terça-feira, 18 de maio de 2021

O marisco sempre se dá mal

“Hoje, 19 de julho de 1936, está declarado estado de guerra em Salamanca e, com a ajuda de Deus, em toda a Espanha.” Essa é a primeira fala do excelente filme “Enquanto a guerra durar”, de Alejandro Amenábar. Assim, em nome de Deus, da pátria e dos bons espanhóis, começou a Guerra Civil Espanhola, deixando mais de um milhão de mortos nos 3 anos que durou.

Quando os militares, o clero e a elite conservadora espanhola se recusaram a aceitar o governo de esquerda eleito pela maioria, amigos, vizinhos e membros da mesma família se dividiram entre dois extremos. Quem discordava da República era fascista, e quem a apoiava era comunista. Discussões se tornam brigas, que logo se transformam em fuzilamentos mútuos nos campos de batalha. A intolerância paralisou a sociedade como uma lanterna faz com um jacaré.

Com apoio do regime fascista italiano e da Alemanha nazista, as Forças Armadas declararam uma cruzada moderna contra as forças liberais e democráticas republicanas. À República se aliaram os anarquistas, comunistas, socialistas e bolcheviques do mundo inteiro, para destruir o movimento que o General Franco chamou de Nacional Catolicismo. A Espanha inteira virou a arena onde os radicais de todo o mundo se encontravam para lutar até o último homem sobrar de pé.

O filme conta essa história por meio de um personagem da época tão interessante quanto controverso: o reitor da Universidade de Salamanca, escritor e pensador basco Miguel de Unamuno. Eu o conhecia como autor do livro “San Manuel Bueno, mártir”, um padre fictício de uma pequena aldeia, sempre pronto para ajudar e consolar sua paróquia. Amado por todos, ao morrer foi canonizado por sua santa bondade. Porém ele escondia de todos uma angústia que o perseguia: não tinha fé, nem acreditava na imortalidade da alma. Queria apenas levar o consolo da religião a seus paroquianos. Tirar a espiritualidade e a ilusão de uma vida eterna seria uma crueldade com o povo simples da sua aldeia.

Uma das frases mais conhecidas de Miguel de Unamuno é sobre uma igreja presa a rituais e dogmas inquestionáveis: “Uma fé que não duvida é uma fé morta”. Duvidar de dogmas e ideologias virou hábito. Ele ajudou a destronar o rei e a fundar a República para se decepcionar, ao perceber que tanto os valores espanhóis quanto a liberdade e a democracia começavam a se diluir num governo com tantas ideologias importadas, tantos “ismos” diferentes lutando entre si. Pelas críticas ao saco de gatos ideológico, foi destituído do cargo de reitor pelo governo republicano. Retornou ao cargo graças à junta militar do governo provisório depois de apoiar a revolta, acreditando na ilusão de uma volta à ordem institucional pelas mãos do Exército.

Ao ver a sede de sangue da extrema direita raivosa clamando por uma guerra santa contra o “câncer da esquerda”, se voltou, talvez tarde demais, contra o fascismo desenfreado. Perdeu amigos e alunos para o regime de terror que caçava “maus espanhóis” para ser fuzilados em valas ao redor de Salamanca.

Como reitor, sentou-se a contragosto à mesa diretora numa cerimônia sobre a celebração da raça espanhola na Universidade de Salamanca. A plateia formada de falangistas gritava “Viva la muerte”, enquanto ouvia deliciada discursos sobre o câncer da esquerda e como “precisava ser extirpado com um frio bisturi, mas com ardor patriótico”.

Decidiu então falar, convencido de que o silêncio seria sinal de conivência: “Hoje vivemos um suicídio coletivo entre partidários do fascismo e comunismo, dois lados da mesma doença mental. Vocês fascistas desejam a morte da vida. Ganharão porque têm a força bruta. Mas vocês não convencerão. Porque, para convencer, é preciso persuadir e, para persuadir, vocês precisam de algo que não têm: razão e direito”. Antes de quase ser linchado, saiu escoltado, para logo ser destituído do cargo de reitor, dessa vez pelo já generalíssimo Franco.

Num país radicalizado, preso num conflito entre extremos, fica difícil achar um caminho pelo meio. Miguel de Unamuno tentou, mas não achou. Morreu só, em prisão domiciliar. Não como um jacaré paralisado pela lanterna da ideologia, mas como um marisco. Aquele que sempre se dá mal na eterna briga entre o mar e o rochedo.
Marcello Serpa

Nenhum comentário:

Postar um comentário