe tentado em 8 de janeiro de 2023, ainda sob investigação. Mas a confiança na democracia diminuiu. Noves fora o desapontamento de viúvos do ex-presidente que sonhava permanecer no poder mesmo derrotado nas urnas, há motivos para o desencanto. Todo dia sabemos de um. O mais recente veio da anistia, pelo Superior Tribunal Militar, aos assassinos de Evaldo Rosa em 2019. O músico estava com a família a caminho de um chá de bebê, na Zona Norte do Rio, quando seu carro foi alvejado por tiros de fuzil de homens do Exército. Na cena, morreu também o catador de material reciclável Luciano Macedo, que tentou socorrer a vítima.


Na primeira instância, os oito militares foram condenados a até 31 anos de prisão em regime fechado. Na Justiça Militar, as penas foram reduzidas a um décimo. Os acusados cumprirão, no máximo, três anos e dez meses em regime aberto, somente pelo crime culposo (sem intenção de matar) contra Luciano. Pelo fuzilamento de Evaldo, foram absolvidos.

Luciana Nogueira, viúva de Evaldo, foi a Brasília para audiência de recurso. Viajou com o filho, Davi Bruno, que, aos 7 anos de idade, viu o pai morrer na ação dos militares. Ela não escondeu a desapontamento com a decisão do STM. Cogita até não recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), última instância possível:

— Uma decisão horrível, lamentável, triste. Muito complicado. Mas era um pouco de esperar, porque, no país em que a gente vive, a gente sabe que não existe justiça, principalmente para pobre e preto.

O desabafo de Luciana, mais uma mulher feita ativista pelo luto, ecoa em outras vítimas da brutalidade que não encontraram alento em tribunais. Os policiais que assassinaram o menino João Pedro, aos 14 anos, numa operação mal explicada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em 2020, acabaram sumariamente absolvidos na primeira instância. Nem a julgamento foram.

O tribunal do júri, que representa a sociedade, condenou por homicídio culposo o policial militar que matou com um tiro nas costas o jovem Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, na Favela de Manguinhos, dez anos atrás. Na semana passada, o TJ-RJ acolheu o pedido de um novo julgamento. Noutro caso emblemático, o júri absolveu os sete agentes acusados de participação no assassinato do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, também em 2014, na comunidade Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul carioca.

Cinco anos depois do crime, o PM acusado pelo assassinato da menina Ágatha Félix, aos 8 anos, numa comunidade do Complexo do Alemão, também foi absolvido no mês passado. Os jurados consideraram que o policial não teve intenção de matar a menina, alvejada por um tiro de fuzil nas costas, ao lado da mãe, dentro de uma Kombi, na comunidade onde moravam.

Situações recorrentes de abusos — vide a epidemia de violência policial em São Paulo e na Bahia, para ficar em dois estados — e certeza de impunidade para os culpados consolidam a percepção de anistia recorrente para uns e de dor permanente para outros. Não faltam iniciativas nem alertas sobre quanto a injustiça deteriora a confiança nas instituições. Por conseguinte, na democracia.

Ainda ontem, o TJ-RJ fez um aceno ao respeito às tradições religiosas e culturais no país. O machado de Xangô, símbolo de verdade, justiça e equilíbrio, foi entronizado no hall dos auditórios da sede da Justiça fluminense. É a primeira vez que um objeto sagrado para cultos de matriz africana ganha espaço permanente de exibição. O Oxê, machado de dois gumes do orixá da justiça, foi presente de Arethuza Doria, uma filha de Oyá.

A iniciativa foi negociada com o presidente do TJ-RJ, desembargador Ricardo Rodrigues, pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Rio. Realizou-se quase simultaneamente ao julgamento do STF sobre laicidade. Em fins de novembro, o Supremo decidiu que a presença de peças sagradas em prédios e órgãos públicos não fere a laicidade do Estado nem a liberdade de crença, princípios constitucionais. A tese de repercussão geral saiu de ação do Ministério Público Federal contra a presença de símbolos religiosos no TRF-SP. O STF entendeu que há valorização de aspectos culturais da sociedade brasileira, não imposição de fé. Assim, cruzes, imagens e peças sagradas de todos os credos estão permitidos. Oxalá a fé inspire a justiça.

Justiça Militar dá show de corporativismo diante da viúva

Quantos tiros um grupo de militares pode disparar contra uma família de civis desarmados sem cumprir pena na cadeia? O Superior Tribunal Militar liberou a marca de 257. Na noite de quarta, a corte reduziu a punição dos agentes que mataram o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo, em 2019. Eles passarão três anos em regime aberto.

