domingo, 6 de abril de 2025

Trump estabelece nova forma de governo: a extorsocracia

O segundo governo de Donald Trump trata de forma peculiar atores políticos e sociais, como governos locais, universidades e escritórios de advocacia: submete-os à extorsão sistemática.

Se não se curvarem a seus caprichos e diretrizes, pune-os severamente, abusando dos poderes presidenciais, algo certamente inconstitucional. Porém, a estratégia de não ceder à extorsão, enfrentando o presidente nas cortes, é demasiado custosa. Leva muito tempo, com prejuízos imediatos irrecuperáveis e ameaças à própria sobrevivência.


Veja-se o caso da cidade de Washington, capital do país. Trump a achacou, ameaçando-a com grandes cortes de recursos caso a prefeita Muriel Bowser não removesse a inscrição "Black Lives Matter" do pavimento de uma praça. Segundo o republicano, a expressão seria "símbolo de ódio". Diante do risco de penúria, a prefeita —negra e democrata— curvou-se ao capricho presidencial. Justificou sua sujeição assim: "Agora nosso foco é garantir que nossos moradores e nossa economia sobrevivam".

A situação é mesmo crítica, pois as finanças de Washington são ameaçadas também pelo risco de 40 mil residentes perderem o emprego devido a cortes de pessoal promovidos pelo governo federal. Isso se confirmando, menos gente poderá pagar impostos e consumir na capital do país, minando a arrecadação local.

Outra frente de ataque são as grandes universidades americanas, que correm três riscos significativos quanto a seu financiamento. Um, o aumento de 1,4% para 21% na taxação sobre ganhos advindos de seus fundos. Outro, a limitação do montante desses fundos: de US$ 500 mil por estudante para apenas US$ 200 mil, definhando a base do autofinanciamento. Por fim, o puro e simples corte de verbas federais necessárias para diversas atividades acadêmicas, em particular a pesquisa científica.

Tais iniciativas visam esmagar princípios e práticas progressistas vigentes nas universidades. Tom Cotton, senador republicano do Arkansas, afirmou no X: "Nossas universidades de elite precisam saber o custo de promover agendas antiamericanas e pró-terroristas". Chama atenção o termo "antiamericanas": evoca o Comitê de Ações Antiamericanas da Câmara e sua perseguição a supostos comunistas nos anos 1950, associadamente a Joseph McCarthy no Senado. Ou seja, o macarthismo ressurge em nova roupagem e com escopo ampliado.

O estrangulamento financeiro das universidades visa submetê-las à agenda reacionária do trumpismo. No caso de Columbia, a sujeição chega ao ponto de a universidade permitir ao governo nomear o chefe do departamento de estudos do Oriente Médio, escrutinando o currículo e seus professores, avaliando se os deve manter ou demitir.

Um terceiro alvo do presidente dos EUA são escritórios de advocacia que recentemente o enfrentaram na Justiça. Dois deles, Perkins Coie e Paul Weiss, foram nominalmente citados em ordens executivas (tipo de decreto presidencial com força de lei) especificamente editadas para inviabilizar seu trabalho junto a órgãos governamentais. Em decorrência de tais atos normativos, os dois escritórios sofreram uma sangria de clientes, que não teriam como ser representados. O Paul Weiss rapidamente negociou com o presidente, sujeitando-se a seus termos e lhe oferecendo serviços "pro bono" (sic) no valor de US$ 40 milhões.

A terrível novidade é que a extorsão não é mero instrumento para a obtenção ilícita de ganhos pontuais, como propinas. Trata-se de exercício imediato do poder para a sujeição política dos demais atores. Ou seja, torna-se a própria forma de governo —uma "extorsocracia", ou "ekviasmocracia", considerando o termo grego para extorsão, "ekviasmos".

Donald Trump requinta e acrescenta nova dimensão aos processos de erosão democrática promovidos por governantes populistas. Valendo-se da capacidade coercitiva do Estado e de seu poderio financeiro, achaca governos subnacionais, entes da sociedade civil e empresas, minando sua autonomia. Desse modo, pouco a pouco, instaura um governo autoritário na mais antiga democracia do mundo.

A guerra comercial de Trump contra a realidade

O Dia da Libertação é um nome oportuno para a política do presidente Donald Trump de impor novas tarifas massivas sobre produtos de todo o mundo. Ele considera os EUA uma colônia vitimizada, explorada por outros países que lhes roubaram empregos, indústrias e dinheiro. “Nosso país e seus contribuintes foram enganados por mais de 50 anos”, disse ele ao anunciar seus planos, na quarta-feira.

Seus asseclas, como o vice-presidente J.D. Vance e o secretário de Comércio Howard Lutnick, repetem essa percepção como papagaios, definindo a imagem de um país destituído, com fábricas esvaziadas, trabalhadores desempregados e salários estagnados.

A realidade é o oposto. E somente porque é o oposto – em outras palavras, por causa do poder econômico inigualável dos EUA – Trump é capaz de tentar sua política tarifária. O peso econômico dos EUA lhe permite tentar forçar o restante do mundo a se curvar à sua vontade. Mas Trump está usando o poder americano de uma forma tão arbitrária, destrutiva e burra que isso quase certamente resultará em um desfecho “perde-perde” para todos.


A verdadeira história econômica das últimas três décadas é que os EUA estiveram à frente de todos os seus principais concorrentes. Em 2008, a economia americana era quase do mesmo tamanho que a economia da zona do euro, agora é quase o dobro.

Em 1990, a média salarial dos EUA era cerca de 20% maior do que a média geral no mundo industrializado avançado; agora é cerca de 40% maior. Em 1995, um japonês era 50% mais rico do que um americano em termos de PIB per capita, hoje um americano é cerca de 150% mais rico do que um japonês.

Na realidade, o Estado americano mais pobre, o Mississippi, tem um PIB per capita maior que o do Reino Unido, da França ou do Japão.

E ainda assim Trump está convencido de que, ao longo de todas essas décadas, os EUA estiveram em um declínio acentuado. Sua visão de mundo parece ter sido definida na década de 60, quando, em sua memória, os EUA eram uma grande potência industrial (outra parte dessa antiga visão de mundo é estimar exageradamente a capacidade de Moscou, que em sua mente, ao que parece, continua sendo um ator econômico imponente no cenário mundial, com o qual ele poderia fazer muitos negócios importantes. A Rússia, bizarramente, foi excluída das novas tarifas).

A realidade de os EUA serem a nação dominante nas esferas de crescimento mais rápido e mais críticas da economia global atualmente – tecnologia e serviços – parece não significar nada para ele.

Suas tarifas foram calculadas usando um método mais próximo ao vodu que à economia. Entre os muitos erros, elas se baseiam apenas nos déficits comerciais em mercadorias dos EUA em relação aos outros países. De alguma maneira, não importa que os EUA gerem superávits enormes em serviços – exportando softwares, serviços de software, filmes, músicas e serviços jurídicos e financeiros para o mundo. Mais de 75% da economia dos EUA é aparentemente uma penugem impalpável; o aço é o verdadeiro negócio.

Mas embora sejam a potência dominante no mundo, os EUA não são tão fortes a ponto de poderem agir de forma tão irracional. A economia mundial cresceu em tamanha magnitude e escala que encontrará maneiras de contornar o protecionismo americano, que agora figura entre os mais notórios do mundo.

Ao contrário das teimosas convicções de Trump, os EUA já eram realmente um tanto quanto protecionistas, com barreiras comerciais tarifárias e não tarifárias maiores do que em outros 68 países. Com essas novas tarifas, o protecionismo americano foi às alturas, com taxas mais altas que as da Lei Tarifária de 1930, que exacerbaram a Grande Depressão. No curto prazo, todos sofrerão. No médio e longo, porém, os países começarão a evitar negócios com os EUA.

Esse movimento já começou. Desde que Trump assumiu o cargo em 2017, os EUA abandonaram praticamente todos os esforços para expandir o comércio, mas outros países assumiram a responsabilidade. A União Europeia assinou oito acordos comerciais novos; a China, nove. Conforme observou o presidente da Rockefeller International, Ruchir Sharma: “Dos 10 corredores comerciais de crescimento mais rápido, cinco têm terminal na China; apenas dois têm terminal nos EUA”. Países precisam de crescimento, e isso significa comércio.

