sábado, 31 de agosto de 2024

Como supostos laços do X com oligarcas russos impactam Musk

Documentos judiciais divulgados na semana passada pelo Tribunal de Distrito dos EUA para o Distrito Norte da Califórnia lançaram luz sobre acionistas e investidores envolvidos com a X Holdings Corp de Elon Musk, revelando quem ajudou a financiar em 2022 a aquisição de 44 bilhões de dólares (R$ 247 bilhões) da plataforma, conhecida na época como Twitter.

A revelação ocorre justamente quando o bilionário sul-africano se encontra em uma disputa com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

A lista, obtida pelo jornal Washington Post, elenca cerca de 100 entidades e indivíduos, incluindo empresários proeminentes do Vale do Silício, mas também indivíduos que supostamente têm ligações com oligarcas russos.

Os advogados da organização sem fins lucrativos Reporters Committee for Freedom of the Press (Comitê de Repórteres para a Liberdade de Imprensa) entraram com uma moção em julho pedindo que o tribunal liberasse os registros, em nome do jornalista independente de tecnologia Jacob Silverman.

Em seu site, Silverman escreveu: "Acredito que as pessoas têm o direito de saber quem é o proprietário de uma empresa com um papel tão proeminente na formação do discurso público, tanto nos Estados Unidos quanto ao redor do mundo".


Uma das empresas listadas é a 8VC, uma companhia de capital de risco cofundada por Joe Lonsdale, também cofundador da plataforma de análise de dados Palantir.

A 8VC investiu em projetos de defesa dos EUA, com Lonsdale argumentando que a crescente influência da China está por trás da iniciativa de sua empresa de apoiar startups militares.

Ao falar durante um evento em março, Lonsdale afirmou que a China está "construindo coisas realmente avançadas que estão começando a competir com os EUA".

"Isso se tornou uma constatação muito assustadora para nós há cerca de 10 anos, de modo que passamos a nos dedicar com afinco à defesa", disse ele.

No site do fundo, Denis Aven e Jack Moshkovich – filhos dos oligarcas russos sancionados Petr Aven e Vadim Moshkovich – aparecem na seção de funcionários. O primeiro é cofundador do Alfa-Bank, o maior banco privado da Rússia, e da empresa de investimentos LetterOne Holdings. Ele foi sancionado como parte das medidas impostas a indivíduos russos em reação à guerra da Rússia contra a Ucrânia.

Moshkovich, por sua vez, fez fortuna no setor agroindustrial com sua empresa Rusagro Group. Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, ele foi sancionado pelos países ocidentais devido a seus supostos laços com o presidente russo,Vladimir Putin.

Não há nada que sugira que os pais sancionados tenham algum vínculo financeiro com a 8VC. No entanto, é provável que as funções de seus filhos sejam submetidas a um exame mais minucioso, já que o governo dos EUA está se tornando cada vez mais cauteloso com os vínculos de personagens estrangeiros com o setor de tecnologia.

Recentemente, o National Counterintelligence and Security Center, do gabinete de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, divulgou um boletim alertando as startups do Vale do Silício sobre a possibilidade de agentes estrangeiros usarem acordos de investimento para explorar dados confidenciais.

Conhecer a propriedade de um canal de mídia que exerce uma influência considerável, com alcance internacional, proporciona transparência, não apenas para os usuários, como também para as partes financeiras interessadas. Então, o que essas revelações de propriedade significam para Elon Musk e sua plataforma de mídia social X?

"Os proprietários tradicionais, como fundos de investimento, podem esperar um retorno financeiro convencional. Em comparação com outras mídias, o oeste selvagem dos canais de mídia social pode atrair outros investidores que imaginam que seus retornos possam vir de uma combinação diferente de maneiras", diz Gordon Fletcher, especialista em pesquisa e inovação da Salford Business School do Reino Unido.

"Endossos, acesso a dados, amplificação algorítmica de mensagens ou filtragem aprimorada podem ser possibilidades", disse à DW.

A divulgação pode ser incômoda para alguns dos investidores de alto nível, que incluem o príncipe Alwaleed bin Talal, da família real da Arábia Saudita, e empresas de investimento como o Baron Opportunity Fund e a Andreessen Horowitz.

"Embora os investidores em tecnologia sediados nos EUA tenham sido revelados logo no início, o grupo mais amplo de investidores não foi. Uma promessa de não divulgação incomodaria alguns que agora estão sob os holofotes. Isso pode ser útil como alavanca para negociar uma posição diferente em relação à empresa", disse Fletcher.

No entanto, não está claro, neste momento, se isso provocará um êxodo de investidores da X.

"Pode não ser simples para eles venderem suas participações para Musk ou algum outro comprador. A capacidade de vender pode depender de acordos de investimento específicos que não conhecemos", diz Paul M. Barrett, vice-diretor do NYU Stern Center for Business and Human Rights.

Nesta fase, também é muito cedo para dizer se o envolvimento da 8VC e, especificamente, a dos filhos de oligarcas russos sancionados, poderá dissuadir outros fundos de capital de risco de investirem na X.

"Há um grupo cada vez maior de grandes investidores institucionais que estão cada vez mais apresentando seu portfólio como sendo baseado em compromissos éticos. Muitos deles se baseiam em preocupações ambientais e não políticas. Mas a visibilidade desses investidores específicos e sua ligação com a Rússia deixarão alguns investidores institucionais nervosos", disse Fletcher.

Dito isso, Fletcher acredita que outros players internacionais ainda podem estar dispostos a investir. "Já houve interesse de diferentes fundos soberanos em fazer investimentos em mídia de todos os tipos, impressa e digital. Se o retorno for adequado (seja qual for a forma prometida), sempre será possível encontrar um investidor."

Embora Fletcher afirme que os investidores e anunciantes estarão "considerando suas opções cuidadosamente", Barrett não está convencido de que as possíveis consequências das revelações sobre a propriedade possam deter os anunciantes.

"Não está claro para mim se um anunciante que tenha tolerado o deslizamento do Twitter de volta ao pântano do extremismo e da propagação do ódio ficaria de repente tão desiludido com essa revelação que corte os laços com a empresa", disse.

A DW não conseguiu entrar em contato com o departamento de comunicação da X para obter um comentário sobre o assunto.

O que acontece nas redes sociais fica nas redes?

Quando há dias Pavel Durov, o fundador da rede social Telegram, foi detido em França, gerou-se um coro burlesco liderado por Elon Musk – estaria em curso um ataque à liberdade de expressão. Por essa altura, pouco se sabia sobre os motivos da detenção e até havia razões para algum ceticismo. Afinal, a detenção ocorria em França, um país que tem tido posições bastante restritivas em matéria de liberdade de expressão e de reserva da privacidade, designadamente em relação à proteção de fontes de jornalistas.


O tema é sério. Acima de tudo, porque as redes sociais têm sido instrumentais para a mobilização social de quem se bate pela liberdade em regimes autoritários ou em democracias musculadas, mas, não menos relevante, porque há de facto uma pulsão controladora nas nossas sociedades que acabará por se transformar numa rampa deslizante. Para já, são apenas casos excêntricos – como as diretrizes da administração do Hospital de Santa Maria, que se propõe instaurar processos judiciais a pessoas que ofendam os seus profissionais nas redes sociais–, mas convém estar alerta: em dois tempos, em nome dos limites à liberdade de expressão, estaremos a censurar as opiniões daqueles de quem discordamos.

Mas, ao contrário do que por vezes nos quer fazer crer esta geração de libertários tecnológicos, a liberdade de expressão não pode ser encarada como um valor absoluto. Da mesma forma que o Estado de Natureza exigiu um Leviatã e o faroeste um xerife, um juiz e, já agora, um cangalheiro, também o mundo novo das plataformas digitais obriga a algum tipo de (auto)regulação. Sob pena de, no fim das interações intensas que decorrem no espaço digital, que, entretanto, criaram um ambiente nauseabundo, não sobrar ninguém para contar a história efémera das sociedades abertas no mundo real.

E sobre a regulação, há movimentos de sentido contrário. Enquanto no contexto europeu se coloca em causa, por bons motivos, o princípio da neutralidade das plataformas, criando obrigações equilibradas de reporte decorrentes de novos regulamentos europeus, designadamente o dos Serviços Digitais – o que tem sido respondido positivamente por uma parte das plataformas (por exemplo, Google, Meta e TikTok). Mas, outros há, como o X, desde que foi adquirido por Musk, e o Telegram de Durov, que têm persistido na não-colaboração e, no caso do X, no recuo das políticas de moderação de conteúdos, na manipulação do algoritmo (com resultados evidentes na degradação do ambiente nesta rede) e numa maior opacidade sobre o funcionamento da plataforma.