O julgamento consagrou a tese de que os oficiais, cabos e soldados que participavam da operação no Rio não tinham a intenção de matar ninguém, com tiros dados num contexto de confronto com bandidos. Analisar as circunstâncias de dolo e culpa de agentes de segurança é dever de qualquer juiz. Os ministros vencedores, porém, preferiram tratar os atiradores como vítimas.


O tenente-brigadeiro Carlos Augusto Oliveira, relator do caso, aceitou a defesa dos militares, que dizem ter confundido o carro de Evaldo com um veículo usado por bandidos. Ele afirmou que os agentes tentavam "conter uma ação criminosa, ainda que imaginária". Num exercício de especulação, disse ainda que o músico pode ter sido morto numa troca de tiros com criminosos, sem a certeza de que os disparos partiram dos agentes do Exército.

No voto, o relator fez uma ponderação. Apontou que o grupo de militares errou na identificação do carro, deixou de verificar se Evaldo estava armado e não considerou a opção de ferir o motorista em vez de atirar para matar. Faltou explicar se alguma parte da abordagem estava certa.

Outros ministros encenaram um show de corporativismo diante da viúva e do filho de Evaldo. Revisor do processo, José Coêlho Ferreira descreveu a situação das mortes como "uma grande confusão". O general Lúcio Mário de Barros Góes disse que lamentava sentenciar "pessoas de bem pela trágica ocorrência".

A índole dos agentes não estava em julgamento. A única questão a ser considerada é se um grupamento que ignora as circunstâncias de uma abordagem e dispara 257 tiros assume ou não a intenção de matar. Militares "de bem" podem cometer erros, mas precisam ser responsabilizados na medida de suas ações. A Justiça Militar deu todas as provas de que não tem interesse em submeter os seus a essa provação.

Congresso, o dinheiro acabou!

A festa acabou, o povo sumiu e anoite esfriou, parafraseando Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, o Congresso Nacional continua coma faca no pescoço do ministro da Fazenda, na busca por mais e mais emendas parlamentares e benesses. É preciso aprovar as ações de ajuste fiscal e retomar a responsabilidade com o dinheiro público.

A farra com as emendas parlamentares chegou ao limite de ensejara atuação do próprio Supremo Tribunal Federal( STF ), a partir da correta decisão do ministro Flávio Dino. Ela obriga à transparência e delimita os parâmetros para organizar o coreto. Contudo, em plena votação do pacote de ajuste fiscal, as lideranças do Congresso partilham na penumbra vultosos recursos públicos – antes, vale dizer, bloqueados pela atuação do STF.

A falta de republicanismo é flagrante. Mas nãoé só um problema ético, mora leque ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. É também o sintoma de um sistema político doente ecada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. Veja-se, por exemplo, a matéria do programa Fantástico, da TV Globo, que mostrou orecapeamento asfáltico financiado por emendas, em determinadas localidades, em condições mais parecidas com um “chiclete”. Para onde foi o dinheiro?

A lambança promovida pelo Congresso tem consequências sobre a economia, para além do mau uso do recurso público, cada vez mais escasso em um contexto de dívida pública crescente. O mercado precifica a irresponsabilidade fiscal nos juros e dólar mais caros. Não tem nada a ver com o maquiavelismo do mercado sugerido por lideranças petistas nos últimos dias. Ora, vejam, não temos hoje no Banco Central diversos diretores apontados pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Como vão culpar, agora, o competente Roberto Campos Neto? Sinuca de bico para a retórica de boteco adotada por esse setor da política que, aliás, compõe a própria base governista.

O País precisa urgentemente de um choque fiscal. A dívida pública vai alcançar os 80% do Produto Interno Bruto (PIB), rapidamente, e a tarefa de estabilizar esse indicador poderá transformar-se em missão impossível. Tudo depende da elite política do País e de sua consciência. O dinheiro acabou, nobres parlamentares. Já rasparam o tacho, já distorceram a reforma tributária do consumo enfiando mais benefícios para a Zona Franca de Manaus e diversos setores amigos do rei. O que mais os senhores pretendem?

Agora, desidratam os projetos e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Executivo para providenciar um ajuste fiscal mínimo. Atuam como se Brasília fosse uma espécie de bolha apartada da sociedade brasileira e da economia. Enquanto a pobreza e a miséria ainda envergonham a Nação, o Congresso dá-se ao luxo de praticar o proselitismo, mas não por ele mesmo; pior, tendo em vista mascarar seus reais objetivos de disparar mais e mais recursos por meio de emendas, descumprindo a decisão do STF.

Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com a prosperidade, o crescimento econômico e a normalidade dos mercados? Estamos chegando a um limite preocupante. O ministro da Fazenda parece voz isolada. O presidente da República tem de entrar no jogo e mostrar de que lado está: do populismo barato, com medidas impensadas para ampliar a isenção do Imposto de Renda, ou do ajuste das contas e da responsabilidade que ele mesmo chegou a defender e a praticar?

