Executado inteiro o “ajuste” já não nos levaria longe. Consiste, como sempre, em aumentar tarifas e impostos, reduzir a renda privada e cortar investimentos para sustentar os gastos do Estado no novo patamar a que chegaram. É mais um arranjo para evitar que se manifestem inteiras as consequências da nossa incapacidade de repactuar a distribuição de haveres e deveres entre o Brasil que paga os impostos e o que os arrecada para habilitar-nos a passar a disputar vitórias, em vez de seguir postergando derrotas certas, sempre no limiar da sobrevivência.
O próprio “tripé” que rendeu nosso melhor momento em um século era um arranjo precário; uma espécie de “cortisona” tomada em doses diárias para permitir ao paciente conviver em relativo equilíbrio com a doença crônica que não se dispõe a enfrentar, e não uma cura.
Nós nunca revogamos nada do que nos vem comendo pelos pés. O Estado brasileiro só tem porta de entrada. A norma fundadora do sistema que aqui aportou com dom João VI é que cada ungido pelo toque de Midas dos “de dentro” se torne um deles para todo o sempre. É em torno da compra e venda dessa “salvação eterna” ainda em vida que se estrutura o anel de ferro que o sustenta.
Ao fim de 300 anos dessa ordenha, tudo o que o Brasil dos miseráveis não tem é o que obscenamente sobra no Brasil oficial. Os direitos gerais só passarão a caber na conta quando os “direitos especiais” deixarem de pesar nela. O drama brasileiro – as crianças sem futuro, os doentes no chão dos “hospitais”, os 56 mil assassinados por ano, a corrupção epidêmica –, tudo é mera consequência dessa premissa.
Não há brasileiro vivo que não saiba disso, mas até as verdades mais evidentes precisam ser repetidas todos os dias em voz alta para se impor.
Neste momento, a ancestral mentira brasileira estrebucha pela enésima vez no seu próprio paroxismo. A conta é proporcional ao tamanho da trapaça e nunca antes ela foi tão grande na História deste país. O desastre lulopetista, que está apenas começando, é daqueles capazes de levar espécies inteiras à extinção. Vai-se abrir uma dessas raras janelas de oportunidade que só o sofrimento extremo proporcionam, com o potencial de alterar a própria ecologia do sistema.
O século 20, quae sera tamen, está chegando ao fim também no Brasil. Ninguém que o represente representa, já, a plateia que vaga pelas ruas. E, no entanto, ainda é ele e a linguagem dele que dominam reacionariamente o palco.
Não se reconhecem mais esses dois Brasis e é aí que moram a esperança... e o perigo!
A destruição do aparato nacional de educação é a obra mais bem acabada do partido que pavimentou o caminho do primeiro presidente-operário a chegar ao poder nas Américas, apenas para provar mais uma vez que a humanidade é uma só, de cabo a rabo, só que com a força dos seus piores vícios multiplicada pela ausência dos matizes críticos com que a educação formal, bem ou mal, acaba por diluí-los. A “educação” que sobrou não é o antídoto, é o veneno. O que resultou dessa desconstrução é um discurso político reduzido a um maniqueísmo primário, da antessala da conflagração, incessantemente derramado sobre um país sem repertório para definir um projeto nacional.
Sendo característico dos sistemas de servidão que quem provoca as crises não as sofre, os ventos que neste momento arejam o Brasil não sopram em Brasília. Lá, onde a maré é eternamente montante, ninguém nunca é demitido e os salários nunca param de subir, é à conquista do poder como ele sempre foi que tudo se refere. Os contendores posicionam-se exclusivamente uns em relação aos outros. O Brasil real não conta. “Se ele é contra eu sou a favor”, e vice-versa. A “primeira divisão” disputa poder político e dinheiro. A segunda só dinheiro e o poder que com ele se compra. Mas preservar o úbere onde todos mamam é o valor maior que, nas emergências, se alevanta.
O terceiro elemento, intocável no seu pedestal, divide-se entre a minoria heroica que resiste reduzida a um papel de polícia, tolerada pelos demais por falta de remédio melhor, e a linha de frente corporativa pela qual a maioria dos acomodados omissos se deixa docemente constranger cuja função é sangrar repetidamente o Tesouro mediante a articulação do “auxílio” ou do “reajuste retroativo” de cada temporada.
Fecha o quadro o “quarto poder”, que – embora não dispute o mesmo queijo dos demais – vive hipnotizado pela mixórdia que eles protagonizam. Não olha para fora, não apresenta as alternativas do presente, não pesquisa as que redimiram outros povos no passado. Limita-se a reproduzir a cena doméstica segundo a linguagem e a pauta dos outros três – quem “ganhou”?, quem “foi derrotado” no último crime de lesa-pátria? –, o que mantém o limite do possível no imaginário nacional exatamente onde o Brasil oficial quer que ele permaneça.
“O país não avança porque não sabe aonde é necessário chegar. Para sabê-lo com certeza era preciso ir ao fundo das coisas, e ao fundo das coisas só se chega com a crítica” é a citação do mexicano Daniel Cosio Villegas que Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez usam como mote do último capítulo da sua História do Brasil, que um qualificado leitor define como “um extraordinário estudo sobre a resiliência do continuísmo”, a marca renitente da nossa trajetória histórica ao longo da qual “todas as raras oportunidades de rompimento com o passado que aparecem acabam por ser reprimidas”.
A repressão da próxima, cujos protagonistas já se apresentaram com seus “generais” e “exércitos”, passa pela anulação, ainda que “em vida”, dos dois Poderes cuja credibilidade o terceiro vem trabalhando abertamente para corromper.
Falta quem, pelo outro lado, levante uma bandeira digna de ser seguida para limpar o sistema “por dentro”, porque se há uma coisa que o Brasil aprendeu de 1964 a 1985 e nossos vizinhos comprovam todos os dias é que, se vamos mal com eles, pior iremos sem eles.
Fernão Lara Mesquita
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