segunda-feira, 15 de abril de 2019

Cem dias sob o domínio da perversão

Os 100 dias do Governo Bolsonaro fizeram do Brasil o principal laboratório de uma experiência cujas consequências podem ser mais destruidoras do que mesmo os mais críticos previam. Não há precedentes históricos para a operação de poder de Jair Bolsonaro (PSL). Ao inventar a antipresidência, Bolsonaro forjou também um governo que simula a sua própria oposição. Ao fazer a sua própria oposição, neutraliza a oposição de fato. Ao lançar declarações polêmicas para o público, o governo também domina a pauta do debate nacional, bloqueando qualquer possibilidade de debate real. O bolsonarismo ocupa todos os papéis, inclusive o de simular oposição e crítica, destruindo a política e interditando a democracia. Ao ditar o ritmo e o conteúdo dos dias, converteu um país inteiro em refém.

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A violência de agentes das forças de segurança do Estado nos primeiros 100 dias do ano, como a execução de 11 suspeitos em Guararema (SP), pela polícia militar, e os 80 tiros disparados contra o carro de uma família por militares no Rio de Janeiro, pode apontar a ampliação do que já era evidente no Brasil: a licença para matar. Mais frágeis entre os frágeis, os ataques a moradores de rua podem demonstrar uma sociedade adoecida pelo ódio: em apenas três meses e 10 dias, pelo menos oito mendigos foram queimados vivos no Brasil. Bolsonaro não puxou o gatilho nem ateou fogo, mas é legítimo afirmar que um Governo que estimula a guerra entre brasileiros, elogia policiais que matam suspeitos e promove o armamento da população tem responsabilidade sobre a violência.

1) A Perversão

Tanto a oposição quanto a imprensa quanto a sociedade civil organizada e até mesmo grande parte da população estão vivendo no ritmo dos espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias. É por essa razão que me refiro à “perversão” no título deste artigo. Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia.

Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta. Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros, no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez? Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.

Mas essa é apenas parte da operação. Para ela, Bolsonaro teve como mentor seu ídolo Donald Trump. O bolsonarismo, porém, vai muito mais longe. Ele simula também a oposição. Assim, a sociedade compra a falsa premissa de que há uma disputa. A disputa, porém, não é real. Toda a disputa está sendo neutralizada. Quando chamo Bolsonaro de “antipresidente”, não estou fazendo uma graça. Ser antipresidente é conceito.

Quem é o principal opositor da reforma da Previdência do ultraliberal Paulo Guedes, ministro da Economia? Não é o PT ou o PSOL ou a CUT ou associações de aposentados. O principal crítico da reforma do “superministro” é aquele que nomeou o superministro exatamente para fazer a reforma da Previdência. O principal crítico é Bolsonaro, o antipresidente.

Como quando diz que, “no fundo, eu não gostaria de fazer a reforma da Previdência”. Ou quando diz que a proposta de capitalização da Previdência “não é essencial” nesse momento. Ou quando afirmou que poderia diminuir a idade mínima para mulheres se aposentarem. É Bolsonaro o maior boicotador da reforma do seu próprio Governo.

Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não há oposição de fato. Quem ouve falar da oposição? Alguém conhece as ideias da oposição, caso elas existam? Quais são os debates do país que não sejam os colocados pelo próprio Bolsonaro e sua corte em doses diárias calculadas?

É pelo mesmo mecanismo que o bolsonarismo controla as oposições internas do Governo. Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditadura militar. Bolsonaro mandou seu porta-voz, justamente um general, dizer que ele havia ordenado que o golpe de 1964, que completou 55 anos em 31 de março, recebesse as “comemorações devidas” pelas Forças Armadas. Era ordem de Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um general da ativa, o que potencializa a imagem que interessa a Bolsonaro infiltrar na cabeça dos brasileiros.

Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história, apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém, Bolsonaro deu também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é notório e escrevi aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e se esforçando para assumir – a posição de adultos da sala ou controladores do caos criado por Bolsonaro e sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de equilíbrio num Governo de desequilibrados.

Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice general Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O que pode então ser mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da esquerda têm se deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão, lembrar ao país que a ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou civis?

Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenas assassinados, assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para manter os generais no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião pública fingindo que os defendia.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até hoje impediu os agentes do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, vão adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando cusparadas na porta do Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus colegas de farda”.

A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.

A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como balão de ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer. Mais uma vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são fracas. E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário, tremendamente covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a humanidade, nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse o sequestro, a tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.

Outro exemplo é a demissão do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez para colocar em seu lugar outro que pode ser ainda pior. Bolsonaro fritou o ministro que ele mesmo nomeou e o demitiu pelo Twitter. Ao fazê-lo, agiu como se outra pessoa o tivesse nomeado – e não ele mesmo. Chamou-o de “pessoa simpática, amável e competente”, mas sem capacidade de “gestão” e sem “expertise”. Mas quem foi o gestor que nomeou alguém sem capacidade de gestão e expertise para um ministério estratégico para o país? E como classificar um gestor que faz isso? Mais uma vez, Bolsonaro age como se estivesse fora e dentro ao mesmo tempo, fosse governo e opositor do governo simultaneamente.

Mesmo as minorias que promoveram alguns dos melhores exemplos de ativismo dos últimos anos passaram a assistir à disputa do Governo contra o Governo como espectadores passivos. Quem lutou pela ampliação dos instrumentos da democracia parece estar se iludindo que berrar nas redes sociais, também dominadas pelo bolsonarismo, é algum tipo de ação. A participação democrática nunca esteve tão nula.

A estratégia bem sucedida, neste caso, é a falsa disputa da “nova política” contra a “velha política”. O bate-boca entre Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), é só rebaixamento da política, de qualquer política. Se a oposição ao Governo é Maia, parlamentar de um partido fisiológico de direita, qual é a oposição? Bolsonaro e Maia estão no mesmo campo ideológico. Não há nenhuma disputa de fundo estrutural entre os dois, seja sobre a Previdência ou sobre qualquer outro assunto de interesse do país.

O mecanismo se reproduz também na imprensa. Aparentemente, parte da mídia é crítica ao Governo Bolsonaro. E, sob certo aspecto, é comprovadamente crítica. Mas a qual Governo Bolsonaro? Se Bolsonaro é mostrado como o irresponsável que é, o contraponto de responsabilidade, especialmente na economia, seriam outros núcleos de seu próprio Governo, conforme apresentado por parte da imprensa. Quando o insensato Bolsonaro atrapalha Guedes, o projeto neoliberal ganha um verniz de sensatez que jamais teria de outro modo.

Diante do populismo de extrema direita de Bolsonaro e seus companheiros de outros países, o neoliberalismo é apresentado como a melhor saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro e seus semelhantes são os produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo fora dele. Onde então está o contraditório de fato? Qual é o espaço para um outro projeto de Brasil? Cadê as alternativas reais? Quais são as ideias? Onde elas estão sendo discutidas com ressonância, já que sem ressonância não adianta?

A imprensa ao mesmo tempo reflete e alimenta a paralisia da sociedade. Os cem dias mostraram que o Governo Bolsonaro é ainda pior do que o fenômeno Bolsonaro. Bolsonaro não se tornará presidente, “não vestirá a liturgia do cargo”, como esperam alguns. Não porque é incapaz, mas porque não quer. Bolsonaro sabe que só se mantém no poder como antipresidente, como enfatizei em artigo anterior. Bolsonaro só pode manter o poder mantendo a guerra ativa.

Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o presidente pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do país. Mas Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas milícias e age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora, governando com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a única estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.

A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.

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