Deixar nas mãos do Banco Central a tarefa de restabelecer a normalidade na economia nacional vai significar juros nas alturas e crescimento econômico no chão. A elevação da Selic é o instrumento de que a autoridade monetária dispõe, bem como as intervenções no mercado de dólar. Mas o uso dessa caixa de ferramentas não servirá para muita coisa se o Congresso não avançar na direção do ajuste fiscal proposto pelo governo.

É hora de apoiar o programa de contenção de gastos. Mais do que isso, de aprimorá-lo e de ampliá-lo. A dívida pública não vai se estabilizar apenas com as ações anunciadas. Sobretudo, não estacionará na presença de juros ainda mais elevados, já contratados em 14,25% ao ano após a última decisão do Comitê de Política Monetária (Copom).

Para ter claro, o déficit primário projetado para o ano que vem, mesmo sob os efeitos do novo pacote, tende a ficar acima de R$ 90 bilhões. A meta zero, como se vê, está muito distante. Pior, para estabilizar a dívida/PIB, é preciso produzir superávit primário. Com juros reais de 10%, nível para o qual estamos caminhando sem atalhos, mesmo que a economia cresça em torno de 3%, seria preciso gerar superávit primário de mais de 5,5% do PIB. É impraticável. A conta evidencia o tamanho do pesadelo em que nos metemos por pura inépcia.

O governo tem culpa na demora para enviar as medidas de ajuste, na contratação de gastos desnecessários desde o início do mandato atual e na falta de foco na tesoura. Entretanto, tomou uma decisão correta, agora, ao enviar um pacote de contenção de gastos. O Congresso tem de acordar para a realidade e deixar de lado a mesquinharia que parece ter dominado o Plenário Ulysses Guimarães.
Felipe Salto

2024, vai e não voltes

Olho para 2024 e vejo uma galeria de horrores.

A guerra da Ucrânia continuou e até se intensificou, com soldados norte-coreanos servindo de carne para canhão de Putin e ataques ucranianos dentro das fronteiras russas. O conflito Israel e Hamas tornou-se um conflito também com o Hezbollah no Líbano e, em baixa intensidade (pelo menos oficialmente), com o Irã. Cerca de cem reféns continuam aprisionados e maltratados em Gaza, incluindo um bebé de um ano, uma criança e a mãe de ambos. Gaza foi praticamente terraplanada e as mortes e as consequências para a população, também incluindo crianças, e mesmo descontando as contas aldrabadas do Hamas e das ONG amigas, são de gelar o coração.

Um agressor sexual foi eleito (pela segunda vez) para a Casa Branca. A Síria depôs um ditador sanguinário, expôs involuntariamente a fraqueza russa e iraniana, mas dificilmente terá um futuro político risonho à espreita.

No meio deste vendaval internacional, dois acontecimentos mais específicos, mais micro, mostram um contínuo preocupante entre a amoralidade individual, a comunitária e a transnacional. O primeiro foi de Lily Phillips. (Não sei como a descrever. Influencer sexual? Estrela de pornografia na plataforma Only Fans? ‘Trabalhadora do sexo’, eufemismo para mulher que se prostitui?) Esta jovem adulta, com centenas de milhares de seguidores no Only Fans, promoveu um evento onde teve sexo pago com 100 homens num dia. E agora prepara-se para o ainda mais apoteótico acontecimento de ter sexo com 1000 homens num dia.


Para celebrar tal feito, fez-se o documentário (traduzo) ‘Dormi com 100 homens num dia”. Neste, Lily Phillips termina a chorar contando a sua experiência. Foi mais ‘intenso’ do que estava à espera, diz e começa a chorar. ‘Não é para as fracas’ e ‘’não sei se recomendo’ – outras expressões que nos ofereceu. Também assevera que ‘foi duro’ e que estava ‘robótica’. Não quero desta vez entrar na discussão da prostituição ser um ‘trabalho sexual’ ou uma exploração de mulheres pobres (que não é o caso de Lily Phillips).

Uma coisa é certa: Lily Phillips, com ‘robótica’, ‘foi duro’ e ‘não sei se recomendo’, não estava a descrever nenhuma experiência sexual agradável. Na verdade, descreve algo parecido com o que contam as mulheres que se prostituem por não terem outra alternativa. Vários homens não pararam a interação sexual depois dos poucos minutos alocados a cada um. Phillips só se recorda de seis a dez homens dos cem com quem teve sexo. Se não houvesse vídeos, não teria registo no cérebro do que aconteceu. Ora isto é a típica memória fragmentada (ou apagada) dos eventos traumáticos.