A China será claramente a grande vencedora nessa nova economia mundial porque se posicionará como o novo centro de comércio. Adicionando a isso a hostilidade de Trump em relação aos aliados mais próximos dos EUA, os americanos provavelmente verão a Europa, o Canadá e até mesmo alguns dos aliados na Ásia buscarem maneiras de trabalhar com a China.

A visão de mundo nostálgica de Trump remonta a uma época ainda mais distante do que a década de 60. O presidente evoca com carinho o fim do século 19, quando, conforme ele descreveu esta semana, os EUA tinham apenas tarifas e nenhum imposto de renda e eram mais fortes economicamente do que jamais haviam sido em comparação ao restante do mundo. Essa história é absurda. Em 1900, os EUA eram responsáveis por cerca de 16% da economia global segundo uma métrica. Agora, sua participação equivale a 26%. Os padrões de vida e de saúde dos americanos são muito mais elevados hoje.

Mas ao agir segundo sua fantasia nostálgica, Trump pode muito bem acabar arrastando os EUA de volta ao que o país era naquela época: uma nação mais pobre, dominada por oligarcas e corrupção e contente com sua arrogância em seu próprio quintal e em intimidar seus vizinhos, mas secundário em relação às grandes correntes globais da economia e da política.

Espaço vital

A minha geração entendia que a época de um governante invadir outro país já tinha passado. Hitler justificava a necessidade de expandir a área do território alemão como “espaço vital”. Este argumento permitiu que ele anexasse a Áustria, parte da Tchecoslováquia e depois invadisse a Polônia e a União Soviética. Mas o que Putin faz hoje é algo semelhante: ele precisa anexar a Ucrânia, que segundo a versão oficial russa sequer existe, para criar um cordão sanitário ao redor de seu território. Ele pretende recriar o território da extinta União Soviética.

Trump quer anexar a Groelândia, o Canadá e o Canal do Panamá com o mesmo argumento. É necessário ampliar o espaço vital dos Estados Unidos para garantir a paz entre os países. Ou seja, de repente, o mundo regrediu décadas e voltou a frequentar os anos trinta do século passado quando as potências da época entraram em guerra. A guerra da Ucrânia lembra o conflito na Espanha, em 1936, quando comunistas e fascistas experimentaram suas armas em confronto direto. Foi a preliminar do que viria a seguir. Mas hoje a guerra é mais devastadora. A bomba atômica tem o poder de exterminar a vida no planeta Terra. Todos perdem. Então, mesmo com os mais tresloucados ditadores tendem a ter cautela, porque em caso de guerra ele vai perder. E provavelmente morrer.


A eterna questão que opõe palestinos a judeus há muito tempo deixou de ser religiosa. O estado de Israel tem expandido suas fronteiras ao longo dos últimos anos. Ao mesmo tempo em que restringe o espaço de seus vizinhos constrangidos a viver numa área cercada por arame farpado, controlada por soldados e armas de guerra. Em nenhuma destas questões existe a perspectiva de paz duradoura. O forte quer se impor pelas armas. Grandes Impérios, a começar pelo Romano, cresceram, se desenvolveram e terminaram. A vida é finita em todas suas dimensões. A dos países também.

No forte discurso de Trump, no dia da libertação dos Estados Unidos, 2 de abril, ele insistiu que o país perdeu milhares de indústrias, milhões de empregos e bilhões de dólares por auxiliar países em todo o mundo. Ato contínuo decretou taxação recíproca em todos os países que fazem comércio com o maior mercado do mundo. O Brasil ganhou uma taxa de 10%. Os chineses vão pagar 34% para exportar para os Estados Unidos. Cada país tem uma taxa específica. O objetivo é que a grande indústria passe a produzir dentro dos Estados Unidos, e ofereça, novamente, milhares de empregos, roubados na expressão dele, pelos países chamados amigos. É a nova face da guerra moderna. Tarifas.

O grande pretende esmagar o pequeno e não se conforma com a marcha do tempo. O que os especialistas anunciavam com alguma cautela está diante de todos: o colosso norte-americano balançou, acusou o golpe das empresas e empregos que abandonaram a meca do capitalismo para se aninhar em outras e melhores circunstâncias. É difícil para o empresário retornar ao mercado norte-americano onde a mão de obra é muito mais cara, os insumos não são baratos e agora há a imprevisibilidade do governante. É uma jogada arriscadíssima, que vai provocar elevação de preços internos e desorganização das cadeias de produção. O solavanco vai demorar e custar caro.

É o confronto moderno, limpo, sem sangue, mas capaz de produzir vítimas em vários cantos do mundo. Os norte-americanos, na palavra de seu presidente, perderam a vanguarda em diversos setores da indústria, como a produção de navios ou de produtos de grande tecnologia utilizados na indústria de informática. Muitas atividades se transferiram para China, Taiwan, Vietnã e outros países que constituíram o alvo prioritário do golpe de Trump. É um ataque feroz à industrialização dos países do antigo terceiro mundo e também dos antes chamados tigres asiáticos.

A questão econômica é óbvia. Haverá consequências na medida em que os afetados deverão retaliar. É razoável prever uma inflação global de bom tamanho. O que ainda não se pode prever, nem medir, são as consequências políticas, porque a tendência é que os nacionalismos passem a ser valorizados e estimulados. Os países vão se fechar para se defender do ataque norte-americano. O ouro já se valorizou muito e deve se valorizar ainda mais. A moeda digital, ao contrário, caiu. Acabou a era de prosperidade do mundo ocidental. Os Estados Unidos querem retomar seu protagonismo, decidiram se fechar para demonstrar sua capacidade de influir nos destinos da humanidade. Para chegar a este resultado, além das sobretaxas, eles precisam dominar o Canadá, o Panamá e a Groelândia. É, de novo, a busca do espaço vital, cujas consequências todos conhecemos.

Uma economia para o Antropoceno

José Eli da Veiga é um economista que gosta e entende de ciências — as de verdade (desculpem-me não resisti à provocação). É também um dos sujeitos mais eruditos que conheço. Quando Zé Eli se dispõe a escrever sobre um assunto, já leu quase tudo de relevante que foi publicado sobre a matéria. E ele é metódico ao explicitar suas fontes.

Daí que seus livros são sempre um ótimo mapa do caminho para quem quer assenhorar-se de um tema. Quem quiser se aprofundar pode ir às obras citadas; quem não quiser pode fiar-se em seu resumo do panorama das discussões. "O Antropoceno e o Pensamento Econômico", terceiro livro de sua trilogia sobre o impacto da humanidade na biosfera, não foge a esse padrão.


Para Zé Eli, a maioria dos manuais de economia tem um problema, que é o de ser excessivamente mecanicista e ignorar a física mais moderna, mais especificamente a termodinâmica e a entropia.

A forma extrativista de que nos valemos para produzir coisas inevitavelmente degrada o sistema. Podemos e devemos tentar minimizar nossas "pegadas", a de carbono, a da depleção dos recursos naturais e a do aumento de poluições diversas, mas não há mágica que permita fugir às leis da termodinâmica.

Se formos reescrever os livros-texto levando isso em conta e em consonância com a obrigação moral de legar um mundo habitável para as próximas gerações, então precisamos abandonar a ideia de que o crescimento econômico é a resposta infalível para todos os nossos problemas sociais.

Fatores ambientais precisam entrar nas equações ensinadas nos cursos de economia. É preciso desacoplar o bem-estar humano de um contínuo aumento da produção e do consumo.

Zé Eli reserva várias páginas para mostrar como esse desacoplamento pode ser feito. Não cai nem no pessimismo extremo dos que afirmam que o decrescimento já é inevitável, nem no otimismo panglossiano dos que dizem que o desenvolvimento tecnológico nos presenteará com uma saída indolor.


Basicamente, a responsabilidade é nossa —e estamos falhando.

Quando um elefante cai

Na minha última coluna chamei a atenção para a extraordinária ironia histórica que estamos testemunhando — a possibilidade de os Estados Unidos deixarem de ser um país de imigrantes, para se transformarem num país de emigrantes.