Só que, como recorda o caso Durov, a liberdade de expressão é, também, um cavalo de Tróia para ataques ao Estado de direito. Se em relação ao insulto gratuito e às campanhas contra o bom-nome das pessoas, que encontraram terreno fértil nas redes sociais, não há alternativa à tolerância infinita, o mesmo não deve acontecer perante crimes sofisticados e hediondos, que têm nas plataformas veículos privilegiados. Musk e Durov, duas personalidades entre o demiúrgico e o narcisista, com exércitos globais de minions libertários, bem podem rasgar as vestes, mas Durov foi indiciado por cumplicidade com burlas, tráfico de droga e pornografia infantil, designadamente após o Telegram se ter recusado a responder a um pedido das autoridades francesas para identificar um utilizador envolvido na promoção destes conteúdos. Há mesmo limites para o que se pode passar nas redes sociais. Limites previstos na lei.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Ressentidos querem ir à forra contra o mundo

Na pena de Shakespeare, Ricardo III era maldade pura, ambicioso sem limites, capaz de qualquer coisa pelo poder. De feiura profunda, assustava quem lhe aparecesse pela frente. Julgava-se um injustiçado e, como tal, autorizado a cometer o mal. A matança por ele promovida era o exercício de uma espécie de direito à reparação, a que, possesso, ele julgava fazer jus: uma rasteira na crueldade do destino, que lhe condenara à feiura chocante e brutal.

“Ricardo III”, de Shakespeare — peça analisada por Freud em ensaio conhecido —, põe em evidência o direito a ser vilão em contexto de supostas injustiças. O mundo passa a ser devedor, culpado, de modo que uma pessoa pretensamente injustiçada pelo destino se sente como que autorizada a ser injusta, transformando a vida dos outros na tragédia que é sua própria vida.


Trazendo a ideia para o século XXI, a mesma atitude de Ricardo III perante a vida, de cobrança intransigente, pode ser encontrada no discurso da extrema direita, que vem assolando o mundo. O mundo — o que, evidente, inclui coisas tão importantes como democracia ou meio ambiente — deve ser implodido, numa atitude de vingança, na medida em que o próprio mundo não teria dado voz e vez a toda uma classe, que sempre vivera nas sombras. É a desforra dos ressentidos — o momento de glória dos “cobradores”, daqueles que se guiam pelo sentimento de vingança, cobrando do mundo, dia e noite, reparação a que julgam ter direito.

Interessante pensar nisso como resultado, em parte, da dissociação, cada vez maior, entre política e ideologia. Política pressupõe necessariamente antagonismo, conflito de ideias. A política democrática precisa ter ascendência real sobre desejos e fantasias. Como identifica Chantal Mouffe, quando a divisão social não pode se manifestar em razão da pouca clareza da linha divisória entre esquerda e direita, as paixões não podem ser mobilizadas na direção dos objetivos democráticos, e os antagonismos assumem formas que podem pôr em risco as instituições democráticas.

O que se vê hoje é a substituição da divisão entre esquerda e direita pelo antagonismo baseado na divisão do povo contra o “establishment”. O debate político descambou para o campo moral, onde, na medida em que o “bem” se contrapõe ao “mal”, não há adversário, mas inimigo a ser eliminado. O desafio, portanto, é a construção de um espaço onde o pluralismo seja respeitado e onde, sobretudo, haja visões conflituosas de mundo, capazes de gerar identificação e mobilização.

Se a construção desse espaço é um projeto de longo prazo, o que temos de imediato são as instituições, que exercem papel relevantíssimo, já que contribuem para frear o ânimo destrutivo dos seres humanos. No Brasil, é preciso ressaltar — e louvar — a atuação do STF na manutenção da nossa democracia. É ele quem, em última instância, vem dizendo “não”. Acontece que, para continuar exercendo sua função, o Supremo precisará cada vez mais de capital político, o que depende, em grande parte, da sua capacidade de se fazer respeitar. Do contrário, se não restar nem mesmo o STF, estarão dadas as condições para os “cobradores” fazerem a festa.

'Somos neutros'

Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.

Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a frequência das chuvas.

Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências de seus atos.

Os tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade:

— Somos neutros — dizem.

Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"

Empresários entre o horror e o inevitável em São Paulo

Sondado por um amigo comum para uma conversa com Pablo Marçal, um banqueiro despistou. “Cê tá louco? Ele vai sair por aí dizendo que falou comigo”. Um grande investidor paulistano, com negócios imobiliários em Goiás, de onde Marçal foi exportado para São Paulo, recebeu a mesma sondagem e caiu fora.

No meio empresarial e financeiro, este tem sido o comportamento padrão em relação ao candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo. Pelo menos até 6 de outubro. Num segundo turno contra Guilherme Boulos (Psol), cenário no qual a pesquisa Quaest desta quarta sugere um rigoroso empate, a coisa muda de figura.

O horror cede lugar ao inevitável. Com PCC, com tudo. Em dois grupos diferentes de WhatsApp de investidores, a vitória do candidato do Psol aparece como a única situação que os levaria a optar por Marçal, como um dia o fizeram, de maneira menos titubeante, por Jair Bolsonaro contra o lulismo.


Os empresários que orbitam em torno de Marçal ainda são predominantemente do marketing digital e startups financeiras, mas essas bolhas já começam a se expandir. Na noite do sábado, Samuel Pereira, um empresário do marketing digital, reuniu em sua casa em Alphaville um grupo de amigos em torno do candidato do PRTB.

Entre aqueles 11 homens brancos, regados a Rosso di Montalcino 2019 - Biondi Santi, havia um de fora da bolha, José Janguiê Diniz, fundador do Ser Educacional. Um dos grupos que mais se expandiram com o Fies e o Prouni dos governos petistas, abriu capital na B3. Janguiê joga em todas as posições.

Estreitou relações com administrações de centro-esquerda, como a Prefeitura do Recife, com a qual tem parceria de formação profissional, e comprou, por R$ 27,5 milhões, no leilão da massa falida do Banco Santos, a mansão do Morumbi, zona sul de São Paulo, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira. Com os cotovelos sobre a mesa, Janguiê gravou mensagem de apoio a Marçal, assim como os demais comensais, em vídeo que circula nas redes sociais em que todos fazem o “M” com os dedos apontados para baixo.

Não é o único de fora da bolha. Na lista de doadores oficiais da campanha de Marçal, está Helio Seibel, da HS Investimentos, com participações em grandes empresas do país, como a Dexco (Duratex, Deca, Hydra), Leo Madeiras, Loggi e Apolo Energia.

No registro oficial, Seibel doou R$ 100 mil, o mesmo que o empresário goiano Helvio Paulo Ferro Filho. Cada um deles doou tanto para Marçal quanto Arminio Fraga o fez para a candidata do PSB, Tabata Amaral. Marçal arrecadou, até o momento, R$ 944 mil, quatro vezes mais que Tabata. Dos cinco primeiros colocados nas pesquisas, são os únicos com registro de doações no TSE.

A lista de mais de 1 mil doadores de Marçal, com valores de R$ 500 a R$ 1 mil, é um cartão de visita para o discurso do empreendedorismo que entusiasma dois simpatizantes, Rafael Ferri e Tallis Gomes.

Ferri ganhou fama ao colocar uma escultura de Paulo Guedes na entrada da empresa da qual era sócio, a TC, na avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo. Depois de vender sua participação nesta empresa, abriu uma assessoria de investimentos, a GTF Capital, que presta consultoria patrimonial a clientes da corretora Genial. Já Gomes, fundador da Easy Taxi e da Singu, empresa de beleza que vendeu para a Natura, hoje dirige a G4 Educação.

Não foram esses empresários que levaram à sua arrancada. Mais importante foi o impulsionamento cruzado de cortes de seus vídeos, desrespeitando a lei eleitoral, como denunciado - e acatado - pela Justiça Eleitoral. E, ainda, trapaças como aquela contada por Ana Luiza Albuquerque, Eduardo Escolese e Flávio Ferreira, da “Folha de S.Paulo”, em que Marçal se valeu de um homônimo de Guilherme Boulos para disseminar a associação que fez entre o candidato e a cocaína.

O que esta rede de pequenos doadores mostra é que Marçal tem nadado de braçada no empreendedorismo sem ser acossado por concorrentes. Um empresário que colaborou com Boulos chegou a sugerir uma incubadora de startups, com apoio da prefeitura, que negociaria convênio com universidades, forneceria água, luz, internet e isentaria os impostos municipais. Até uma parceria com o pé-de-meia, programa federal de bolsas para o ensino médio, poderia rolar. A proposta ficou no ar.

Além da ausência de concorrentes no tema, joga a favor de Marçal o discurso de que as ações contra sua candidatura podem vir a prejudicar o mercado digital para além de sua treta eleitoral. Duas gigantes do mercado, Google e X, entraram com embargos de declaração contra a decisão que suspendeu os perfis de Marçal pelo medo do efeito cascata.

É no TSE que esta batalha deve findar. É nisso que aposta o prefeito Ricardo Nunes, que, em entrevista ao Valor publicada nesta edição, insistiu no papel da Justiça Eleitoral a despeito de não tê-la acionado.