Donde, o apoteótico feito de Lily Phillips não tem nada que ver com libertação e a liberdade sexual das mulheres, que pretende tirar a sexualidade feminina só dos casamentos e da procriação, tornar menos espartilhada a relação das mulheres com o seu corpo e o sexo mais frequente e prazenteiro. Não há neste feito de Phillips, e menos ainda no documentário, nada de empoderador ou libertador para as mulheres.

E, se devemos torcer o nariz aos homens que acedem participar em sexo nestes termos, também não podemos isentar Phillips de críticas pelos seus atos, de resto publicitados. Imaginemos o escândalo (justificado) se um misógino do calibre de Andrew Tate tivesse sexo com cem mulheres num dia e fizesse documentário a seguir. Lily Phillips pode ter questões de saúde mental. Porém saltam igualmente perguntas sobre a necessidade patológica de fama neste mundo digital e sobre ideias cada vez mais absurdas e arrepiantes para sobressair (porque o que é moderado é banal). De qualquer maneira, é perturbador.

O segundo acontecimento: o assassínio de Brian Thompson CEO da seguradora de saúde americana United Healthcare, aparentemente por Luigi Mangione, jovem de Baltimore proveniente de uma família endinheirada. Muita gente nas redes sociais acorreu a celebrar este assassínio e o seu provável autor. É certo: as redes sociais potenciam a polarização e a radicalização. Contudo, a apologia de violência gráfica e mortal é todo um outro nível – e revela como a esquerda vai por caminhos de extremismo tal qual a direita.

Mas pior que as reações populares a este assassínio foram as reações de políticos. Elizabeth Warren, senadora democrata, comentou ‘people can only be pushed so far’. Ou seja, as pessoas só podem ser atropeladas até certo ponto. Além desse ponto a reação é sempre ao som de tambores. Warren tem a sua razão. Sobretudo – como em temas de saúde – se se trata de assuntos de dignidade humana e de respeito (ou desrespeito) básico por outro ser humano. Os torcionários talentosos, digamos assim, têm essa noção: os abusos têm de ficar ali numa área q.b., ou geram reação incontrolável.

Bernie Sanders veio defender o comentário de Warren. Ambos sancionaram tacitamente, portanto, um assassínio ideológico. A partir de agora deve-se bater palmas quando um executivo de uma empresa poderosa for assassinado.

A solidariedade assassina de Warren e Sanders é tanto mais indecorosa quanto a distópica política de saúde americana, assente em seguros de saúde e empresas com pouca regulação quanto ao que têm de cobrir e ao que podem recusar, é responsabilidade dos políticos – tanto republicanos como democratas –, e inclusive dos eleitores (de ambos os partidos) preferindo pagar impostos mais baixos que aumentá-los para acomodar gastos públicos significativos com saúde, não de um executivo – mesmo se de seguradora abutre. Os Estados Unidos têm uma mortalidade materna mais alta que qualquer país desenvolvido. Caso único no mundo fora guerras, a esperança média de vida à nascença tem decrescido. Tudo resultado dos deficientes cuidados de saúde. Diria eu que são problemas de magnitude para governantes e legisladores resolverem; empresas – e pouco reguladas – não conseguem (nem têm de).

Aplaudir assassinatos e assassinos. Celebrar a prostituição de mulheres. Confesso-me desalinhada com o estado de espírito do mundo nos finais de 2024. Boa notícia neste fim de ano só mesmo a do aumento da leitura entre os mais jovens. Ler ficção é um instrumento perfeito para desenvolver empatia. Talvez evitasse Luigi Mangione e os seus adoradores. Já a falta de amor próprio de Lily Phillips vai além do poder da leitura.
Maria João Marques

O Natal que se perdeu

Sou de uma geração, a do fim da Segunda Guerra Mundial, que ainda conheceu o Natal cristão. Nós não sabíamos, mas era um Natal agônico e residual, que se transfigurava lentamente. Era uma celebração, uma festa de família, que juntava ainda mais o que já estava junto. Era um momento de comunhão no almoço natalino que seguia tradições de família até nos ingredientes à mesa. Cada alimento do almoço de Natal era um alimento ritual.

Mesmo a taça de vinho tinto, feito em casa por meu avô, que se recusava a servir e a tomar vinho comercial. Temia os vinhos “batizados”, os que, dizia, haviam recebido acréscimos indevidos que afetavam a pureza da bebida.


Mesmo as crianças recebiam sua pequena porção de vinho, misturado com um pouco de água e um pouco de açúcar. Para que aprendessem a consumi-lo, como alimento que era na cultura camponesa de meus pais e avós.