A partir do Salão Oval, na Casa Branca, Donald Trump vem arquitetando um gigantesco desastre político, social, diplomático e econômico, que ameaça a democracia, despreza a Justiça, hostiliza os imigrantes, e aterroriza os mercados. Como resultado, cresce o número de cidadãos pensando em emigrar.

A ciência tem sido das áreas mais atingidas pela criativa insensatez do novo governo de extrema direita. A acreditar num inquérito divulgado pela revista científica Nature, três em cada quatro cientistas americanos, ou estrangeiros radicados no país, ponderam abandoná-lo nos próximos meses.

Durante longas décadas os EUA se beneficiaram da instabilidade prevalecente noutros territórios para recrutarem cientistas, e assim desenvolverem os seus centros de pesquisa e de saber. Chegou a hora da vingança.

Instituições científicas europeias, mas também chinesas e indianas, estão articulando estratégias para atrair os cérebros descontentes. Nas revistas científicas prosperam os anúncios de emprego, provenientes de universidades europeias, e que prometem aos investigadores liberdade acadêmica e um ambiente de trabalho no qual eles não terão de se preocupar com censura e interferência política.

Operando no interior do extravagante caos deflagrado por Trump, e esforçando-se por lhe dar alguma coerência ideológica, estão movimentos ligados ao fundamentalismo cristão e ao supremacismo branco. Para esses movimentos, a academia é o inimigo. A ciência é o inimigo.

A ciência, já se sabe, prefere a democracia. Precisa de liberdade. Ainda assim, consegue prosperar em ambientes totalitários, desde que estes respeitem a racionalidade científica — a lógica cartesiana. É o caso da China, país que, embora sujeito a um sistema de partido único, de inspiração marxista, se vem afirmando como a grande potência tecnológica do nosso tempo. Já em teocracias violentas, como a que temos hoje no Irã ou no Afeganistão, e, pelo andar da carruagem, teremos em breve nos EUA, é muito difícil alcançar avanços científicos relevantes.

A ofensiva do governo Trump contra as instituições de pesquisa, universidades, museus, e outros centros de produção de conhecimento, é uma tragédia para os americanos, que serão rapidamente ultrapassados na corrida tecnológica — inteligência artificial, engenharia genética, energias limpas ou computação quântica.

Estamos assistindo ao vivo ao colapso americano. Espero que o espetáculo sirva como alerta global para os perigos da direita selvagem, que pretende substituir o pensamento científico pelo religioso; a diplomacia pelo bullying; o livre comércio pela agressão predatória.

Quando um elefante cai levanta muita poeira. Depois a poeira assenta e a vida continua.
José Eduardo Agualusa

Estás a ouvir, Canadá?

Tem piada como Trump ameaça castigar o Canadá e a União Europeia se estes se entenderem para enfrentar os EUA.

Olhem que boa ideia! Proponho já que alguns dos países ameaçados pelas tarifas de Trump assinem um acordo comercial de curto prazo, só até Trump acabar o mandato.

Já falta pouco para 2028. Porque não aproveitar para fazer uma enorme área de livre comércio em que todos possamos vender e comprar as mercadorias que produzimos, sem tarifas de qualquer espécie?



A febre tarifeira de Trump deixou de fora o Canadá, para ver se desnorteava os canadianos. Mas os canadianos são difíceis de desnortear – sobretudo quando um americano lhes diz que não podem fazer acordos com os europeus.

Para já, os canadianos são mais europeus do que alguns europeus. São bastante ingleses e bastante franceses. São muito bem-educados, pacíficos, valentes, honestos e pouco dados a bazófias e aldrabices. Enfim, não poderiam ser mais diferentes de Trump.

Incluamos também neste acordo de free trade e free love países que também sabem falar inglês, para que Trump possa perceber o que dizem. Como o Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia.

O que é que os EUA têm para nos vender? Comida de carregar pela boca, má amêndoa, mau whisky, maus refrigerantes e automóveis feitos por facínoras. Façamos um breve detox de três anos, nem que seja para estimular as saudades até ao dia de 2028 em que Trump se for embora.

Não é essa a resposta mais eficaz a qualquer bully – isolá-lo?

Nem se tenha medo de prejudicar os nossos amigos americanos. Metade deles não pode com ele. Até agradecem, porque, mal ele se vá embora, poderemos reatar e reforçar as nossas relações comerciais com os EUA. Assim, os consumidores americanos notarão a diferença: muitos mais produtos europeus, e muito mais baratos.

Temos de agradecer a Trump a ideia. Se ele tem medo de que “o Canadá e a União Europeia se juntem para prejudicar os EUA”, é porque é isso que nos beneficiará. Juntemo-nos, pois.

sábado, 5 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


Onde foi que erramos?

Diversos países têm um livro de referência ao qual os cidadãos, de tempos em tempos, recorrem para retemperar seu entendimento da sociedade em que vivem.

O exemplo hors-concours é, com certeza, a França, que compartilha com os Estados Unidos a obra-prima de Alexis de Tocqueville A Democracia na América (1835). O Brasil é um caso especial. Para identificar o “nosso” livro, devemos, primeiro, descartar a geração dos críticos da Constituição Republicana de 1891, quase todos medíocres e propensos a ouvir o canto de sereia de Mussolini. Depois da Segunda Guerra, sim, passamos a contar com autores do quilate de Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e José Murilo de Carvalho. Mas, sem demérito para nenhum desses, penso que o status de “clássico” cabe ainda a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1936 e diversas vezes reeditado.


Minha avaliação não se deve apenas à beleza da escrita e à vastidão do conhecimento histórico de Sérgio Buarque. Deve-se, a meu juízo, à atualidade da questão que ele suscitou. Não nos esqueçamos de que a obra a que me refiro data de meados dos anos 1930, época em que a maioria de nossa população vivia no interior e em pequenas comunidades e era quase toda analfabeta. Mesmo assim, o que Sérgio se indagou foi: por que o Brasil parecia incapaz de construir um verdadeiro Estado? Sim, caro leitor, eu escrevi “parecia”, mas talvez o verbo me esteja traindo, pois não descabe indagar se, finalmente, temos um verdadeiro Estado. Quem aterrissa em Brasília por certo avista, lá embaixo, o Palácio do Planalto, as conchas invertidas do Congresso e todos os demais edifícios que sugerem a pujante presença de um Estado. O saudoso mestre Hélio Jaguaribe costumava dizer que o Estado brasileiro era o mais moderno do Terceiro Mundo. Mas, nesses quase 90 anos, algo parece não ter se encaixado. Pior: a estagnação da economia é um claro reflexo da debilidade do Estado.

Raízes do Brasil parte de um valioso acerto. Ou pelo menos de um aparente acerto, ao descartar a monocultura, a escravidão, o patriarcalismo – ou seja, toda a cantilena da colonização ibérica. Mas logo reafirma que o principal impedimento à emergência do Estado são os grupos primários – leia-se, a família extensa, avessa a qualquer impessoalidade. Aqui, sem dúvida, começamos a pisar em terra escorregadia. “A solidariedade entre (grupos primários) – o autor prossegue – existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesses – no recinto doméstico ou entre amigos” (Holanda, página 10). Essa premissa leva-o a tipificar a contraposição entre laços sentimentais e Estado remontando à tragédia Antígona, de Sófocles, escrita há mais de 2.400 anos. A razão dessa escolha é indicada nesta bela passagem: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e ainda menos uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. É só pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade”. O problema é que Sérgio Buarque, embora invoque o antagonismo entre a heroína Antígona e Creonte, o rei de Tebas, para frisar o caráter universal da incompatibilidade entre os dois referidos, baseia praticamente toda a sua exemplificação histórica e cultural na história ibérica.

Descontem-se pequenos equívocos de leitura, como o que ocorre na página 101, em que Sérgio se refere a Antígona como irmã do rei Creonte. Na peça de Sófocles, ela não é irmã, mas futura nora, por ser noiva de Héron, filho de Creonte. Mais importante é o fato de Sérgio incorrer num equívoco que atribui a Max Weber, qual seja, o de dar um peso excessivo à esfera dos valores, em detrimento de fatores mais objetivos. Referindose à ideia de um Estado em sua plena configuração impessoal – já “depurado” de todo vínculo primário, Sérgio afirma: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina” (Holanda, página 138).