Como Marçal tem avançado nas pesquisas de maneira mais célere do que as ações, o mais provável é que uma decisão desfavorável à sua permanência no jogo, se acontecer, venha apenas no fim da campanha.

Tirar um candidato emergente da disputa tem um custo menor do que arrancar o líder que ele arrisca se transformar. A reação dessa rede de apoiadores, impulsionadores e influenciadores do marketing do empreendedorismo, dentro e fora da lei, abrirá uma frente de batalha que renovará a guerra entre justiça e política até 2026.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Economia da destruição

Existe um dito popular que se refere a agosto como sendo o mês de cachorro louco. Esta seria uma das possíveis explicações para a recorrência com que fatos dramáticos têm afetado a sociedade brasileira ao longo da História neste período do ano. Outras pessoas preferem atribuir ao fenômeno astrológico de Plutão retrógrado a desgraceira toda que estamos vivendo por estes dias em termos das queimadas que assolam o país. Enfim, apesar da possibilidade de se buscar razões deste tipo, o fato inegável é que boa parte dos incêndios que estão provocando imensos prejuízos materiais e sociais têm uma base criminosa.

Ao que tudo indica, há uma clara confluência das queimadas provocadas nas regiões Norte e Centro Oeste com os efeitos dos incêndios provocados nas regiões de cultura da cana de açúcar em estados do Sudeste. No primeiro caso, estamos diante do conhecido processo de derrubada de vegetação nativa em biomas como Amazônia, Pantanal e Cerrado, com o objetivo de comercializar madeiras de forma ilegal, abrir campos para pastagem e mesmo iniciar a agricultura de “commodities”, como a soja. Já no segundo caso, trata-se de incêndios em regiões de tradição consolidada de plantio e processamento de cana.


Por mais que a eliminação ilegal dos biomas de fronteira seja caracterizada como atividade criminosa, o fato é que existem dificuldades efetivas para o monitoramento e a imposição de dificuldades por parte do Estado brasileiro para a continuidade de tal fenômeno. A dimensão continental de nosso território, as questões de logística para penetrar em tais áreas de difícil acesso e a influência dos grupos econômicos sobre o poder político local são alguns dos fatores. No entanto, apesar de explicarem, eles não podem servir de justificativa para a incapacidade crônica das instituições estatais de todos os níveis e esferas poderem atuar de forma a inibir e punir tais crimes.

É óbvio que a linha política e programática do governo federal pode atuar em um ou outro sentido. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 contou com o forte apoio dos setores ligados ao agronegócio, incluindo também os grupos envolvidos com a grilagem de terras, o garimpo ilegal, a invasão de áreas destinadas a populações originárias e outras ilegalidades. A chegada desse defensor da tortura e da ditadura no Palácio do Planalto teve o significado de abrir as porteiras para a boiada passar, no dizer de seu Ministro do Meio Ambiente. Uma completa inversão valores e de implementação de políticas públicas.

Assim, logo no primeiro ano de seu governo, Bolsonaro estimulou um conjunto de ações desencadeadas pelos produtores rurais. Assistimos à pulverização de atos criminosos por todo o nosso território com apoio do setor público federal. O evento ficou conhecido como o “Dia do Fogo”. Talvez por coincidência ou sincronicidade, mas deu-se também em agosto de 2019. O dia 10 daquele mês foi marcado por uma quantidade incomensurável de atos de degradação ao meio ambiente, sempre contando com a segurança de impunidade para os responsáveis.

Esse tipo de orientação de conivência e cumplicidade para os órgãos públicos teve igual repercussão quando se tratava de apoio à invasão de terras indígenas, ao desmatamento ilegal e na passividade de tratamento de atividade de garimpo ilegal. As direções de órgãos como Ibama, ICMBio, Funai e outros passaram a colaborar com os criminosos e não aturam em defesa das populações atingidas e de preservação do meio ambiente. Além disso, tais instituições foram submetidas a processos de desmonte e de sucateamento, passando a sensação para o conjunto da sociedade de que o momento era para ser aproveitado para políticas de terra arrasada e de vale-tudo.

A partir de janeiro de 2023, as coisas mudaram de orientação. Com o terceiro mandato de Lula, o meio ambiente voltou a ser considerado prioridade na agenda governamental, inclusive com a nomeação simbolicamente relevante de Marina Silva para a pasta responsável pela sustentabilidade. No entanto, o desmonte provocado no setor durante os 6 anos de Temer e Bolsonaro ainda deixa raízes terríveis. Os indicadores apresentam melhoria mas o nível do desastre ainda é bastante levado.

No caso da cana de açúcar, a questão é mais complexa. Os setores envolvidos com a defesa dos interesses das usinas argumentam que as práticas de queima da terra após a safra para preparar o novo plantio são seculares. De fato, os incêndios deste mês não podem ser explicados apenas por esta causa. A legislação é ambígua e abre uma brecha de interpretação que permite uma leitura favorável a se utilizar deste tipo de queimada. Uma alternativa de método de planto equivocada em todos os sentidos e que compromete sobremaneira os solos, as águas, a flora, a fauna e o meio ambiente de forma geral.

As primeiras notícias e análises do processo atual, por exemplo no interior do estado de São Paulo, apontam para a possibilidade de ocorrência de atos criminosos contra inclusive os interesses das próprias usinas. Será necessário avaliar com mais calma os resultados das investigações para se ter maior clareza a respeito dos fatos. De toda forma, trata-se de medidas que precisam ser apuradas e os responsáveis de ser incriminados e processados. É fundamental romper o círculo vicioso da impunidade que existe também neste setor.

Enfim, mas o que importa reter no conjunto da análise dos eventos de mais este agosto trágico é que se trata de mais um fenômeno associado à economia da destruição. A começar da inserção do Brasil nesse modelo da divisão neocolonial das atribuições em escala internacional. Nossas elites aceitaram passivamente a transformação do país em um grande produtor-exportador de bens primários de baixo valor agregado. Que seja na exportação de minério de ferro e petróleo ou então da produção para venda no mercado externa de soja e carnes. A especialização e a concentração de toda nação nestas atividades implicam a destruição do meio ambiente e promovem a desindustrialização de nossa estrutura produtiva.

Os atuais incêndios são apenas uma faceta mais extremada e violenta do processo de destruição econômica. É claro que a tarefa atual é combater esse tipo de crime, mas não basta que os céus sejam mais claros e azuis.
Paulo Kliass

Das palavras e da guerra


Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. São a vida e quase toda a vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.
Raul Brandão









Não sei que palavras utilizar , quando os dias que correm são dias de vergonha . Queria registar toda a perplexidade dorida que cresce , sempre que eclodem as notícias diárias. Mas « os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo» escreveu Wittgenstein, no século XX. Perante a barbárie, esgotam-se os caminhos da linguagem. Perante a crueza das realidades emergentes do mundo actual, é impossível ser claro , sem que a emoção nos embargue e o horror nos tome.

A verbalização é uma capacidade inerente à pessoa humana, à sua relação com o mundo e respectiva materialização. Eis porque se quedam as palavras numa agónica aporia, num silêncio de espanto perante o terror que milhares e milhares de seres humanos vivem, numa parte deste nosso mundo. E, quando esse terror é propagado pela tirana ambição de um só homem, de que nos servem as palavras que conhecemos? Recusam-se a traduzir a ferocidade do homem capaz de negar o outro homem. Teriam de ser medonhas , numa obscuridade indefinível , que logo ficariam opacas pela sua enormidade. Como criá-las ? E inventá-las para quê , quando são glosadas infamemente pela boca do carrasco. A inversão de posições, o plano da realidade é empurrado para a vítima invadida, quando o agressor se diz ser ele próprio a vítima. O Ocidente está a sofrer o resultado da sua ambição, grita o louco facínora, enquanto lança bombas sobre crianças e gente desprotegida. Não lhe basta dizimar um país, mas quer estender a ameaça ao mundo ocidental. Que tipo de homem tem tamanha ambição?

E lembro-me de repente dum filme muito antigo
Em que o criminoso perguntava:
“De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?”
e nos seus olhos lia-se o pavor
de quem viu um abismo e não lhe sabe o fundo...
De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens
que queimaram vivos outros homens? Que tinham centos de crianças
a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?
que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,
que os faziam descer ao mais fundo da degradação,
torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?
Eram esses mesmos homens
que faziam pouco da liberdade,
que vinham salvar o mundo da desordem,
que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!
Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,
a ordem com as câmaras de tortura...

Assim disse Adolfo Casais Monteiro, no magnífico poema Europa.

