segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O que não está previsto

Por que a política, como é entendida no Brasil, não passa de um concurso de insensatez, onde quem ganha se destaca pela arrogância e quem perde pelo rancor?

Sou de uma geração de brasileiros que viveram muitas crises importantes no país, não sei se tão ou mais graves do que a que vivemos hoje. No meu tempo de vida, não me lembro de jornal sem referência quase diária a uma “crise” no Brasil.

Numa manhã de 1954, meu pai me anunciou que Getúlio Vargas havia se suicidado, descobri então que a política podia também ser uma experiência trágica. Dez anos depois, veio o golpe militar a que se seguiram, durante duas décadas, cassações, prisões, exílios, torturas, assassinatos. Depois da ditadura, a moratória do Sarney com o dinheiro sem valer nada e os supermercados a aumentar os preços a cada minuto. E o impeachment de Fernando Collor, quando tive que explicar à minha filha mais moça, então com 6 anos de idade, o que eram aqueles caras-pintadas cantando o Hino Nacional pelas ruas.

Depois desses 38 anos de turbulência, durante os quais nos perguntávamos se seria sempre assim, sem paz e sem futuro, vivemos, desde 1992, o que considero a era de ouro de nossa história republicana. Nesse período de Itamar, Fernando Henrique e Lula, consolidamos nossa jovem democracia, vencemos a inflação, estabilizamos a moeda, acabamos com o desemprego, distribuímos renda criando novas e ascendentes classes sociais. Dezoito anos de céu de brigadeiro.

Como essa crise ocorre agora, de algum modo o governo vigente é responsável por ela. Mas também não aproveitamos os bons momentos do passado recente para investirmos em nossa infraestrutura, nas bases de uma economia que não dependesse das commodities que catávamos para vender nas feiras públicas internacionais. Nos sentimos seguros demais com os grãos e as pedras que negociávamos no mundo todo. Quando não precisaram mais de nosso produto, descobrimos que não tínhamos mais do que viver.

Falando de infraestrutura, estou me referindo também à educação, à saúde, à moradia de nossa população, além dos sistemas de energia, água, transporte etc., que fazem, além de sua função específica, a dignidade dos países e de seus povos. De repente, reencontramos as escolas sem teto, as latas d’água na cabeça, gente sem emprego, a volta da inflação, tudo que pensávamos termos deixado para trás.

Em 2010, estando em Paris, eu e Sebastião Salgado demos uma dupla entrevista à televisão francesa, onde éramos tratados como porta-vozes artísticos de uma nova civilização emergente, capaz de ensinar à velha Europa como viver numa sociedade democrática, afluente e justa. Naquela semana, na capa das principais revistas do país, estava a foto de Dilma Rousseff, recentemente eleita presidente desse Eldorado, com fama de grande gestora. Me senti um cidadão importante, leve como um anjo sem culpas, representante do moderno paraíso construído por nós mesmos.


Hoje, o governo afirma que o “petrolão” é um golpe; assim como denuncia a oposição por querer provocar instabilidade político-financeira. Mas se o “petrolão” é uma farsa, se nunca houve propinas, de onde vêm os bilhões de dólares que o Poder Judiciário vem recuperando dos acusados? E quem provoca instabilidade, se é o próprio governo que apresenta um orçamento deficitário, propõe um ajuste fiscal tenebroso para o trabalhador, anuncia o crescimento da inflação e do desemprego, além de outras desgraças?

Do outro lado, a oposição só acena com uma arma para vencer a crise — a do impeachment de quem foi eleito pelo voto popular, há menos de um ano. Por que não propõe que o governo governe e, para isso, não sugere o que julgar conveniente? Por que a política, como é entendida no Brasil, não passa de um concurso de insensatez, onde quem ganha se destaca pela arrogância e quem perde pelo rancor? Impeachment é um recurso constitucional para quando não há outro, e a absoluta maioria da nação o deseja. Pouco importa a cotação da presidente nas pesquisas de opinião, o Datafolha não é o Supremo Tribunal Eleitoral.

Clay Shirky, em seu livro “Here comes everybody”, diz que quando se organiza um grupo ou uma sociedade, a escolha é sempre entre administração e caos. “É muito difícil”, diz, “criar um coletivo não administrado e, ao mesmo tempo, não caótico”. O caos faz parte da natureza, como o acaso ou o que não sabemos, não podemos usá-lo como pretexto de guerra. Para evitá-lo, a administração (a política) é uma intervenção da racionalidade humana.

Isso não significa pregar a unidade, que só serve para manter as oligarquias de sempre no poder. A unidade é um projeto conservador que visa à imobilidade no vazio confortável das ideias. Conversar é indispensável aos homens; mas sem abrir mão do conflito democrático, o único estado político que serve a qualquer sociedade humana, aquele que não pretende eliminar os que não pensam como nós. Pelo contrário, sabe que cada discurso deve conter sempre a possibilidade de o outro ter razão. E diante de dois males, temos sempre que escolher e lutar pelo bem que não está previsto.

Cacá Diegues 

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