Ora, dessa formulação deveria decorrer que o Estado em sua plena configuração requer uma superestrutura normativa capaz de limitar quaisquer excessos que ocorressem entre os cidadãos, tal função não poderia ficar na dependência de uma ordem normativa apenas valorativa, e sim a uma ordem jurídica respaldada na força.

Saltemos para 2025. Hoje, uma enorme parcela da população vive em grandes metrópoles, não em comunidades rurais. A força de sentimentos de discórdia ou de concórdia como balizadores do comportamento social declinam de forma acelerada. A criminalidade não só aumenta, como se torna a cada dia mais bestial. E mesmo em Brasília, onde o esqueleto de um Estado é perceptível, o que mais vemos são interesses (não sentimentos) antiestatais.

Assim falou Zaratustra

“Para os puros tudo é puro”: 
– Assim fala o povo. 
– Mas eu vos digo: para os porcos tudo é porco!

Por isso os fanáticos e os que curvam a cerviz,
que também têm o coração inclinado, predicam
desta forma:
“O próprio mundo é um monstro lamacento!”

Porque todos esses têm o espírito sujo,
especialmente os que se não dão paz nem sossego
enquanto não veem o mundo por trás:
são os crentes no mundo posterior.

A esses lhes digo eu na cara, enquanto não
soe muito bem: o mundo parece-se com o homem por ter também traseiro; isto é uma verdade!

Há no mundo muita lama; isto é
muita verdade! Mas nem por isso o mundo é um
monstro lamacento!

É sensato haver no mundo muitas coisas
que cheirem mal; o próprio asco cria asas e
forças que pressentem mananciais!

Até nos melhores há qualquer coisa repugnante, e até
o melhor é coisa que se deve superar!

Oh! meus irmãos! é sensato haver
muita lama no mundo!
Friedrich Nietzsche

'Éramos todos civis'

"Sou o único sobrevivente que viu o que aconteceu com meus colegas", diz Munther Abed, enquanto mostra fotos de seus colegas paramédicos no telefone.

Ele sobreviveu ao ataque israelense que matou 15 profissionais de emergência em Gaza na madrugada de 23 de março, ao se jogar no chão na parte de trás da ambulância, enquanto seus dois colegas que estavam na frente foram atingidos pelos disparos.

No ataque, cinco ambulâncias, um caminhão dos bombeiros e um veículo da Organização das Nações Unidas (ONU) foram atacados "um por um" na região de al-Hashashin, no sul de Gaza, informou a ONU.

Os 15 corpos foram recuperados de uma vala comum no último domingo.


"Saímos da base perto do amanhecer", Munther contou a um dos jornalistas freelancers que trabalham em Gaza.

Ele explicou como a equipe de emergência do Crescente Vermelho Palestino, da agência de Defesa Civil de Gaza e da agência da ONU para refugiados palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) se reuniu nos arredores da cidade de Rafah, no sul do país, depois de receber informações sobre tiros e feridos.

"Por volta das 4h30, todos os veículos da Defesa Civil estavam a postos. Às 4h40, os dois primeiros veículos saíram. Às 4h50, chegou o último. Por volta das 5h, o veículo da agência [da ONU] foi alvo de disparos diretos na rua", diz ele.

O Exército israelense afirma que suas forças abriram fogo porque os veículos estavam se movimentando de forma suspeita em direção aos soldados sem coordenação prévia, e com as luzes apagadas. E também alega que nove membros do Hamas e da Jihad Islâmica Palestina foram mortos no incidente.

Munther contesta esta versão.

"Durante o dia e à noite, é a mesma coisa. As luzes externas e internas ficam acesas. Tudo indica que se trata de um veículo ambulância que pertence ao Crescente Vermelho Palestino. Todas as luzes estavam acesas até que o veículo ficou sob fogo direto", diz ele.

Depois disso, ele contou que foi retirado dos escombros por soldados israelenses, preso e vendado. Ele afirmou que foi interrogado por mais de 15 horas antes de ser liberado.

A BBC apresentou as alegações dele às Forças de Defesa de Israel (FDI), mas ainda não obteve resposta.

"As FDI não atacaram aleatoriamente uma ambulância", afirmou o ministro das Relações Exteriores de Israel, Gideon Saar, quando questionado em uma entrevista coletiva de imprensa, ecoando as declarações das FDI.

"Vários veículos descoordenados foram identificados avançando de forma suspeita em direção às tropas das FDI, sem faróis ou sinais de emergência. Os soldados das FDI abriram então fogo contra os veículos suspeitos."

Ele acrescentou que "após uma avaliação inicial, foi determinado que as forças haviam eliminado um terrorista militar do Hamas, Mohammed Amin Ibrahim Shubaki, que participou do massacre de 7 de outubro, junto a outros oito terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica".

O nome de Shubaki não consta da lista dos 15 profissionais de emergência mortos— oito deles eram paramédicos do Crescente Vermelho Palestino, seis eram socorristas da Defesa Civil e um era membro da equipe da UNRWA.

Israel não deu informações sobre o paradeiro do corpo de Shubaki, nem apresentou qualquer evidência da ameaça direta que os profissionais de emergência representavam.

Munther rejeita a alegação de Israel de que o Hamas pode ter usado as ambulâncias como fachada.

"Isso é totalmente falso. Todos nas equipes eram civis", diz ele.

"Não pertencemos a nenhum grupo militante. Nosso principal dever é oferecer serviços de ambulância e salvar vidas. Nem mais, nem menos."

Os paramédicos de Gaza transportaram os corpos de seus próprios colegas para os funerais no início desta semana. Houve um clamor de pesar e apelos por prestação de contas. Um pai enlutado disse à BBC que seu filho foi morto "a sangue frio".

As agências internacionais só puderam acessar a área para recuperar seus corpos uma semana após o ataque. Eles foram encontrados enterrados na areia junto às ambulâncias, o caminhão dos bombeiros e o veículo da ONU destruídos.

Sam Rose, diretor interino do escritório da UNRWA em Gaza, declarou: "O que sabemos é que 15 pessoas perderam a vida, que foram enterradas em covas rasas em um banco de areia no meio da estrada, tratadas com total indignidade e o que parece ser uma violação do direito humanitário internacional".

"Mas somente se realizarmos uma investigação, uma investigação total e completa, é que poderemos chegar ao fundo da questão."

Israel ainda não se comprometeu a realizar uma investigação. De acordo com a ONU, pelo menos 1.060 profissionais de saúde foram mortos desde o início do conflito.

"Sem dúvida, todos os funcionários de ambulância, todos os paramédicos, todos os trabalhadores humanitários dentro de Gaza neste momento se sentem cada vez mais inseguros, cada vez mais frágeis", afirma Rose.

Um paramédico segue desaparecido após o incidente de 23 de março.

"Eles não eram apenas colegas, mas amigos", diz Munther, enquanto passa nervosamente as contas de oração pelos dedos. "Costumávamos comer, beber, rir e fazer piadas juntos... Eu os considero minha segunda família."

"Vou expor os crimes cometidos pela ocupação [de Israel] contra meus colegas. Se eu não fosse o único sobrevivente, quem poderia ter contado ao mundo o que fizeram com eles, quem poderia contar sua história?"

As duas anistias do bolsonarismo

A medida que avança no STF o julgamento dos golpistas do bolsonarismo, cresce no Congresso e nas ruas a mobilização em torno de uma possível anistia. Buscando legitimar o perdão aos golpistas, a ultradireita foca seus esforços nos condenados pela intentona do 8 de Janeiro, estejam presos ou foragidos da justiça. É mais fácil tentar justificar o perdão a um bando de palermas manipulados pelos artífices do golpe do que isentá-los de responsabilidade.

Os palermas, contudo, não são meros inocentes úteis. São gente que, antes de invadir e destruir as sedes dos Três Poderes, acampou por semanas diante de instalações militares, clamando pelo cometimento do maior dos crimes, o golpe de Estado. Este é o maior dos crimes porque não se limita à transgressão pontual de alguma lei. Em vez disso, busca derrubar o próprio Estado de Direito, sem o qual nenhuma lei legítima vigora. Se tanto, após um golpe passa a viger uma pretensa legalidade, imposta por usurpadores que alegam legitimar a si mesmos graças a terem sido vitoriosos no emprego da violência para derrocar a ordem legal sob o pretexto de uma ilusória “causa justa”.