Sei que não sei dizer as palavras nem exactas nem reais .Tento reconhecê-las em quem as soube produzir. Mas sei, isso sim, que há dor a mais nos rostos de quem sobrevive à morte encomendada por um só homem. Homem que traz as grades da tortura para impor a Ordem do seu amordaçado mundo. As palavras emudecem. E, se algumas sobreviverem, talvez repitam como Sartre: «Ces mots durs et noirs, je n’ en ai connu le sens que dix ou quinze ans plus tard et, même aujourd’hui, ils gardent leur opacité : c’est l’humus de ma mémoire. »
Maria José Vieira de Sousa

Polarização é ato de má-fé

Temos corpos repartidos em esquerda e direita. Mãos, pés, olhos, narinas, ouvidos, dedos, hemisférios cerebrais, tudo tem um outro polo que não é “reserva” ou “duplicata”, mas complemento. Somos constitucionalmente duplos, e nossa natureza bipolar facilita a automistificação.

Polarizar é parte de nossa natureza. Entretanto ela tem sido usada mais para dividir e condenar que para compreender. Os lados se complementam, mas, na politicagem, o conceito bloqueia a relativização. Passa a ser prova de certezas, quando o que está em jogo são circunstâncias e limites.

Polarização é uma palavra mais apropriada para uma enfermidade em que represento a verdade, enquanto você exprime erro e ignorância. Tudo o que digo traduz boa consciência do mundo e das coisas; ao passo que você é a personificação da má-fé. Estamos afundados nessa dualidade não complementar e destrutiva faz tempo.


Lula 3 diz que o regime de Maduro na Venezuela é “desagradável”, mas não hesitou em equacionar a reação de Israel ao terrorismo do Hamas como genocídio. Aliás, esse episódio revela nossa infortunada capacidade de somar selvagerias...

Tudo o que está comigo é verdadeiro e não é relativizável, mas seu lado é, invariavelmente, falso, hipócrita ou mentiroso. Hitler e Stálin não exterminaram ninguém; simplesmente foram antipáticos. Como Fidel ou Ortega.

A má consciência revela um autoritarismo rigoroso e, no limite, é o berço dos fascismos. O Diabo, que sempre desejou a morte de Deus e de suas incertezas, é fascista. Para ele, não pode haver outro lado além do seu. Eu tenho amor; você, ódio. A outra mão deve ser englobada em todas as situações. O aleijão resultante não é problema. Podemos viver sem um lado, como manda a lógica da má-fé e dos ficcionalismos modernos.

A má consciência é madrinha dos particularismos. Ser diferente é ser particular ou singular. Somos exclusivos em nossas identidades, mas não podemos equacionar peculiaridades com privilégios, exceto em casos especiais. Quando somos muito ricos, grandes ou poderosos.

Quando julgamos a esquerda subversiva e a direita reacionária, não contribuímos para a clareza. Pelo contrário, apagamos a luz do lado que consideramos inútil, malvado ou demoníaco.

Polarizar não é opor com objetivos de esclarecer ou enxergar melhor. É, como tristemente testemunhamos, um modo de esvaziar o outro lado de razão.

No fundo, trata-se de mutilar o debate, o contraste, a identidade e a compreensão pela eliminação moral ou ideológica do outro, porque temos a bala de prata do certíssimo, do claríssimo e do crudelíssimo. Só nós contamos, porque estamos absolutamente certos de que ultrapassamos a eterna dúvida humana que faz parte de nosso caminhar.

A certeza castra a competição. E a competição é a base do liberalismo democrático. É ela que testa a riqueza de certos caminhos e posições. Por causa disso, regimes democráticos têm como sina e determinação a mudança periódica dos cargos públicos. Todos regulados por ideais diversos, mas unidos num acordo pela transitoriedade do poder. Uma transitoriedade fundada em direitos individuais.

Para realizar tal objetivo, regimes democráticos articulam eleições — competição eleitoral em que se submetem ao julgamento da população de cidadãos, aqueles que votam e elegem seus candidatos por um período delimitado. A regra eleitoral é um dos melhores exemplos de norma universalista, pois vale para todos os candidatos e todos os votantes. Trata-se de “jogo inclusivo” e, como sabemos, arriscado.

Como um jogo de poder, ele desperta paixões espúrias e, em países cuja estrutura social se funda em valores aristocráticos e elitistas, existe permanente tentação de eliminar o opositor. O golpe nasce e cresce como malfadado projeto, justamente quando a polarização assegura certezas e armazena os argumentos das balas de prata que salvariam a sociedade. Trata-se de um pantanal ético de que — valha-me Deus! — ninguém escapa!

Inocentes condenados

Neste planeta há estimados dois bilhões de animais humanos com idade menor que 10 anos, e cerca de 650 milhões que ainda não fizeram o sexto aniversário. Todos eles são inocentes. Inocentes, e condenados!

É triste saber que meus filhos e netos, assim como os dos leitores, estão condenados, mesmo sendo inocentes. Condenados a quê? Inocentes de quê?

Nesse subconjunto da humanidade estão pessoas que, em sua maioria, estarão vivas no ano 2100, quando terão menos de 90 anos. Claro, muitos terão morrido, mas a maioria ainda estará viva, salvo alguma possível – provável? – guerra nuclear. Afinal, o aumento da expectativa de vida é um dos feitos positivos da humanidade. E os ainda estiverem vivos, em que mundo viverão?


No Brasil de hoje, do Sudeste ao Norte, estamos respirando ar seco, poluidíssimo, cheio de gases venenosos, agravado pela fumaça de incêndios, alguns dos quais criminosos, feitos em nome do progresso, em nome de abrir áreas para aumentar a produção de alimentos! Estamos vendo também a quase totalidade deste país, e de muitos outros, sob ameaça de mais incêndios queimando árvores que deveriam viver para reter água para nossa sobrevivência. Mas, em nome do “progresso”, continuamos a degradar a biosfera, a base da nossa sobrevivência.

Hoje, a Organização Mundial da Saúde estima em sete milhões as mortes, a cada ano, decorrentes “apenas” da poluição do ar. Quantas serão dentro de vinte, cinquenta anos, se seguirmos acreditando que explorar e queimar petróleo trás riqueza? É fato que quando tal queima começou, há quase dois séculos, ela ajudou a melhorar a vida de muitos, mas continuar a usá-lo passou a piorar e a condenar a vida de muitos mais, inclusive aqueles que hoje são crianças. Não é novidade comparar os combustíveis fósseis às drogas: euforia nos primeiros usos, morte quando se torna dependente!

Não são só os incêndios que preocupam, e matam. Há pouco, vimos o Rio Grande do Sul devastado por enchentes e, na Arábia Saudita, estimados 1.300 fiéis morreram em poucos dias, em decorrência do calor extremo, que afeta inúmeras regiões do planeta.

A rapidez com que aumenta a frequência e a gravidade dos desastres derivados dos extremos climáticos assusta até mesmo os cientistas, pois sua progressão tem se mostrado mais veloz e grave que as previsões. Nessa aceleração, já se aceita que o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5oC já não é mais viável, acréscimos bem maiores sendo prováveis. Com eventos ainda mais extremos, e sofrimentos maiores.

Daí a se concluir que, embora nossos filhos e netos sejam inocentes, pois nós é que decidimos por eles, somos nós, e principalmente os dirigentes de países e empresas que, ao insistir em manter nosso modo de vida poluente e insustentável, os estamos condenando a vidas bem mais difíceis.

Trata-se de uma nova versão de holocausto e genocídio, realizado a cada dia de forma mais acelerada, em nome do “desenvolvimento”.

Espécie humana, se és sapiens, acorda e age!

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Ameaça climática já está no horizonte

Parecia uma cena do antigo cinema francês. Domingo de manhã, na bruma que cobria o lago Paranoá, um jovem de pé remava em sua prancha de stand-up paddle, enquanto a companheira, de chapéu e pernas cruzadas, observava o estranho horizonte. Não se via a outra margem. Os ventos pareciam levar à capital federal perguntas sobre o futuro.

Poucas vezes o céu de Brasília esteve assim tão encoberto. Queimadas ocorrem na região nessa época. Mas a novidade do fim de semana foi a chegada da densa bruma proveniente do Sul, de queimadas ocorridas em São Paulo e Goiás.

Algumas delas foram intencionais, segundo investigações preliminares de polícias estaduais. Em Goiás, um dos responsáveis pelo fogo admitiu que o mandante do crime teria intenções de prejudicar um adversário político.

O governo prontamente acionou a Polícia Federal para investigar se algumas das queimadas teriam mesmo sido propositais. E a extensão do fogo pela região central do país já assusta os experimentados agentes do Ibama.

A bruma, que parecia cenário de cinema romântico, na verdade tinha contornos de um denso filme de ação. Ou, quem sabe, de ficção científica.

De agora até outubro, o cheiro das queimadas estará mais forte do que o de costume. Como se buscasse chegar aos gabinetes oficiais para lembrar a urgência climática.

Por enquanto pouca gente estará na capital federal para perceber o aviso. Muitos deputados e senadores permanecerão em seus estados a maior parte do tempo até a data das eleições municipais. Decisões em Plenário serão cirúrgicas e rápidas.