Ainda criança, via meu avô, em determinada época do ano, ficar de ceroulas, lavar os pés e as pernas, as mãos e os braços, entrar na pipa em que depositara a uva e pisá-la em roda, numa espécie de dança, em que ia e voltava.

Depois, levá-la, rodando-a, para o escuro cômodo de fundo de quintal, que era também o de sua oficina de carpinteiro. Acompanhado dos dois netos, visitava-o todos os dias de manhã para ouvir o som da fermentação e avaliar o ponto em que se encontrava.

Em determinado dia, com um copo na mão, abria uma torneira da parte inferior da pipa, a uns 20 centímetros acima da base, para reter no fundo a borra da fermentação. Recolhia um pouco do vinho em processo de fabricação, sentia o aroma, olhava o copo atentamente contra a luz várias vezes e voltava para dentro de casa. Comentava com minha avó o resultado da verificação.

Até a manhã em que o vinho já estava com uma cor rubi, lindíssima. Punha um gole na boca, demorava provando-o e dizia a meu irmão e a mim, de 3 e 5 anos idade: “Está pronto”.

Nessa altura já havia fervido as rolhas e lavado com água fervente as garrafas em que o vinho seria engarrafado. Era o vinho de dois Natais depois. O do Natal daquele ano fora feito dois anos antes. As garrafas eram devidamente enterradas na areia do porão da casa para evitar a oxidação do vinho.

O Natal, portanto, começava dois anos antes, ciclos natalinos de datas diversas sobrepondo-se, fluindo aos poucos, conforme o ritmo da natureza. Era o tempo litúrgico da tradição e do respeito pelo sagrado.

O dia a dia não era profano. O sagrado regulava o cotidiano. À noite, após o jantar, meus avós e os netos, quando estávamos com eles, rezavam o terço. Ao deitarem eles e os netos rezavam o “Com Deus me deito e com Deus me levanto”.

Minha avó ia à missa todos os dias, logo cedo. Confessava e comungava. Foi assim na segunda-feira em que após o café da manhã levantou-se para lavar a louça e começar a fazer o almoço. Deu o primeiro passo e caiu morta. Estava preparada segundo as regras daquele mundo em que não havia separação entre profano e sagrado, o lento e cauteloso mundo da tradição.

Aquele mundo terminava. Vi isso com a chegada do Papai Noel, um ser de importação, a trazer consigo neve artificial feita de algodão. Ele era o agente de transformação dos brasileiros em estrangeiros. Usurpara o lugar dos Reis Magos, símbolos do ciclo natalino, o da transição do ano velho para o ano novo.

Os pais tentavam infiltrar no tradicionalismo dos costumes a estranhíssima figura de velho barbudo. Entrava em casa sorrateiramente, durante a noite de 24 de dezembro, para premiar cada criança com o brinquedo que havia pedido ou castigá-la com brinquedo diferente do solicitado.

Curiosamente, os filhos das famílias de operários, a maioria do bairro fabril em que eu morava, um bairro de muitas e grandes fábricas, nunca recebiam o que haviam pedido que os pais encomendassem de Papai Noel. Os filhos da meia dúzia de pequenos comerciantes do bairro recebiam exatamente o que pediram. Não raro, mais de um presente.

Aos 5 anos de idade, eu desconfiava que Papai Noel não gosta de quem trabalha e que quem trabalha se torna pobre. Para mim era difícil aceitar que meu presente fosse, portanto, um castigo.

Minha mãe, que tinha 3 meses de idade quando a família de meus avós imigrou para o Brasil, na imigração subvencionada para trabalhar como colonos em fazenda de café do interior, ainda conheceu antigos escravos que continuavam a trabalhar nos cafezais.

Ela cresceu convencida de que as pessoas ficavam negras por trabalhar no café. Tinha pavor de tomar café e em consequência tornar-se negra como os antigos escravos. Nunca me disse nada, mas me dava a impressão de que ela achava que o café continha a mandinga da escravidão.
José de Souza Martins

Nós somos mesmos é um bando de ladrões

Admito que a afirmação acima é um tanto forte e pode indignar os leitores, que, em sua esmagadora maioria, tenho certeza, nunca furtaram nada na vida. Ao mesmo tempo, manda o diabinho que sopra besteiras nos ouvidos de escritores e malucos correlatos que eu pense duas vezes, antes de ter essa certeza toda. De perto, ninguém é normal, disse Caetano, não sem razão. E, segundo me contam, disse Nélson Rodrigues, coberto de razão, que, se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém. Não sabemos com certeza o que os outros fazem. Podemos saber ou achar que sabemos muito, mas geralmente não sabemos nada. É até bem frequente está aí a turma analisante/analisanda que não me deixa mentir – que nós mesmos não saibamos, ou não lembremos, o que fazemos ou fizemos.