Ora, a palermada golpista não ocorreu diante das casernas à toa. Os ali reunidos pediam que militares saíssem de seus quartéis para efetuar uma violenta virada de mesa. Não fosse esse o objetivo, teriam se reunido noutro lugar – em frente a tribunais ou igrejas, por exemplo, apelando à justiça dos homens ou de Deus. Por isso mesmo, quando saí­ram da frente de um quartel em Brasília para assaltar os Três Poderes, pretenderam produzir o que não haviam conseguido após meses de acampamento golpista, uma ação militar. Caísse o governo recém-empossado nessa esparrela, teria decretado uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), convocando os militares a debelar o caos produzido justamente por aqueles que, por meses (e incitados a isso pelo bolsonarismo), imploraram pela intervenção castrense.

Aprovar a anistia para essa ­arraia-miú­da do golpismo significa normalizar o golpe de Estado, pois implica afirmar, por meio de um diploma legal, que o maior dos crimes não é coisa grave. Uma das várias falácias brandidas por Bolsonaro et caterva­ é que isso seria necessário para “pacificar o País”. Ora, mas quem é que perturbou e segue perturbando a paz neste País? Não é quem insistiu (e segue insistindo) em questionar sem qualquer fundamento factual a licitude das eleições? Havia um meio simples de manter o Brasil pacificado: o respeito à ordem legal, às instituições democráticas e ao resultado das urnas. Quem se negou a isso, perturbando a paz, foram Bolsonaro e sua gangue. Para eles, a pacificação vem do perdão a seus crimes, de modo que possam continuar a cometê-los. Que paz seria essa?

Contudo, se a anistia jurídica ainda é algo incerto (não me arrisco a dizer improvável), a anistia política já é um fato. Ela se dá pela normalização da ultradireita por políticos, partidos, órgãos de imprensa e analistas convencionais. Ora, quem numa eleição busca o apoio de Bolsonaro, coliga-se com ele e aparece a seu lado em atos de campanha, está o normalizando e, portanto, anistiando seu golpismo.

E como classificar quem, como Tarcísio de Freitas, sobe ao lado de Bolsonaro num palanque, clamando pela anistia aos golpistas do 8 de Janeiro e afirmando que o ex-presidente e seus colegas de banco dos réus são perseguidos políticos? Ora, trata-se de alguém em negacionismo democrático, seja por supor que todas as evidências colhidas pela investigação da Polícia Federal são invenções (ou, quem sabe, miragens), seja por acreditar que não há mal algum em tentar golpes de Estado. Da mesma forma, está em negacionismo quem, diante disso, afirma ser Tarcísio um político moderado ou de centro. Igualmente, normaliza-se a ultradireita, neste caso não em sua forma tosca e explícita, mas na pretensiosa e dissimulada.

Eis a gravidade não só de aprovar uma anistia legal para o golpismo bolsonarista (da arraia-miúda, das lideranças ou do médio escalão), mas de seguir aprovando a anistia política ao tratar como normal o extremismo direitista com modos. Acreditar em bolsonarismo moderado (isto é, em extremismo moderado, evidente oxímoro) equivale a anistiar politicamente o golpismo que ameaçou a democracia no passado recente e seguirá ameaçando-a no futuro próximo, se lhe for permitido. Ou alguém crê que, mesmo que o atual projeto de anistia aos golpistas naufrague no Congresso, outro não surgirá com a eleição de um aliado seu para a Presidência?

Quem são os invisíveis e ausentes no julgamento do 8 de Janeiro

Os aspectos mais retrógrados e sombrios da sociedade brasileira vieram à tona com a subversão olavo-bolsonarista em aspectos que nos perturbam e nos colocam diante daquilo que somos e não julgamos ser. Da cabeleireira ao general, todos expressam o fato de que o país está à beira do abismo de sua história. Ao menos um dos brasis que conhecemos está chegando ao fim. Resta saber qual deles.

O caso da cabeleireira sugere que uma inocente mãe de família, por ter participado de uma alegre excursão a Brasília e açulada por circunstantes movidos pelo mesmo espírito, depredou uma obra de arte, a escultura “A Justiça”, do artista plástico mineiro Alfredo Ceschiatti. Escrevendo-lhe no peito “Perreu, Mané” (sic).

Uma bandeira brasileira foi amarrada no pescoço da escultura, mais ou menos como o faziam as centenas de manifestantes que com o mesmo ímpeto invadiram e depredaram os palácios dos Três Poderes.

A ocorrência por ter mobilizado os contraditórios sentimentos que formam a personalidade nacional transformou-se em símbolo dessas contradições. Há nela todos os indícios do que não conseguimos ser, que manifestamos naquilo que achamos que somos, os patriotas que não somos.


Pátria somos quando estamos comprometidos com o nosso nós. O olavo-bolsonarismo nos dividiu e fragmentou, nos privou de pátria. Gente que vai ao governo americano pedir uma intervenção em nosso país, para assegurar interesses que não são os de nossa pátria, trai a pátria. Gente que ataca as instituições, que planeja assassinato de autoridades, é inimiga da pátria e inimiga de todos nós.

Gente, civil ou militar, que não sabe a diferença entre um botequim de Xiririca e os palácios que em Brasília abrigam as instituições, ao se comunicar por meio de palavrões, diz que por ela a pátria acabou. Porque pátria é também uma linguagem, a de uma unidade política de referência comum a todos. Religiosos, não só evangélicos que aceitam naturalmente essa linguagem são o quê?

O ato em torno da escultura de Ceschiatti reuniu e consagrou várias ignorâncias. A de não saber escrever. “Perreu”, em lugar de “perdeu”. A de achar que escultura é mera estátua e não saber que é obra de arte, obra de conhecimento e, nos países civilizados, de respeito e de admiração.

Não é estranho, pois, que os subversivos, imediatamente após a decisão do STF de transformar os acusados em réus, já têm montado o discurso de continuidade do golpe. Começam artimanhas para justificar as próprias ilegalidades com base na própria lei. Fragmentar o criminoso coletivo para diluir o delito na suposta multiplicidade de individualidades.

Justiça e Parlamento parecem propensos a cair na armadilha. O que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 foi crime de multidão. Tem explicação sociológica e psicológica como crime de um sujeito único, um sujeito social e político. O próprio Código Penal atenua, mas não perdoa a participação nele.

Na imensa pesquisa que fiz sobre linchamentos no Brasil, crime de multidão, 2 mil casos num período de mais de 20 anos, ficou evidente que os participantes nesse tipo de violência coletiva têm consciência de que “linchar não é crime”, o que não é verdade.

Em seus depoimentos, os participantes da insurreição de 8 de janeiro de 2023 dão várias indicações de que se consideravam convocados por Bolsonaro e pelo Exército para depor o presidente eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Aqueles acampamentos às portas dos quartéis só foram possíveis porque legitimados por diferentes modos de solidariedade e apoio de militares, de empresários e igrejas e seitas.

A multidão é um ente coletivo. Desde Gustave Le Bon, o médico e psicólogo que no século XIX estudou o surgimento e a ação desse sujeito social da modernidade, sabe-se que a personagem da turba é instrumento voluntário do que a turba faz. Ela se dirige com precisão aos objetivos e símbolos disseminados da ação coletiva.

Neste caso atual, a conspiração golpista desde 2021 era meramente indicial. A multidão subversiva da Praça dos Três Poderes revelou-lhe os meandros e os laços de unidade, o invisível tornou-se visível e deu sentido ao que já se vinha vendo.

Houve uma omissão na investigação. Muitos dos que foram presos e interrogados disseram que foram a Brasília orar pelo Brasil, mesmo as velhinhas com Bíblia nas mãos. De fato as filmagens registraram exaltados pentecostais orando aos berros dentro dos palácios, exorcizando o satanás do poder, isto é, das instituições democráticas.