O governo permanece em pleno funcionamento, mas não são poucos os ministros que dividirão suas atenções nos próximos dois meses, que coincidem com o pior período da época seca, com o destino de seus aliados políticos nas próprias bases.

Quando as chuvas de novembro finalmente chegarem, trazendo de volta a normalidade à capital federal, será o momento de averiguar se os sinais da natureza terão tido algum êxito em atualizar a visão de mundo de muitos dos que decidem o futuro do país.

As queimadas contribuem para as maiores emissões do Brasil de gases do efeito estufa. A redução dessas emissões dependerá da contenção de ações criminosas e da conscientização dos produtores rurais – além de apoio político.

Mas outro setor importante para a redução das emissões e para a contenção dos riscos climáticos é o de energia. Para estimular a produção de energias renováveis, o governo enviou importantes projetos de lei ao Congresso Nacional.

Um deles estimula a produção de energia eólica offshore, ou seja, no oceano. Uma prática cada vez mais frequente na Europa, por exemplo, e que parece bastante promissora no vasto litoral brasileiro.

Pois o projeto foi populado, em sua tramitação no Senado, por diversos jabutis – como são chamadas as emendas que pouco têm a ver com a proposta original. Uma dessas emendas, por exemplo, permite a prorrogação de contratação de térmicas a carvão – entre as mais poluentes do mundo – a um custo de R$ 92 bilhões.

Os poderosos lobbies do setor de energia têm feito a sua parte no convencimento de parlamentares. Muitos interesses regionais também estão em jogo quando se discute o processo de transição energética do país.

Lobbies bem menos poderosos ligados aos movimentos ambientalistas também procuram atuar no Congresso Nacional, com resultados muito mais modestos.

Os sinais emitidos pelo clima terão algum sucesso na mudança de ventos em Brasília? Não se pode ser muito otimista, quando o Legislativo tem sido marcado pela forte influência das bancadas ultraconservadoras.

De qualquer forma, a ameaça da mudança climática já está, de fato, no horizonte. Vai ser cada vez mais difícil fechar os olhos para ela.

Foice no escuro

É de se lembrar aos que porventura se entusiasmem pelo personagem encarnado na figura de Pablo Marçal (PRTB) na disputa pela Prefeitura de São Paulo: em 1959, a cidade "elegeu" para vereador, com 100 mil votos, Cacareco, rinoceronte fêmea residente no zoológico.

A rebeldia daquele eleitorado de 65 anos atrás não provocou efeito prático algum. Apenas marcou a entrada do episódio na história dos protestos contra os políticos tradicionais.E daí? Daí que os rebeldes se acreditaram engajados pela via do repúdio, mas jogaram no lixo a oportunidade de fazer uma boa escolha.


São Paulo é a maior, mais rica, mais poderosa e mais complexa cidade da América do Sul. Merece e carece de melhores opções para governantes por parte de seus residentes, interessados que deveriam estar em manter esse lugar de destaque.

Paulistanos orgulham-se da posição que também é motivo de admiração no restante do país. O estado é a locomotiva-mestre do desenvolvimento, como se diz, e a cidade tem papel preponderante nessa pujança.

A capital paulista não deve ser governada na base da galhofa, da subversão de regras de legalidade e civilidade. Necessita ser levada a sério, com governantes e governados que se deem ao respeito.

Não pode ser objeto de piadas ou de escárnio, muito menos de disputas que obedeçam à dinâmica de brigas de foice no escuro, como os atritos entre o clã Bolsonaro e o histriônico Marçal. Caberia aos candidatos adversários, aos partidos, aos organizadores de debates, às campanhas, à Justiça Eleitoral e, sobretudo, ao eleitorado, dar um jeito de encontrar a melhor maneira de retomar o rumo adequado desse debate político.

Se não for assim, estaremos mal. Vamos nos arriscar, absolutamente todos, a aceitar a lógica da contestação vazia contida na preferência por um similar de Cacareco que só nos leva ao fundo do poço da negação da política.

Pablo Marçal revela a ameaça em gestação

Sinto que é hora de planejar férias. Nada de grandes viagens, mas apenas um mergulho no território da literatura e de outras artes. Isso me ajudou na pandemia. Encontrei a obra de Jorge Luis Borges, quatro volumes editados pela Globo Livros, um refúgio de sensibilidade e erudição. Saltei alguns poemas, mas foi um tempo enriquecedor.

O ato de interpretar o cotidiano da política brasileira desgasta e pede um respiro anual. Pressenti o desgaste do STF quando decidiu julgar, sem estrutura adicional, milhares de pessoas. Prisões consideradas ilegais, problemas na própria cadeia, gente com câncer precisando de tratamento e, sobretudo, penas consideradas muito pesadas — enfim, uma sequência de problemas que acabariam se voltando contra a Corte.

Tentei ser discreto, mas não deixei de mencionar minha apreensão. O resultado foi a desconfiança de que protegia a direita. Da mesma forma que a própria direita acusa a defesa de direitos humanos como proteção de bandidos.


O Supremo agora tomou uma decisão importante, determinando que as emendas parlamentares sejam transparentes e rastreáveis. O Congresso queria retaliar, atribuindo-se o poder de anular decisões do STF. Tomar posição nesse caso valeu críticas dos que combatem o STF.

Enfim, como respondeu o personagem de Samuel Beckett que apanhava todos os dias quando lhe perguntaram quem bateu:

— São os mesmos de sempre.

Isso faz parte do jogo e pode ser levado com certo humor. Mas outros problemas me deixam mais preocupado. Pensei que as eleições municipais fossem discutir as mudanças climáticas e a necessidade de melhor proteção das cidades, sobretudo das áreas mais vulneráveis. A observação do debate em São Paulo não só me desapontou, como trouxe à cena uma imensa ameaça. Sabemos que o crime organizado se infiltra na política. Mas, para sobreviver, precisa aceitar as regras do jogo.

O que acontece lá é diferente. Um homem apontado como criminoso por inquéritos policiais entra na cena política cometendo crimes abertamente, como se invadisse uma residência e rendesse a família. E nada acontece.

Talvez tenha uma sensibilidade especial para esse tipo de problema. Mas, para mim, é o desdobramento da política da extrema direita na versão mais agressiva e, infelizmente, com chances de crescer. Steve Bannon, ex-assessor de Trump, já previu o surgimento de uma extrema direita mais audaciosa e disruptiva. Parece que isso acontece no Brasil.

Os ensinamentos básicos são estes: os políticos são corruptos ou comunistas; em ambos os casos, pode-se acusá-los de qualquer coisa sem provas. Para combater o sistema político, todos os meios são válidos, é possível cometer tantos crimes quantos forem tolerados por uma Justiça Eleitoral hesitante e tardia.

As eleições na maior cidade do Brasil trazem um ensinamento sobre o qual será preciso refletir. Não se trata apenas de uma aventura política camuflada pela luta anticorrupção. É um pouco mais que isso. É a mensagem apocalíptica de que todos são criminosos, e é preciso escolher entre os que falam diretamente com seus medos e preconceitos.

Até que ponto isso pode avançar? A extrema direita no poder na Itália temperou seu discurso. Mas essa é a tendência ou o que vemos no Brasil é algo que aponta para algum futuro, um tempo em que a própria tecnologia favorece a barbárie?

Não é simples formular o antídoto. Por onde começar? Pelo mundo político que precisa se voltar para as expectativas elementares da sociedade? Pelos setores da sociedade que conseguem se identificar com a barbárie na esperança de algo melhor?

Desses problemas não se tiram férias. A nova variante da extrema direita não se opõe apenas ao sistema político, à imprensa e à academia. Ela desafia abertamente a lei pelos crimes comuns em que se formou, mas também pela metralhadora giratória de falsas acusações. Houve todo um preparo do TSE para combater fake news. Chegaram com uma nova embalagem e ainda não foram reconhecidos.

A pilantragem nunca deu tantos votos

"Mas entretanto eu errei no golpe/ Você no golpe também tinha errado/ Você julgando que eu desse moleza/ Atrás de moleza também tenho andado", diz a letra do samba-choro "Dois Bicudos". Os autores, Cartola e Aluísio Dias, contam a história de dois golpistas, que antes trocavam carícias e agora não se beijam. A situação lembra a de Jair Bolsonaro e Pablo Marçal nas eleições de São Paulo.


Os golpistas-bicudos têm espantosas semelhanças, a começar pela compulsão de mentir. Estão ligados ao crime; falam em nome de um Deus só deles; manipulam as redes; vendem-se como antissistema; ignoram qualquer projeto de governo e atacam o Estado; defendem a trapaça como um ideal de vida. Correm na mesma faixa da direita para seduzir o eleitor e representam a enganação política —que sempre existiu— levada ao paroxismo.