Além disso, sempre me manifesto contra a mania – que parece que estamos perdendo um pouco nos últimos tempos, mas pode ser somente impressão – de nos referirmos a nós próprios na terceira pessoa: “os brasileiros” isso e aquilo, “o brasileiro” isso e aquilo. É como se não tivéssemos nada a ver com as barbaridades que costumamos denunciar ou ridicularizar. Trata-se de um povo do qual não fazemos parte. Não posso concordar com isso, ainda mais escrevendo para jornal. Não dá para me ver como um observador destacado de uma realidade à qual pertenço – e claro, não alego originalidade quando repito que serei sempre, ao mesmo tempo, de várias formas, sutis ou claríssimas, sujeito e objeto dessa observação.

E, vamos e venhamos, pode ser chato para nossa famosa autoestima, mas a sensação que dá, quando a gente fica a par do noticiário, não é a de que aqui absolutamente todo mundo rouba, de uma maneira ou de outra? Não vou hierarquizar, nem mesmo qualificar nada, vou só olhar aqui à toa. Mais um assalto na Lagoa, no Rio. Entre os assaltantes, um inspetor da Polícia Civil. Mais um assalto na madrugada, em São Paulo. Entre os assaltantes, um delegado. E o Tribunal de Contas da União? Está certo, seus quadros não são compostos de anjos tampouco, mas logo o Tribunal da Contas da União, uma espécie de símbolo institucional (pode até nunca ter passado muito de símbolo, mas é símbolo, isso tem valor) da seriedade com o dinheiro público?

De vez em quando fico pensando que há uma grande força-tarefa, ou uma vasta organização de forças-tarefas, dedicada em regime exclusivo à bolação e estruturação de falcatruas. Vamos pensar que seria possível para um governo, especialmente esse governo, conceber um mecanismo inteiramente novo de distribuição de benefícios para os carentes. No dia seguinte, já teria sido montado um esquema para fraudar tudo. Não existe área em que a roubalheira não funcione. Policial rouba. Juiz rouba. Deputado rouba. Senador rouba. Governador rouba. Prefeito rouba. Vereador rouba. Procurador rouba. Fiscal rouba. Jornalista (não sei de nenhum no momento, mas claro que não somos exceção) rouba. E não é só o dinheiro público que é abiscoitado, é o particular também, pois noticiaram qualquer coisa como um prejuízo médio de cinco por cento, nas empresas que funcionam no Brasil (agora se diz “corporações” – por que não trocam a língua de uma vez, em lugar de ficarmos nesta promiscuidade depravada?), causado por roubalheiras ou fraudes cometidas pelos empregados. E a solução é bem brasileira – esses brasileiros são muito criativos. A solução é incluir o prejuízo nos custos da empresa.

Ou seja, quem paga o roubo somos nós mesmos e, portanto, eu tinha razão. Pelo menos de nós mesmos somos todos ladrões, não há um só que escape. Como ícone nacional, não mais o Jeca Tatu, anquilosado e ultrapassado, mas Ali Babá, próspero e intimorato. Antigamente, eu achava exagero dizer-se que o dinheiro dos impostos no Brasil não dá para as despesas porque se rouba muito. Pensava que era uma taxa pequena, cifra relativamente marginal. Agora, me vejo obrigado a mudar de ideia. Os impostos obscenamente altos e abundantes que pagamos são insuficientes para a roubalheira. A reforma fiscal, que, como as outras, dizem que fizeram mas não fizeram, certamente empaca nesse gravíssimo problema. Abatendo-se da receita o que se rouba, a tendência é cada vez mais ficarmos no vermelho.

Gostaria de encerrar o papo com uma nota otimista, muito em voga entre intelectuais de todas as índoles. Aliás, o politicamente correto é terminar considerações como estas afirmando que, felizmente, o povo é honesto. O povo mesmo, esse é honesto por natureza e tradição, é só ver como se comporta a maioria. Receio, contudo, que no momento não me encontro muito propenso a concordar, eis que nem esmola a gente pode dar acreditando que está fazendo o bem, pois pode perfeitamente estar ajudando uma quadrilha que explora crianças, prostitui meninas na puberdade e comete outras coisas que “fazem muito no Brasil”, é um país tremendo esse Brasil e seus brasileiros. Até dar dinheiro a instituições de caridade a gente dá com um pé atrás, porque volta e meia aparecem casos de gente que enriqueceu com a grana que recebia para os necessitados. Eu mesmo já caí nessa diversas vezes, inclusive na inesquecível ocasião em que juntei dinheiro de que não podia dispor, para ajudar um “hanseniano” mineiro e descobrir depois que era uma quadrilha, especializada nesse golpe. Aqui tudo se falsifica, de remédios a pedidos e há inúmeros casos, sério mesmo, de falsificações falsificadas. É, no sentido lato e generalizando só um pouco, somos um povo de ladrões. Até porque aqui sempre valeu o latinzinho citado pelo bom Erasmo, em seus “Adágios: nullus mallus magnus piscis, nenhum mal vai ao peixe grande. Aí todo mundo acaba aprendendo e o peixe pequeno vem aprendendo bastante, ao longo dos séculos.