A convergência das justificativas dos acusados indica um dos sujeitos invisíveis da mobilização e da violência, as igrejas e seus pastores. Não foram indiciados e continuam conspirando.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


Tarifas de 3ª classe!

1- Quando um governo impõe tarifas sobre produtos estrangeiros, estes chegam ao país mais caros. Resultado? Desde sapatos até eletrodomésticos, tudo passa a custar mais ao consumidor comum. A inflação volta, e os salários não acompanham. Uma guerra falhada.

2 – As tarifas podem proteger uma indústria, mas prejudicam muitas outras. Se as empresas não conseguem exportar, perdem receitas, cortam postos de trabalho ou até encerram. Ou seja, não há empregos.

3 – Numa guerra comercial, empresas e investidores não sabem o que esperar. Uma tarifa aqui, uma retaliação ali… Resultado? Travam investimentos, adiam contratações e a economia perde força.


Exemplo: em 2018, Trump aplicou tarifas sobre máquinas de lavar importadas. A ideia era proteger os fabricantes locais, como a Whirlpool. E sim, os concorrentes asiáticos ficaram mais caros. Que aconteceu?

O preço das máquinas subiu, em média, 86 dólares por unidade. E o mais surpreendente: o preço das máquinas de secar (sem tarifas!) também aumentou — apenas porque os vendedores aproveitaram a boleia.

Esta guerra, no primeiro mandato de Donald Trump, acabou assim: os consumidores americanos gastaram mais de 1,5 mil milhões de dólares extra só para lavar e secar roupa. E apenas 1.800 empregos foram criados.

Groelândia, o retorno do Império Americano

Vladmir Putin acertou na mosca ao dizer que “os planos dos EUA de controlar a Groenlândia podem surpreender apenas à primeira vista e é um erro acreditar que seja só uma conversa extravagante do governo americano” (The Guardian, 28/03/25).

Contudo, no mesmo evento sobre o futuro do Ártico, ocorrido na Rússia em março, o presidente russo fingiu admitir a legitimidade do direito do colega cowboy sobre a Groelândia. Convenhamos, tal justificativa servirá também para Putin, na barganha pela Ucrânia.

Porém, se a ideia de Trump for trocar a Ucrânia pela Groelândia, estará reproduzindo o Pacto Molotov-Ribbentrop, firmado às portas da II Guerra Mundial entre Berlim e o Kremlin para dividirem a Polônia. Pensavam ter excluído a Europa do xadrez geopolítico, mas o saldo foi um continente devastado e 60 milhões de mortos. Em 2025, a incerteza de propósitos de Trump e Putin também se sobrepõe a qualquer perspectiva de desfecho pacífico dessa nova partilha do mundo entre as potências do momento.

Para começar, assim como na brodagem anterior entre Stalin e Hitler, os dois líderes atuais blefam com a mesma naturalidade com que respiram. Trump deveria saber que o teatro Groelândia-Ucrânia pode ser mais útil na repactuação do seu convívio com a Europa do que na tratativa duvidosa com a Rússia. Se o presidente ianque tiver algum juízo (memória já seria suficiente), não largará o barril de nitroglicerina europeu ao Deus dará.

Afinal, nos últimos dois milênios os europeus têm dado um boi pra não entrarem numa guerra e uma boiada pra não saírem dela.



Por sua vez, apesar de os Estados Unidos terem brindado a humanidade com a democracia republicana em 1776 (uma década antes da Revolução Francesa), o país símbolo de liberdade não tardou a pôr em marcha um projeto imperialista de fazer inveja a qualquer monarquia colonial europeia. Ou seja, não há nada de propriamente novo no front americano.

Os EUA vivem em guerra (ou da guerra) há 250 anos, desde seu nascimento. A primeira, logo em 1812, foi contra o Canadá numa disputa por fronteiras que só acalmou quando canadenses e ingleses incendiaram Washington e a Casa Branca. Em 1836 foi a vez do Texas que, mal havia declarado sua independência do México, foi engolido pelo Tio Sam. Pouco depois os americanos entraram em guerra com o próprio México e anexaram a California, Nevada, Utah, Novo México, Arizona, Wyoming e Colorado. Nesse meio tempo, pasmem, conseguiram guerrear até contra si próprios, numa guerra civil que vitimou cerca de um milhão de americanos!

Enquanto isso, compraram o Alasca dos russos e na virada do Século XX anexaram o Havaí numa escaramuça mal explicada. Na mesma época, ao adquirirem as Filipinas herdaram uma guerra de independência do arquipélago que durou 40 anos. Depois vieram duas guerras mundiais (com duas bombas atômicas), a Guerra Fria, Coreia, Vietnam, Iraque, Líbia, Somália, Libéria, Síria, Afeganistão, sem falar no apoio a inúmeros golpes de Estado e conflitos regionais.

Ou seja, é possível que a Groelândia seja apenas mais um episódio, de uma nova temporada, na extensa série de refregas do Império Americano. Resta saber se prevalecerá alguma racionalidade mínima do colonialismo tradicional, ou se o fator Trump pode bagunçar o tabuleiro geopolítico e econômico global. Vale lembrar que Roma prosperou com Otaviano Augustus, mas findou (des)governada por Calígula.

Biblioteca oficial do crime bolsonarista

Não é só o curriculum vitae de pessoa cruel, incivil e indecorosa, que exibe indignidade com orgulho e raiva. Não é só a biografia de cultivo da violência contra todo apelo por liberdade e inclusão. Contra qualquer interesse não privado e familiar.

Se você está desconfiado da delação de Mauro Cid, como se tijolinho de barro fosse alicerce do arranha-céus de provas contra Bolsonaro; se leu notas de imprensa céticas à denúncia da PGR, versão palpiteira e diletante de garantismo; se fica admirado com a coragem moral da advocacia bolsonarista para dizer o que diz, renove a biblioteca e acione a memória.


A delinquência foi documentada e televisionada. A tentativa de golpe veio também na forma impressa, à moda de Jair. Coisa tão grande que alguns se recusam a ver. A sociologia chamou essa atrofia sensorial de cegueira supraliminar.

A biblioteca tem três estantes. A primeira guarda a bibliografia militar, cuja referência é "O Cadete e o Capitão: a Vida de Bolsonaro no Quartel", de Luiz Maklouf. Conta do plano de atentado na adutora do Guandu e da absolvição fraudulenta pelo STM, que ignorou laudo grafotécnico.

Na segunda, a bibliografia parlamentar. Reúne casos de quebra de decoro e ações criminais no STF em razão de: defesa do fechamento do Congresso e do fuzilamento de FHC, ameaça de agressão física a assessora parlamentar, agressão verbal a Preta Gil e física a Randolfe Rodrigues, incitação ao estupro, ode à tortura e ao maior torturador da ditadura, leniência de Michel Temer, rachadinhas. Inclua os podcasts Retrato Narrado, de Carol Pires, e A Vida Secreta de Jair, de Juliana Dal Piva.

Na terceira, a presidencial. O governo que existiu em permanente estado de flagrância tem duas prateleiras principais: crimes contra a vida e a saúde pública; crimes contra a liberdade democrática. Para não falar em corrupção.

São peças produzidas não pela esquerda com sede de vingança, mas pela cidadania, famílias de vítimas, advogados, autoridades: representações ao Tribunal Penal Internacional; pedidos de impeachment (e o chamado "superpedido"); relatório da CPI da Covid; representações criminais arquivadas liminarmente por Augusto Aras; ação civil pública contra a Jovem Pan, por construção dolosa do caldo desinformacional em ataque à democracia; denúncia criminal da PGR.

Graças a Aras, a Lira e até a Gonet, que deixou muito na gaveta para se concentrar nos crimes de 8 de janeiro, virou pechincha. Crimes da pandemia foram disfarçadamente anistiados. Tradição de nossas casas de tolerância à delinquência política.

Todos temos direito de dizer que nada disso é crime, apenas exercício da liberdade patriota. Assim como todos temos direito de ser idiotas. O sistema de justiça tem dever de proteger o exercício do direito à idiotia. Só não pode confundir paixão com inocência, servidão voluntária com legalidade.