Um já esteve na Presidência, e as consequências todos sabemos. O outro quer chegar lá. O coach leva uma vantagem em relação ao capitão: seu trabalho como golpista foi mais eficaz. Durante anos ele participou de uma quadrilha especializada em invadir contas bancárias pela internet. Quem foi fisgado —e quem não foi no país que trocou o jeitinho pelo golpinho?— não esquece.

Marçal foi condenado, o crime prescreveu. Bolsonaro está livre. O ex-presidente tem um medo pânico de perder o controle das forças conservadoras, impossibilitando os planos de reverter a inelegibilidade (por enquanto, tais planos continuam a ser articulados no Congresso).

Mesmo assim, o choque entre Bolsonaro e Marçal tem alguma coisa do antigo telecatch —mordidas, cabeçadas, dedos nos olhos, tijoladas na cabeça e tesouras voadoras de mentirinha. Enquanto eles brigam, ou encenam a briga, estão capturando as atenções. Guilherme Boulos, o candidato da esquerda, e Tabata Amaral, do centro, vão ficando em segundo plano. A pilantragem nunca deu tantos votos como hoje.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Uma visão distópica de um Brasil que deu errado

O ano é 2033 e mais uma crise paralisa o país. O novo presidente busca um acordo com os presidentes da Câmara e do Senado para aprovar um pacote de medidas para tentar salvar seu governo.

Transcorrida a metade de seu mandato, o ocupante do Palácio do Planalto, vencedor das primeiras eleições após o fim do longo ciclo em que a política brasileira ficou polarizada sob a influência de Lula e Bolsonaro, vivia um impasse.

Não havia sido fácil chegar ali. Os analistas políticos haviam classificado a disputa presidencial de 2030 como “a eleição do cansaço”.

As velhas fórmulas políticas da década que se encerrava estavam desgastadas. Eleitores à direita e à esquerda haviam se dado conta da energia gasta em tantos anos de brigas nas redes sociais e no convívio social e resolveram dar crédito àquele candidato que propunha o básico: melhorar as políticas públicas com foco nos mais pobres e destravar a economia para a prosperidade das empresas.


Seu tema de campanha era fácil de entender - ao mesmo tempo básico e revolucionário. Básico, por prometer aquilo que sempre se esperou de uma liderança política; revolucionário, porque ninguém, uma vez eleito, havia realmente levado aquela determinação às últimas consequências.

Seu compromisso eleitoral era tão somente tirar do papel o art. 3º da combalida Constituição de 1988, curiosamente um dos poucos dispositivos originais que, passados mais de 40 anos, não havia sido alvo de nenhuma mudança por emenda.

Nas propagandas de campanha, ele alternava slogans inspirados nos objetivos fundamentais da República. Suas propostas para a economia eram articuladas sob o lema “Para garantir o desenvolvimento nacional”; as ideias para a política social eram envelopadas na mensagem de “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades”.

Suas falas moderadas miravam tanto os eleitores progressistas de esquerda (“promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminação”) quanto aos conservadores da direita - sobretudo quando ele destacava a necessidade de se “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (com ênfase nos dois primeiros adjetivos).

Seu programa de governo girava em torno de três eixos: i) reformular os gastos públicos para implementar uma cobertura integral do cidadão, com foco no trinômio saúde-educação-assistência; ii) promover um choque de produtividade na economia e iii) refundar o sistema tributário, tendo como norte outra determinação constitucional - a progressividade, que determinava que os mais ricos deveriam pagar mais impostos do que os mais pobres.

No fundo, ele tinha dúvidas se seria possível se eleger com aquela plataforma, ainda deixando claro nas entrevistas e debates que seria preciso mexer com o interesse de muita gente.

Mas aquela foi a eleição do cansaço, e depois de quase duas décadas com o país polarizado e dividido, a população se mostrou aberta para furar as próprias bolhas. Afinal, entre idas e vindas, avanços e retrocessos, o Brasil chegava no início da década de 30 preso aos velhos problemas do século XX: desigualdade social elevada, violência urbana fora de controle, inflação subindo, taxas de juros e carga tributária elevadas, crescimento pífio e desemprego preocupante.

Com os eleitores descrentes dos herdeiros do bolsonarismo e do lulismo, e depois das experiências desastrosas de celebridades televisivas e do mundo digital governando as maiores cidades do país, a sociedade se conscientizou de que a solução estava no meio.

E o candidato nem-nem (nem bolsonarista, nem lulista) cresceu primeiro agregando lideranças de movimentos sociais e empresariais para construir propostas de reformas da tributação da renda, de políticas públicas, do funcionalismo público, dos incentivos tributários. O debate foi ganhando corpo e ao longo da campanha o movimento se refletiu nas intenções de voto.

Transcorrida a metade de seu mandato, porém, o presidente eleito com quase 70% dos votos válidos no segundo turno experimentava a mais baixa taxa de aprovação desde o governo Temer e estava à beira de um processo de impeachment.

Nada de corrupção nem pedaladas fiscais: a queda de sustentação do governo pós-polarização se deu por paralisia. Governar havia se revelado muito mais difícil do que aparentava durante a campanha. Logo o novo presidente se deu conta de que não bastava um discurso que unia progressistas e conservadores ou propostas corajosas construídas após um amplo debate com a sociedade.

Em pouco mais de dois anos, a esperança de um país mais justo e dinâmico se perdeu pela oposição das velhas forças políticas reeleitas na base das emendas orçamentárias, do fundão eleitoral e de partidos personalistas e sem democracia interna, pelas mesmas regras eleitorais que favorecem candidaturas caras ou populistas.

Dez anos depois, em 2043, com o Brasil conflagrado por guerra civil e governado por um pseudoparlamentarismo autoritário, um acadêmico foi preso e torturado por escrever que a origem de nossas mazelas estava no conjunto de regras políticas e eleitorais, que nos levaram a fazer péssimas escolhas de parlamentares desde a Constituinte de 1987.

Mas aí já era tarde demais.

Humanoides clínicos

O American Board of Internal Medicine (Abim), entidade semelhante ao Conselho Federal de Medicina, no Brasil, revogou a certificação de dois médicos americanos conhecidos por liderar uma organização que promove a ivermectina como tratamento para Covid-19. A notícia tem relevância comparativa na profissão médica brasileira, onde acontece preocupante fissura qualitativa entre o nível da prática e o da instituição.

É o que revela a recente eleição no Conselho Federal de Medicina, vencida pelo bloco antiaborto, comprometido com o inútil receituário da cloroquina e da ivermectina durante a pandemia, explicitamente antenado à ultradireita. Há nele quem ainda apoie a violência depredatória na Praça dos Três Poderes.


O desconcerto evoca a narrativa do austríaco Robert Musil, "O Homem sem Qualidades", em que o personagem Ulrich, sem características próprias e indiferente ao mundo, busca um sentido para a vida. Embora do século passado, trata-se de uma construção romanesca atualíssima no século 21, quando as tecnologias da comunicação avançam céleres em eficácia técnica, mas viralizam os antagonismos políticos e o retrocesso de qualidades humanas.

Não se põe em dúvida a competência da maioria dos médicos brasileiros nem a excelência de determinados hospitais, tanto no setor público como no privado. Para cá, acorrem pacientes de várias partes do mundo atraídos pelo renome profissional de muitos. Há setores de pesquisa avançada conectados a centros de referência internacionais.

É pertinente, porém, a indagação sobre se o avanço clínico e cirúrgico se faz acompanhar por desenvolvimento ético compatível. Isso significa perguntar sobre a qualidade humana desse grupo técnico indispensável à saúde coletiva. Trata-se de refletir por quê indivíduos egressos de uma formação pautada pela integridade física da espécie acolhem em termos institucionais a regressão de valores humanos. Não há hospital sem hospitalidade ética, não há clínica sem inclinação visceral para a vida.

A questão aberta é que a exacerbação do individualismo de massa sob a manufatura capitalista de vidas supérfluas leva a uma profissionalização elitista em que o ego, inflado como um balão, perde de vista a dimensão social. A universidade teria subestimado a formação de caráter, algo que se adquire. Senão, o que ocorre já seria síndrome da supremacia técnica dos robôs, humanoides sem qualidades. Mas não é nada desprezível a suspeita rasteira de que a tentativa de importar mais médicos pés no chão, cubanos ainda por cima, tenha despertado um narcisismo corporativo afim ao que há de pior na ultradireita. Em suma, mais um surto do brutalismo nacional.

Onde é a 'Cracolândia'

A primeira vez em que ouvimos falar no vício de crack, aqui no Brasil, foi a propósito de um prefeito de Washington, negro – creio, aliás, o primeiro negro a exercer esse cargo. Escândalo tremendo, muita gente chegou a pensar que seria campanha dos brancos contra o chamado “homem de cor”. Mas o coitado confessou; os jornais tiveram de explicar ao público o que seria esse tal de crack, uma espécie de pasta, cujo ingrediente principal seria a cocaína. Passou o escândalo, como passam todos, e sumiram com o prefeito “craquista” no noticiário.

