quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O ventre como instrumento de poder

Ao ouvir os planos do Governo federal para realizar uma campanha pela abstinência sexual entre adolescentes, imediatamente me veio à mente as reuniões em que estive presente em Genebra e em que vi o mesmo governo de Damares Alves, Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo defendendo que fossem retirados dos documentos na ONU e OMS qualquer tipo de referência sobre “educação sexual”.

Tampouco aceitaram qualquer menção à saúde e direitos reprodutivos, sempre sob o argumento de que tais termos poderiam abrir caminho para a promoção do aborto.

Se à primeira vista essa situação pode parecer contraditória, na agenda ultraconservadora-religiosa não há nada de paradoxal entre as duas ações. No fundo, elas se completam num sentido mais amplo: o esforço pelo controle sobre o corpo da mulheres.

Sugere-se o que fazer com o corpo, enquanto recusa-se a aceitar a educação sexual como um direito básico. Retira-se o direito de saber para garantir autonomia sobre seu corpo e, ao mesmo tempo, uma campanha é promovida para dizer quando a mulher deve manter relações sexuais.


A abstinência pode eventualmente fazer parte de um programa de saúde e planejamento. De fato, a Sociedade para a Saúde e Medicina do Adolescente, nos EUA, admite que adiar o início de relações sexuais pode ter um impacto “saudável”. Mas jamais como uma solução recheada de carga moral ou religiosa. E muito menos sendo o carro-chefe da estratégia em que, ao mesmo tempo, a educação sexual é combatida em fóruns internacionais.

Neste caso, a abstinência se transforma num instrumento de poder. E não em uma opção de saúde pública. A escolha da idade não é do Estado, nem da família ou dos parceiros. Mas da mulher.

Pelo mundo, diferentes governos ultra-conservadores vêm promovendo políticas “pró-família”. Mas, em cada uma delas, a única que parece ser ignorada é a posição da mulher. Seu corpo, na maioria das vezes, se transforma em um meio para atingir outros objetivos políticos.

Na Hungria de Viktor Orban, por exemplo, o Governo passou a dar incentivos para garantir o nascimento de mais crianças húngaras. O país de fato vive uma redução de sua população. Mas, para evitar ter de aceitar imigrantes, Budapeste optou por pagar famílias para manter a “coesão nacional” e, de quebra, a cor da pele e a cruz.

Enquanto famílias são conduzidas a ter mais de três filhos, Budapeste insiste em atacar a lei de aborto que existe e ergue muros contra a “invasão” de imigrantes.

O ventre da mulher, neste caso, faz parte de uma estratégia nacional, supremacista e profundamente xenófoba.

Os húngaros não são os primeiros a adotar tal postura. Nos EUA, a tradicional ideia de nação ―branca e cristã― andou de mãos dadas com movimentos Pró-Vida. Sociólogos apontaram como, ao longo dos anos, a ansiedade da população branca americana cresceu, enquanto sua participação na demografia do país passou de 90% em 1950 para 60% no início deste século.

Com mais de 60% dos abortos sendo realizados por mulheres brancas, uma das teses é de que, com novas leis para impedi-las de interromper uma gravidez, se impediria que a população negra ou mestiça superasse a parcela branca dos EUA.

Na Polônia, em 2016, o Governo de extrema-direita propôs endurecer ainda mais as leis anti-aborto. Pelo projeto, mulheres poderiam ser presas se buscassem serviços para realizar um aborto. A proposta não vingou, diante dos protestos. Mas, nos bastidores, não são poucos os grupos que avaliam que a medida poderia voltar a ser apresentada, com uma nova roupagem. Também preocupa a ofensiva do Governo sobre os Judiciário.

No caso do Brasil, a recusa em aceitar a educação sexual em textos oficiais da ONU aproximou o Brasil da Arábia Saudita, um país “exemplar” no controle sobre o corpo da mulher. Riad, rapidamente, saiu a aplaudir o novo posicionamento do Governo de Bolsonaro.

Longe de dar uma solução para uma legítima e profunda crise de saúde pública, Brasil e outros governos optam por ignorar o que os dados científicos mostram. Em levantamentos realizados por alguns dos principais institutos de pesquisa, poucas são as evidências que mostram que a criminalização da autonomia do corpo da mulher tenha gerado resultados positivos.

De acordo com uma pesquisa publicado na revista The Lancet, 25 milhões de abortos inseguros foram realizados no mundo entre 2010 e 2014, a cada ano. Além desses, 7 milhões de mulheres foram hospitalizadas por conta de abortos ilegais. De acordo com a Anistia Internacional, 215 milhões de mulheres no mundo não tem acesso à métodos contraceptivos, ainda que não queiram ter filhos. Segundo dados da ONU, 22.000 mulheres morrem a cada ano como consequência de abortos inseguros.

Pelo mundo, ainda são dezenas as leis que mantêm um padrão inaceitável de controle do Estado ou dos homens sobre o corpo da mulher. Em alguns casos, quem comete o estupro pode evitar ser preso se casar com a vítima. Em outros lugares, clínicas apenas podem dar métodos contraceptivos a uma mulher se ela chegar acompanhada de seu marido.

Na Irlanda, o aborto é ilegal. Mas, entre 1980 e 2012, em média doze mulheres viajaram ao Reino Unido para interromper uma gravidez. E isso a cada dia.

Fora de seu útero, as barreiras não deixam de ser profundas. Em mais de 30 países, mulheres continuam precisando de autorização de seus maridos para ter um passaporte, enquanto na Nigéria o código penal mantém referências sobre “caráter imoral” de uma mulher. No ritmo que vamos, a igualdade entre homens e mulheres no mercado laboral será obtido em mais de cem anos.

Portanto, se o Governo brasileiro quer falar em abstinência, terá de falar primeiro em autonomia da mulher, educação sexual, direitos e saúde reprodutiva. E, enfim, não estaremos tratando do dilema do poder da mulher sobre seu marido ou sobre os objetivos do Estado. Mas estaremos promovendo uma política pública para que mulheres, parafraseando Mary Shelley, tenham o poder sobre elas mesmas.

E isso, provavelmente, seria a maior revolução na história da humanidade.
Jamil Chade

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