Há casos juridicamente difíceis e politicamente fáceis. A denúncia contra a cúpula do golpe é o contrário. Não pede superpoderes analíticos, só coragem de juízes e integridade de comentaristas.

Bolsonaristas chamaram de "reedição do Tribunal de Nuremberg". Sorte que o direito penal desconsidera ato falho. Hannah Arendt notou em Eichmann a banalidade do mal. Estamos assistindo à banalidade da ignorância.

O Trump que Bolsonaro seria

Hollywood era formidável em filmes de tribunal. Para ficarmos só nos clássicos, "O Vento Será Tua Herança" (1960) e "Julgamento em Nuremberg" (1961), ambos de Stanley Kramer; "Anatomia de um Crime" (1959), de Otto Preminger; "O Sol É para Todos" (1963), de Robert Mulligan; e o talvez melhor de todos, "Doze Homens e uma Sentença" (1957), de Sidney Lumet. Em suas disputas entre advogados ou jurados, sempre a luta por uma causa perdida. Em todas, a vitória da Justiça, baseada num princípio inarredável: a lei.


Foi como sempre enxergamos os EUA —arrogantes e sem escrúpulos no exterior, mas internamente sujeitos a um sistema legal de quase 250 anos e sólido demais para ser abalado por arroubos fora das, olha só, "quatro linhas". Agora Donald Trump está provando que não era nada disso. Bastaria que surgisse alguém chutando a porta, distribuindo tapas na cara e mandando todo mundo ficar de nariz contra a parede para que esse sistema se acoelhasse —com todo respeito pelos coelhos.

Trump descobriu em seu primeiro mandato que, se reeleito, o sistema não resistiria a um peteleco. Novamente de posse do Executivo e tendo reduzido seu outrora grande partido, o Republicano, a um bando de zumbis, só teria pela frente a Suprema Corte, esta já composta em maioria por seus homens, nomeados da outra vez. Para sua surpresa, são exatamente esses juízes que, ainda respeitosos à lei, estão tentando peitar suas indignidades.

Há dias, Hillary Clinton chamou Trump de "burro". Incrível, uma mulher com a tarimba de Hillary afirmar isso. Trump, por mais tresloucadas suas falas e atitudes, sabe o que diz e o que faz. Precisa destruir o sistema para impor outro, em que possa aplicar suas pretensões. A Groenlândia, por exemplo, não lhe interessa para fins turísticos —quer derretê-la para explorar seus minérios e petróleo. Há interesses em todos os aparentes absurdos que comete.

Para isso, Trump precisa imperar sem contestação. Como aqui faria Bolsonaro se tivesse sido reeleito.

Daniel Kahneman e o Populismo

A crise financeira global de 2008, deflagrada pelo mercado de títulos de dívidas imobiliárias de segunda linha (sub prime bonds), nos Estados Unidos, causou desvalorização em cascata no mercado financeiro, quebra de grandes bancos como o Lehman Brothers e uma profunda recessão. O mercado de ações perdeu trilhões de dólares em valor afetando o patrimônio das famílias, fundos de pensão e carteiras de investimentos. Empresas cortaram gastos, demitiram trabalhadores em massa, o consumo despencou e a recessão aprofundou. Os governos ao redor do mundo, através de uma ação coordenada dos seus bancos centrais, liderados pelo Fed norte americano, injetaram muito dinheiro (quantitative easeing) para conter os danos. A recuperação foi lenta.

Daniel Kahneman, psicólogo israelense, foi Prêmio Nobel de economia em 2002, por sua teoria (junto com Amos Tversky) sobre o comportamento humano em matéria econômica. A teoria deles era radicalmente contrária ao princípio das expectativas racionais que fundamenta teoricamente a mística da infalibilidade dos mercados financeiros e a defesa de sua completa desregulamentação. Os seres humanos decidem sob influência de vieses e heurísticas (atalhos mentais) que levam a ilusões cognitivas e grandes erros de avaliação. Como a crise de 2008 demonstrou de forma definitiva, o comportamento de manada nos mercados financeiros e a irracionalidade dos agentes econômicos acontecem por erros e ilusões cognitivas.


Amos Tversky faleceu em 2006 e no último dia 27 de março, fez um ano que Daniel Kahneman submeteu-se ao procedimento de suicídio assistido na Suíça aos noventa anos. Seu livro “Rápido e devagar: duas formas de pensar” publicado em 2011, mostra que a forma rápida é intuitiva, automática e emocional. Toma decisão com base em padrões e experiências passadas mas é sujeita a erros de avaliação e ilusões cognitivas. A forma devagar é logica, deliberada e esforçada. Analisa informações com cuidado e precisão. É mais lenta e trabalhosa e menos sujeita a erros.

Kahneman e Tversky trabalharam anos para que sua contestação dos principios psicológicos da teoria econômica fosse ouvida nos fóruns de economia. A história e, principalmente, a crise de 2008 comprovaram que eles tinham razão. A verdade apareceu e a economia comportamental tornou-se um ramo de pesquisa aceito e respeitado.

O debate político no mundo digital, nas redes sociais em particular, em muito se assemelha aos mercados financeiros desregulados. O discurso político populista é elaborado para ser avaliado pelo modo rápido de pensar. Narrativas, exemplos, metáforas e situações hipotéticas são construídas e costuradas para fazer as pessoas se apaixonarem pelos heróis, odiarem os vilões e, principalmente, acreditarem piamente na mitologia populista. Sua força está apenas na verossimilhança e na capacidade de encantamento da narrativa. Conspirações, difamações e mentiras são ingredientes válidos. A realidade é apenas um dos mundos possíveis.

A ascenção do populismo de extrema direita em todo o mundo, tendo Donald Trump e os bilionários das Big Techs `a frente, reforça o paralelo entre os desastres causados por mercados financeiros desregulados e a força política da mensagem populista. No ambiente de vale tudo das redes sociais, as Big Techs resistem `as tentativas de regulação enquanto lucram com o caos. O pensamento humano em modo devagar, fundamental para a ciência e para a evolução da humanidade ficou fora de moda. Sob o Trumpismo ficou quase proibido.

Estou convencido que o populismo vai fracassar mas não sem antes fazer um estrago gigantesco em termos de destruição institucional e de valores civilizatórios. Como na crise financeira de 2008, o mundo poderá pedir ajuda ao Estado e a suas instituições para nos tirar da desordem e da desesperança. Contudo, acho que levará algum tempo.

O Brasil pode chegar nas eleições de 2026 sem os dois lideres populistas que ainda hoje polarizam o país mas que estão perdendo terreno no imaginário da população. Os eleitores de Bolsonaro e Lula estão arrependidos como mostrou a pesquisa da Tendências publicada recentemente no Estadão.

Precisamos nos livrar desta ilusão cognitiva que fez o Brasil andar pra trás.

Musk, meu bilionário favorito

"Loser. Loser. Loser". Essa é a pior ofensa para um empresário como Elon Musk, que Trump transformou no gênio da “eficiência da América Grande”. O homem mais rico do planeta está prestando enorme serviço ao mundo livre. Musk conseguiu, com a derrota fragorosa de seu candidato conservador para a Suprema Corte do estado de Wisconsin, provar que nem todo o dinheiro consegue comprar uma eleição.

Seria uma semana de holofotes apenas para Trump e seu tarifaço delirante. Mas Musk quis dar a seu patrão na Casa Branca uma vitória. A de um juiz patriota contra uma juíza “progressista de esquerda radical”, num estado decisivo. Musk gastou US$ 23 milhões (mais de R$ 130 milhões) nessa campanha de uma corte estadual. Deu, publicamente, cheque de US$ 1 milhão por um voto em seu juiz. Em jogo, entre outras coisas, estará o julgamento do direito ao aborto.

Perdeu, mané. E foi pelo voto de eleitores republicanos arrependidos. Desconfortáveis com os ataques trumpistas a todos os aspectos da vida real da classe média. E da lucidez. Não falo só de educação e universidades. Saúde. Emprego. Liberdade de expressão. Deportação ilegal. Agora, o fantasma da recessão e da inflação. Um isolacionismo típico de ditaduras, de esquerda e direita. O contrário da ideologia liberal que orgulha os americanos.