Mas já agora, infelizmente, ninguém mais no Brasil ignora o que é o crack.

E, pior: já é grande a difusão da droga entre nós, especialmente entre os jovens, em São Paulo, no Rio, e provavelmente na maior parte das grandes cidades do País. Há campanhas organizadas por associações beneficentes, e, claro, um pavor generalizado entre pais e parentes que já contam, em casa, com meninos e meninas consumidores ou pelo menos conhecedores da droga.


De São Paulo, recebo agora uma carta que me comoveu profundamente: uma coisa é a gente encarar um problema, embora grave, a distância; impressiona, revolta, mas não provoca o impacto, o susto daquilo que se vê com os próprios olhos, na casa de amigos.

Trata-se de um rapaz, que conheci garotinho, que sentei no meu colo, que já mostrava então nos olhos vivos uma inteligência precoce. Na carta, contam os pais, desesperados, que o menino, já rapaz agora, se tornou viciado em crack, e, dentro dessa rota, que parece sem retorno, caminha para o desastre final.

Dizem: “Nosso filho, o Junior (lembra-se como você gostava dele?), é hoje um desses menores perdidos pelas ruas do que eles chamam ‘Cracolândia’. Hoje, viciado assumido, já tem os pés danificados, perdeu dentes e traz nas costas as marcas das surras que, comumente, os jovens como ele levam de elementos da polícia, que por desvio de formação, talvez, maculam com violências a imagem da sua corporação. Da última internação que conseguimos para o nosso filho, o resultado foi catastrófico. Recorremos a uma clínica religiosa, que nos parecia capaz de conseguir uma solução. Pagamos R$ 200,00 na entrada e o soubemos de volta às ruas dentro de quatro dias.

Não lhe deram qualquer tipo de medicamento; como estudo, ensino bíblico, quatro horas por dia; e trabalhos de limpeza e cozinha como 'terapia'.

Confesso que não temos mais o que fazer, o que tentar. Recorremos a você, na esperança de que nos dê qualquer luz, que nos guie, neste pavor em que vivemos.”

Transcrevo aqui essa carta patética, mas veraz, levada pela mesma esperança desses amigos. Quem sabe o governo, a sociedade, a imprensa, qualquer pessoa influente ou organização (eles nos falam numa “Associação de Desenvolvimento Solidário”, que já existe em São Paulo, e se dedica ao problema) encontre uma solução. Dizem-me ainda os pais que esses meninos desviados não são só crianças carentes, alguns de classe média, outros de classe alta; trocam a casa dos pais pela rua, vivem de pequenos furtos e acabam dominados pelos traficantes de drogas.

Não serei a primeira nem serei a última a trazer esse assunto à imprensa.

O fato é que alguém tem de descobrir uma solução, antes que se perca, no crack, toda uma geração de jovens brasileiros.
Raquel de Queiroz (O Estado de São Paulo, 15 fev. 1997)

'Nós não somos iguais e nunca seremos'






“Nós não somos iguais e nunca seremos”. Ouvi a frase da boca do Chef Nuno Diniz, numa entrevista a Joana Barrios. Diniz di-la com firmeza a propósito do episódio em que um aluno de cozinha ousou tratá-lo por Nuno em vez de “Chef”. O tom altivo, áspero, seguro, que usa para afirmar a impossibilidade de ultrapassar a diferença fez-me pensar. Nos últimos 50 anos, vivemos numa democracia baseada numa ideia de igualdade formal perante a lei, que até agora ninguém parecia disposto a pôr em causa de maneira explícita, mesmo que as diferenças materiais tenham sido sempre tão grandes, que esta “igualdade” não passou nunca de uma abstração, que serve algumas boas consciências.

Mas por que me arrepiou tanto, então, a frase de Nuno Diniz, quando sei há muito que a igualdade é mais dita que real e o fosso entre os que estão por cima e os que ficaram por baixo não para de aumentar? Talvez porque Diniz diz de peito feito e voz límpida o que ao longo da minha vida ouvi sempre (e foram muitas vezes) em surdina.


Demos, então, outra vez a voz ao Chef para perceber de onde vem e como entende a diferença que lhe parece natural, incontestada e inultrapassável. “Eu pertenço a um meio social que já não se usa muito. (…) De cada vez que uma filha se casava, ia para a lua de mel logo com a criada. Portanto, havia a filha de uma das criadas da minha avó, que era despachada com a menina que casava. Isto quer dizer que eu até ter 22 ou 23 anos tive uma criada em casa, que era a Celeste. Para as pessoas com complexos, que me estejam a ouvir, ‘criada’ não é um termo depreciativo, o nome ‘criada’ é porque era criada connosco. E, portanto, era uma pessoa da família, comia connosco à mesa”, explica-nos Nuno Diniz.

A candura com que Diniz fala de uma pessoa que é dada a outra como um objeto e impossibilitada de qualquer arbítrio sobre si mesma mostra uma naturalização da desigualdade que parece incompreensível para alguém que acredite num sistema democrático. Há aqui uma ordem natural que confere direitos e deveres à nascença: há as que nascem ‘criadas’ e os que se dispõem a criá-las e até as deixam comer à mesa.

Nuno Diniz só se engana quando diz pertencer “a um meio social que já não se usa muito”. Entende-se-lhe a nostalgia nas palavras, perante um tempo em que não seria sequer preciso explicar o que lhe parece óbvio às “pessoas com complexos”.

Mas a verdade é que o sentimento de superioridade natural que ostenta usa-se muito. Usa-se cada vez mais. Vem disfarçado de “meritocracia” (que o que não se usa tanto é a “aristocracia”). Mas essa é só mais uma forma de distinguir entre os que à nascença têm quase tudo aquilo de que precisam para vingar na vida e os que só por um acaso da sorte estatisticamente muito irrelevante lá chegarão.

Agarrados à ideia de que se se esforçarem muito, conseguirão ter sucesso, os de baixo já não se vêm como as “criadas” que são dadas às filhas casadoiras. Mas os de cima ficam libertos para se assumirem como os vencedores naturais, mesmo que as condições de partida lhes tenham dado uma vantagem praticamente insuperável.

É neste contexto que a ostentação do luxo passou a ser uma espécie de pornografia social consumida em larga escala. O luxo é um objeto de desejo para quem nunca o terá, uma afirmação grotesca de superioridade para quem o alcança. É exibido sem pudor, precisamente porque se criou a ficção de que é acessível a quem se esforce. É o “mérito” que o torna aceitável.

As vidas medem-se, mais do que nunca, pelo seu peso em ouro. Não acreditam? Há uma matemática simples de fazer. Entre 2013 e 2023, mais de 26 mil pessoas perderam a vida a tentar cruzar o Mediterrâneo. Vinham em botes precários, fugidas da guerra, da fome e da miséria. Prestamos-lhes pouca atenção e, quando o fazemos, é para as temer como invasores. Mas seguimos atentamente e com ansiedade as buscas pelas cinco pessoas que naufragaram no submarino Titan, no ano passado, e cujas fortunas somadas equivaliam a 2,6 mil milhões de dólares (mais do que o PIB de Cabo Verde). E vemos agora com detalhe as vidas dos seis milionários que naufragaram num iate de luxo ao largo da Sicília.

Nuno Diniz tem razão. “Nós não somos iguais”. Só espero que um dia possamos vir a sê-lo. E essa é a diferença que nos separa.

Margarida Davim

domingo, 25 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


A história humana

Há momentos da história mundial que são singelos, mesmo quando a violência grassa, no fortalecimento da identidade do homem no que ele tem de melhor, na força da determinação e do bem-querer, contra tudo e contra todos, no desafio ao incabível e ao autoritário.

Às vezes, o artista supera o teórico. Três filmes simbolizam a força do que há de ser. Em Spartacus, de Kubrick, Kirk Douglas morre na cruz ao olhar para o seu filho, na injúria dos crucificados da Via Ápia pelo ideal da igualdade que tanto havia propagado a Lei Romana. Em Gladiator, de Ridley Scott, com Russell Crowe, o homem morre por seus ideais, ditando à beira da morte a receita para a sequência digna de Roma, o que não decorreu. Em “O resgate do soldado Ryan”, de Spielberg, a tentativa obstinada e bem sucedida do esforço supra humano pelo simbólico, em uma mensagem de bem-querer de muitos para poucos, para as futuras gerações.

Na “A insustentável leveza do ser” de Kundera, o homem se alterna nas dificuldades e esperança do ser.

Os pensadores sociais tinham sonhos para todos nós. Adam Smith achava que a ação individual levaria à prosperidade social, o que não ocorreu. Marx achava que iríamos para o paraíso socialista, o que não ocorreu. O positivismo e funcionalismo francês, com Comte e Durkheim, prescreviam o aprimoramento das sociedades, o que não ocorreu. Onde estamos? Na beira do abismo, com a indeterminação do amanhã.

