quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A arte de furtar

Nesses tempos honestos, cai-me às mãos o livro “Arte de Furtar”, sátira falsamente atribuída ao zeloso da pátria Padre Antônio Vieira, orador correto e grave dos Sermões, nada afeito ao estilo imprudente e desmedido do “espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas da Gazua Geral dos Reinos de Portugal”. A obra foi oferecida a El-Rei Nosso Senhor D. João IV”, no ano de 1652, provavelmente por Tomé Pinheiro da Veiga.

“Arte de Furtar” (Ed. Livraria Garnier, acompanhada de estudo crítico e breves anotações por João Ribeiro) tem hoje pouco a ensinar aos que sabem tanto.

O primeiro capítulo já eleva a arte do furto à categoria de ciência: em “Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira”, cita um grande mestre da profissão, “com arte y com engaño, vivo la mitad del año: y com engaño y arte, vivo la outra parte”, para defender a ladroagem como ciência verdadeira, ainda que não tenha “escola pública, nem doutores graduados”.

O capítulo seguinte avança ainda mais. Em “Como a arte de furtar é muito nobre”, explica: seu objeto é tudo o que tem nome de precioso, as suas regras e preceitos são sutilíssimos e infalíveis e os sujeitos e mestres que a professam são os que se prezam de mais nobres.

O capítulo IV adverte “Como os maiores ladrões são os que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões”: “os que têm por ofício livrar-nos dos ladrões vêm a ser os maiores ladrões”.
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O capítulo V cuida “Dos que são ladrões, sem deixarem que outros o sejam” para avisar que “é lanço muito contrário ao natural dos ladrões, que gostam de andarem em quadrilhas, e terem companheiros, e serem muitos, para se ajudarem uns aos outros; mas isto é em ladrões mecânicos, e vilões de trato baixo: há ladrões fidalgos tão graves, que se querem sós e que ninguém mais sustente o banco”.

O capítulo VI previne “Como não escapa de ladrão, quem se paga por sua mão”, um aviso aos da Papuda, Curitiba e Bangu de “que tanta pena merece o consentidor como o ladrão”.

O Capítulo VII ensina “Como tomando pouco, se rouba mais do que tomando muito”, certamente porque de grão em grão a galinha enche o papo sem cantar de galo.

O capítulo VIII homenageia os sujeitos altos que vendem votos nas câmaras e nos senados, relatando “Como se furta às partes, fazendo-lhes mercês e vendendo-lhes misericórdias”.

O capítulo IX é dedicado aos administradores que metem no bolso a maior parte das verbas. Em “Como se furta a título de benefício” o autor define que “a opulência (nome que se dava à ostentação) é a esponja que se ceva na substância da pobreza, e é hidropisia que nada à farta: e daí vem arrebentarem uns de gordos com a abundância e entisicarem outros de magros com a esterilidade”.

E já naqueles tempos cabralinos relata: “soube um governador destes que certo negociante tinha um trancelim de diamantes, que se avaliava em cinco mil cruzados: cresceu-lhe a água na boca”.

Os outros títulos falam por si: “Dos ladrões que, furtando muito, nada ficam a dever”, “Dos que furtam muito acrescentando a quem roubam mais que lhes furtam” ou “Dos que furtam com unhas reais”, “Dos que furtam com unhas invisíveis”, “Dos que furtam com a mão do gato”, “Dos que furtam com mãos e unhas postiças, de mais, e acrescentadas”, “Dos que furtam com unhas confidentes”, “Dos que furtam com unhas confiadas” ou “Dos que furtam com unhas ridículas” como os que correm pelas ruas escuras.

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