João Ubaldo Ribeiro, em O Globo (12/12/2004) 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Pensamento do Dia


 

Politicamente incorreto

Numa de suas viagens imaginárias Gulliver visita a Academia de Lagado; nela várias experiências eram feitas para se encontrar a felicidade plena. Os sábios, convictos de suas certezas, tinham abolido a linguagem. Cansados dos equívocos que as palavras encerram – apenas travestiam a realidade –, resolveram comunicar-se através dos objetos a que se referiam. Andavam com sacos e carroças repleto de coisas e, ao serem interpelados, as mostravam para dizer exatamente aquilo que desejavam exprimir. Entretanto, dizem os linguistas, mesmo se fosse possível reunir em único lugar um número expressivo de baleias, seria impossível dizer “todas as baleias”. O significado de “todas” transcende a materialidade empírica daquilo que denota. Há uma longa história do devaneio da língua perfeita, idioma do Paraíso (Umberto Eco se dedicou a decifrá-la); sua estrutura celestial seria capaz de apreender o mundo com justeza e precisão, entre as palavras e as coisas não existiria o hiato da inexatidão. A cada objeto ou ideia haveria um único termo para denominá-los; assim, qualquer ambiguidade de sentido seria eliminada.

Porém, a língua é uma representação, ela não se esgota na mensagem que enuncia. O politicamente correto acredita que os termos de um idioma contêm a essência daquilo a que se refere, entre as palavras e o mundo haveria uma conjunção harmônica e íntegra. Assim, dizer algo errado é equivocar-se em relação à essência, a correção é necessária para ajustar o desvio pressuposto entre linguagem e realidade. O “cancelamento” decorre desta intenção: isolar o verdadeiro do falso.

Fernando Botero

Nada há de novo nisso, existem vários exemplos de disciplinarização da língua; é o caso da Revolução Francesa. Os revolucionários procuraram extirpar todos os traços da tradição cristã da vida francesa, a reforma do calendário gregoriano tinha justamente esse objetivo. Os doze meses do ano foram rebatizados (Brumário, mês das brumas; Nivoso, da neve; Pluvioso, das chuvas; Florial, das flores; etc.), os dias da semana redefinidos (primidi, duodi, tridi, quartidi, etc.) e não mais seriam dedicados a nomes de santos (foram trocados por elementos da terra: açafrão, uva, castanha, etc.). Algumas palavras foram também banidas do vocabulário quotidiano, “senhor” e “senhora” sendo substituídos por “cidadão”, manifestação do espírito de igualdade entre as pessoas. Entretanto, o “terror linguístico” (assim foi denominado na época) tinha uma amplitude maior, a emergência do Estado-nação republicano exigia a manifestação da unicidade da língua; os vários dialetos existentes no país foram, portanto, censurados e perseguidos, todos deveriam se expressar em um único idioma: o francês. Afirmava-se a totalidade da nação para se contrapor ao diverso que a ameaçava; como no mito de Babel, a diversidade era uma maldição. No caso do politicamente correto tem-se algo irônico: o ideal da diversidade exige o controle da língua, porém, o diverso é o fundamento da homogeneidade almejada.

Jakobson dizia que uma língua se define pelo que pode e não pelo que permite ou deve dizer, por isso nenhum idioma é superior ou inferior aos outros (muito se escreveu sobre a superioridade do inglês, ele seria capaz de expressar coisas que outras línguas desconheceriam). Na verdade, os idiomas representam o mundo à sua maneira, cada um deles contém uma verdade na qual a linguagem se assenta. Entretanto, toda língua se realiza em contexto (essa é a diferença entre linguagem e língua); nela, o significado das palavras se transforma e se desdiz. A entonação da voz, indicando suavidade ou rispidez, a ironia, a expressão facial de quem fala, constituem elementos que modificam o sentido expresso do que é dito. O contexto é a situação na qual as palavras (diz-se que uma frase foi retirada de contexto) ou os indivíduos se encontram. A linguagem, enquanto estrutura, não garante imediatamente a inteligibilidade da fala (ou da escrita), é necessário que ela se insira numa determinada rede de interação social. A mesma coisa dita em lugares distintos, com entonação distinta, tem significado diferente. Imaginar a existência de um manual da utilização correta das palavras, reduzindo-as a um determinismo militante, é uma quimera. O contexto é história e a história é um destino coletivo, não o monopólio da definição das boas intenções. A riqueza de uma língua exprime-se na multiplicidade de sentidos que ela possibilita dizer, a ternura ou o ódio, a frustração ou a tristeza, a dominação ou a liberdade.