Este é um choro humanista, no melhor de Proust, Montesquieu, Dostoievski e Tolstoi, para aqueles que mesmo sacrificaram a vida em prol de algo quem sabe por acontecer.

Os incêndios previnem-se, porque está difícil combatê-los

Podemos passar horas e dias a discutir se foi fogo posto ou provocado por causas naturais, se os meios de combate aéreo foram acionados a tempo ou se a estratégia para conter as chamas não foi a mais adequada e até discorrer, longamente, sobre a necessidade de os responsáveis políticos, do País ou da região, se deslocarem ao local do sinistro, como se fossem chefes militares num campo de batalha.

Podemos fazer isso, mas temos de ter a certeza de que nenhum desses pontos de discussão terá consequências em relação aos incêndios florestais se continuarmos a pensar que o foco tem de estar no combate e não na prevenção.

Os incêndios florestais não ocorrem apenas por desleixo ou por falta de meios, como sugerem tantos debates intermináveis. Eles existem porque, em primeiro lugar, são naturais e até necessários para a regeneração das florestas. E ocorrem por influência de fatores climáticos, que determinam as características do combustível a longo prazo, e em consequência das condições meteorológicas, que afetam o comportamento do fogo a curto prazo. Dias de calor extremo, com vento, são mais propícios à deflagração de grandes incêndios, especialmente quando, ao longo dos últimos anos, se foi acumulando combustível nas matas e florestas, e se multiplicaram os meses com tempo quente e seco.


Não é preciso ter dotes de adivinho para perceber que há um cada vez maior risco de incêndio, especialmente nas regiões mais vulneráveis à sua ocorrência. Um estudo científico recente, publicado na Nature Ecology & Evolution, não deixa grande margem para dúvidas numa das suas conclusões: o ano mais quente jamais registado, o de 2023, foi também o mais extremo em termos de incêndios florestais. Tudo em consequência de um clima mais quente e seco, que fez soar os alarmes em várias latitudes: tanto nos países pobres como nos mais ricos e poderosos. Como, por aquilo que se tem observado, este 2024 caminha para ser considerado ainda mais quente do que o ano anterior, ninguém pode admirar-se com a ocorrência de mais e mais incêndios florestais.

Na Madeira, um incêndio como o que atingiu o território nos últimos dias já não pode ser considerado um fenómeno anormal nem sequer absolutamente excecional. Nos últimos 14 anos, segundo os registos mais fiáveis, a ilha foi afetada por, pelo menos, quatro grandes incêndios (nos anos de 2010, 2012, 2016 e agora o de 2024), que deixaram uma área ardida, de floresta e de mato, claramente superior aos dos outros anos “normais” do mesmo período.

Uma publicação oficial do Observatório Clima Madeira, com a chancela da Secretaria Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente, é absolutamente clara e definitiva acerca da ameaça que paira sobre a ilha. Vale a pena reproduzir o primeiro parágrafo do capítulo dedicado às florestas: “O principal risco para a floresta na Região Autónoma da Madeira são os incêndios florestais que, nos últimos anos, têm atingido proporções catastróficas. O histórico recente é tão preocupante que, mesmo num cenário onde a vulnerabilidade futura não aumentasse, a necessidade de adotar medidas para a redução dos incêndios florestais continuaria a ser urgente, já que representam elevados danos.”

O mesmo documento sublinha ainda que o risco de incêndio é potenciado, no caso da Madeira, não só pela persistência de altas temperaturas e de ventos fortes, mas também pelas condições estruturais das áreas florestais, em particular, o declive do terreno.

“Tanto a floresta Laurissilva como a floresta plantada encontram-se em áreas de acentuados declives, o que favorece a propagação do fogo, dificultando o seu combate”, lê-se ainda na mesma publicação.

A experiência recente de incêndios nos EUA, no Canadá e na Austrália, todos países do G20, demonstra que os grandes incêndios são quase impossíveis de ser controlados – mesmo quando se têm dezenas de aviões ao serviço e os bombeiros mais bem treinados. Por isso, é cada vez mais importante apostar na prevenção, na identificação dos sinais de alarme e, em último caso, na eficácia dos serviços de proteção civil para evitar vítimas mortais ou grandes prejuízos materiais. É na ótica da preparação e da prevenção que o debate sobre os incêndios precisa de ser centrado. Até porque, não tenhamos dúvidas, há sempre um dia em que as florestas acabam por arder. Temos é de estar preparados para evitar que o incêndio fique incontrolável.
Rui Tavares Guedes

Não é natural. É método

Ao longo do tempo, sempre tivemos candidatos que procuravam se destacar usando apelidos estranhos, adotando nomes de personagens de história em quadrinhos ou slogans peculiares. Um dos exemplos mais recentes é do deputado federal Tiririca, eleito sucessivamente para três mandatos desde 2010. Na ocasião, criou o bordão "Vote no Tiririca. Pior do que tá não fica", tendo a maior votação do país, com mais de 1,65 milhão de votos.

Também houve as chamadas candidaturas de protesto, como a do rinoceronte Cacareco, que obteve 100 mil votos para a Câmara de Vereadores de São Paulo em 1959, ou a do Macaco Tião, lançado pela turma do Casseta & Planeta como candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro em 1988, alcançando cerca de 400 mil votos. É importante registrar que só foi possível saber o total de votos desses mamíferos porque o eleitor escrevia o nome de seu candidato na cédula de papel.

Em 2008, tivemos uma mudança importante, que foi a utilização eficaz das redes sociais como instrumento de mobilização e adesão que marcou a vitória de Barack Obama. Seu exemplo passou a ser seguido, com maior ou menor competência, em diversos países. Porém, a mudança mais impactante tem seu marco inicial no ano de 2016. Primeiramente, pelos grupos e partidos que defendiam a saída do Reino Unido da União Europeia. E, logo em seguida, na campanha presidencial de Donald Trump.

Nesses dois exemplos, os estrategistas foram os primeiros a perceber que os algoritmos das redes sociais são baseados na cultura do engajamento e não da intermediação — ou seja, valem mais as publicações que têm maior número de curtidas e compartilhamentos. Também souberam combinar diferentes formas de comunicação, explorando as emoções negativas de pessoas e grupos, além de mostrar seu lado festivo e libertário por meio do escárnio.

E, não menos importante, a compreensão de que, a partir da ação em massa nas redes sociais, a política deixa de ser centrípeta para ser centrífuga, substituindo a lógica direita x esquerda pela lógica povo x elites, trabalhando os extremos a partir da revolta e da frustração latentes nas sociedades.

Essa lógica prevaleceu nas disputas eleitorais em diversos países, inclusive no Brasil, mas, nos últimos dois anos, surgiram algumas novidades. Há oito dias, começou a campanha eleitoral em que serão definidos os futuros prefeitos e prefeitas de 5.569 municípios, além de quase 60 mil vereadores.

O presidente eleito em 2018 fez e faz a alegria de seus milhões de seguidores ao adotar o estilo agressivo, popularesco, sem erudição, desprezando as convenções. Porém, após deixar o cargo em 2023, pressionado pela decisão judicial que o tornou inelegível e com a sombra de uma possível prisão, foi obrigado a mitigar esse comportamento.

Só que o gênio saiu da garrafa e aquilo que poderia ser considerado um comportamento naturalmente tosco passou a ser uma estratégia. Pode-se afirmar que a "tosquice" tornou-se um método estudado. No ano passado, Javier Milei foi seu maior representante no nosso continente com sua famosa motosserra.

Agredir adversários, se apresentar como antissistema e não se incomodar em divulgar mentiras é o novo normal para esse perfil de candidaturas. É o caso de um candidato à prefeitura de São Paulo cuja participação nos debates tem sido marcada pelo desrespeito às regras e pela falta de compostura. Tudo absolutamente estudado de modo a fazer as edições nos vídeos que gerem conteúdo para suas redes sociais que obtiveram um nível de engajamento tão gigantesco quanto entusiasmado.

Posto isso, a pergunta que precisa ser feita é: como há tanta gente que defende, segue e admira tal comportamento? É possível enfrentar esse movimento? Bem, nesta terça-feira, tivemos a oportunidade de ver como lideranças relevantes conseguem apontar caminhos. Refiro-me ao casal Obama, que, em seus discursos na convenção nacional do Partido Democrata, conseguiu pontuar as fragilidades de Trump ao mesmo tempo em que resgatou os valores dos chamados pais fundadores, indicando para os militantes como devem se conduzir para conseguir levar Kamala Harris à presidência. A própria Kamala tem seguido uma linha de ironizar o adversário, criando apelidos que têm deixado os trumpistas sem resposta.

Entretanto, estamos longe de superar essa situação. O ressentimento contra a política e os políticos, a concentração de renda e as mudanças tecnológicas que eliminam empregos compõem um caldo de cultura fértil para esse tipo de liderança desagregadora que solapa a democracia. O desafio é enorme e não se pode minimizar o risco.