Sempre me intrigou a obra de Botero, com suas gordas e gordos. Não entendia sua intuição estética até visitar o museu de Medellin. Nele existem várias esculturas, mulheres gordas, padres gordos, gatos gordos, burgueses gordos, mesas e cadeiras com bordas arredondadas, vasos redondos, etc. Percebe-se que seu interesse é pelas curvas, o volume das coisas, enfim, aquilo que é esférico, roliço. O universo de Botero é sem arestas, tudo está sinteticamente integrado na sinuosidade das formas. Diante das agruras do real, das contradições, da amargura, o artista imagina uma configuração de elementos que idealmente contrasta sua aspereza. Porém, como todo artista, ele sabe que sua ficção é distinta daquilo que o cerca, o real é ponto de partida para sua imaginação. O politicamente correto padece da tentação do Bem e de uma certa ilusão de ótica, aspira a um mundo no qual a sombra dos objetos se projeta sobre sua própria essência. Suprime-se, assim, o hiato entre a verdade e a dúvida, ser e estar.
Renato Ortiz

Luiz Inácio avisou: 'São 300 picaretas com anel de doutor'

Não basta ser bom de gogó para que se consiga governar. Getúlio Vargas era ruim de gogó e governou o Brasil de 1930 a 1945 como ditador, e de 1950 a 1954 como presidente eleito pelo voto popular. Matou-se com um tiro no peito para não ser derrubado mais uma vez por um golpe militar. O golpe só ocorreu 10 anos depois.

Mas Juscelino Kubitschek era bom de gogó, Jânio Quadros, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Lula também, cada um e suas circunstâncias. Nenhum dos generais-presidentes da ditadura foi bom de gogó, mas eles tinham a força ao seu lado. O voto e a anarquia militar puseram fim à ditadura.

Atribui-se a Fernando Henrique uma frase que ele nunca disse: a de que teria governado pela primeira vez com o gogó. Da segunda vez, o gogó não bastou. O Plano Real, que o elegeu em 1994, perdera o encanto, o país já não estava bem, e seu candidato a presidente em 2002, José Serra, acabou derrotado por Lula.

No último volume dos “Diários da Presidência”, obra que ditou para um gravador durante seus oito anos de governo, Fernando Henrique diz que para negociar com o Congresso foi preciso “botar a mão na lama”. E explicou, sem descer a detalhes:

– Há setores políticos da base que são uma podridão. Esse é o problema do Brasil. Não é a maioria, mas os mais espertos dominam parte importante da maioria, e eles são partes do jogo brasileiro.

– Não tenho preocupação com pessoas nem com o falso moralismo. Tenho que contar com o que existe aí. É botar a mão na lama para fazer adobe (tijolo) e construir uma casa. É complicado.


Lula sabe exatamente o que Fernando Henrique quis dizer. Nos seus primeiros dois governos, Lula também teve que pôr a mão na lama para governar com “o que existe aí”. Deu no que deu no Lula 1: o escândalo do mensalão do PT; e no Lula 2, o Petrolão. Pagou muito caro por isso. Pegou 580 dias de prisão.

Fernando Henrique sempre contou com a proteção do establishment; Lula, com a sua hostilidade. Em 2022, uma pequena fração do establishment votou em Lula para livrar-se de Bolsonaro, o pior presidente da história, a quem apoiara em 2018 acreditando que assim poria o último prego no caixão da esquerda.

Lula voltou por um sopro de votos. A esperança do establishment é que o prego possa ser batido em definitivo daqui a dois anos, sem Bolsonaro, mas com um nome da direita que tenta em se apresentar como civilizada, essa mesma direita que, hoje, boicota todos os esforços do governo para tirar o país do buraco.

Em setembro de 1993, com a experiência de dois mandatos como deputado federal, Lula disse a respeito do Congresso:

– Há [ali] uma maioria de 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses.

Cobrado a se explicar, disse mais tarde que defendia o poder Legislativo: “O resto é gente boa […] que vota por convicção ideológica e não por fisiologismo.” A menção aos picaretas virou letra de música da banda Paralamas do Sucesso:

– Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou/São 300 picaretas com anel de doutor.

É com 300 ou mais picaretas que Lula 3 é obrigado a negociar, com a diferença de que o Congresso naquela época era muito menos poderoso e não votava apenas em troca de dinheiro.
Ricardo Noblat