O bilionário de cabeceira de Trump vai rachar esse governo. Musk, como se sabe, vem de uma família tão racista que seus avós maternos se mudaram do Canadá para a África do Sul do apartheid. E lá o bebê Elon nasceu e cresceu, num ambiente de segregação máxima. Suas saudações nazistas e seu descontrole emocional incomodam. Seus discursos inflamados com boné ao lado do presidente também. Afinal, de louco basta um na Casa Branca.

O significado simbólico de Wisconsin é poderoso e me intrigou mais que o tarifaço. As taxas eram previstas. Essa derrota, não. Musk é desprovido de inteligência política. Usou seu X para chamar o voto em Wisconsin de “uma daquelas situações estranhas em que uma eleição aparentemente pequena pode determinar o destino da civilização ocidental”.

Quis comprar uma corte de juízes. Meteu o dedo na tomada. Seu chefe também.

Estimulado por Musk, Trump acusou a candidata da oposição de “libertar pedófilos e estupradores”. Pediu ao eleitor que evitasse um DESASTRE, com maiúsculas. Losers. Patéticos. A juíza democrata Susan Crawford ganhou. E as análises apontam como causa um sentimento forte do eleitorado: o ressentimento contra “um governo de bilionários”. Sem empatia pelos comuns.

Está viva a democracia americana. Prestem atenção. É só a primeira derrota depois das urnas do ano passado. Wisconsin se tornou a plataforma do descontentamento.

O mundo já enxerga a cruz na testa lisa de Musk, o dono da SpaceX e da Tesla que empunhou a motosserra de gastos públicos nos EUA. Um homem com fortuna declarada de quase R$ 2 trilhões. Dinheiro pode até trazer felicidade, mas não traz inteligência.

Eu torcia para Musk permanecer no governo, pois é tão sem noção que constrange até o próprio Trump. Em fevereiro, o bilionário escreveu em seu X: “Eu amo @realDonaldTrump tanto quanto um homem heterossexual pode amar outro homem”. Acho que esse amor começa a perder reciprocidade.

Musk está para ser defenestrado – e sabe disso, como admitiu em comício no Wisconsin: “Não vou a lugar nenhum. Talvez eu vá para Marte, mas ele fará parte dos Estados Unidos”.

Musk é o alter ego de Trump. Veremos como o mundo vai se livrar dessa dupla megalomaníaca.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


O martírio da universidade brasileira começa lá

O fato de maior peso para o futuro da universidade pública brasileira não acontece no Brasil. Acontece lá fora. Acontece na Casa Branca, em Washington, epicentro de um tsunami radioativo que se alastra pelos campi de Columbia, em Nova York, de Tufts, em Boston, e de Yale, em New Haven. Leio numa reportagem de Jamil Chade, publicada no UOL, que o Departamento de Educação de Trump investiga 45 das mais respeitáveis instituições de ensino superior nos Estados Unidos, incluindo a Universidade de Kansas, a de Utah e a de Cornell.

Nas adjacências do Golfo do México – nome que está ameaçado de extinção – muitas bibliotecas escolares já convivem com a censura. Trata-se de uma caçada. As autoridades alegam que perseguem agentes do antissemitismo, sem apresentar provas circunstanciadas. Falam também que combatem o racismo – contra brancos. Em sua mira, entra tudo aquilo que desafine da doutrina obtusa do trumpismo. É uma nuvem de gafanhotos de silício que começou a devorar a liberdade acadêmica.


Começou também a prender pessoas. Ilegalmente. Mahmoud Khalil e Rumeysa Ozturk estão encarcerados em desobediência frontal a determinações judiciais. Estudiosos estrangeiros que vivem lá se veem ameaçados de expulsão. Estudantes são vigiados. A delação entre colegas é incentivada ou mesmo imposta. Desde que o macarthismo se abateu sobre milhares de professores nos anos 1940 e 1950 não se via nada parecido na terra de Bob Dylan, Martin Luther King, Jimmy Carter, Andy Warhol, Kamala Harris e Timothy Leary. Chuva corrosiva. Fuligem no céu. Trevas sob o sol a pino.

Donald Trump banca o Torquemada estulto. Armado de seu lança-chamas moral, incinera as cátedras que ainda respiram. Columbia sofreu um corte de US$ 400 milhões do orçamento que deveria receber do governo federal. Parte disso seria destinada ao combate contra a aids. Os golpes financeiros e políticos levaram a instituição a uma espécie de nocaute, a um estado de letargia que é até difícil de entender. Na semana passada, Columbia anunciou a demissão de sua presidente (reitora), Katrina Armstrong, que ficou apenas uns meses na função. Outras escolas se apressam em retirar dos seus currículos e de seus programas termos que façam referência a diversidade sexual ou estudos da democracia. O índex de vetos é pormenorizado e humilhante. A rendição já vem dando seus sinais.

E o que é que isso tem a ver com a universidade pública no nosso país? Ora, tudo. Absolutamente tudo. Tudo e mais um pouco. A sanha repressora que se levantou a partir do Salão Oval tem conexões íntimas, ou mesmo promíscuas, com facções da extrema direita antidemocrática de diversos países, o Brasil incluído.

Para essas forças, o paraíso se efetiva na tirania e no brilho opaco dos olhos dos fanáticos. Sua estratégia é desmontar a autonomia dos ambientes acadêmicos e lobotomizar os cérebros. Você viu Jack Nicholson em O Estranho no Ninho? Pois é isso. O que acontece nos Estados Unidos, hoje, é o ensaio geral do que vem sendo preparado para os tristes trópicos. Na primeira oportunidade, as tropas vão se pôr em movimento e virão para cima, com seu ódio ressentido.

Em seu primeiro mandato, entre 2017 e 2020, Donald Trump enfrentou resistências nas melhores escolas de sua nação. Lee Bollinger, um renomado especialista em liberdade de expressão, que presidiu Columbia de 2002 a 2023, expressou mais de uma vez seu descontentamento com as rosnadas do republicano. Agora, Trump, além de latir, começa a morder. Sangue nos olhos. O inquisidor do século 21 redobrou a carga e promoveu a uma “ocupação autoritária” (“authoritarian takeover”), para usar aqui as palavras do próprio Bollinger, segundo reportou o Guardian, em reportagem publicada em 20 de março. Bollinger não está mais à frente de Columbia, infelizmente. Trump está de volta à Casa Branca, mais infelizmente ainda.

O improvável leitor que não duvide: o que não falta hoje, seja no Congresso Nacional, seja no Palácio dos Bandeirantes, é gente engravatada que mal vê a hora de copiar o “authoritarian takeover”. Cada uma de nossas universidades será brindada com uma blitzkrieg taylormade. Na USP o bote virá de um jeito, digamos, personalizado. Na Unicamp, de outro. A Unesp terá seu próprio roteiro. Assaltos parecidos virão nas federais.

A gente já viu esse filme antes. A gente já viu como termina. A gente parece que esqueceu. Agora, estamos vendo o mesmo filme começar de novo, como se fosse uma atração inédita. Nos Estados Unidos, onde a elite financeira e tecnológica cerrou fileiras com o poder estatal, num pacto de viés antidemocrático, podemos ver o trailer.

A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só. A arte, a Filosofia e a ciência, que tecem as melhores universidades do mundo, não têm fronteiras. Isso vale para as horas das grandes conquistas e para as horas, como esta, em que temos de nos defender.

Mais um gol contra do clã Bolsonaro. Nada de estranho

Como reagiria o Brasil ao tarifaço de Trump caso o presidente da República ainda fosse Jair Bolsonaro, reeleito em 2022 depois de derrotar Lula? Bolsonaro, e mais ninguém, tem a resposta.

E ele a ofereceu anteontem ao participar de mais um podcast que aplaude suas ideias. Na véspera do anúncio do tarifaço, que afetará setores estratégicos das exportações brasileiras, ele disse:

“A guerra comercial com os Estados Unidos não é uma estratégia inteligente que proteja os interesses do povo brasileiro. A única resposta razoável às tarifas recíprocas dos EUA é que o governo Lula abandone a mentalidade socialista que impõe altas tarifas aos produtos americanos, impedindo que os brasileiros tenham acesso a produtos de qualidade a preços mais baixos”.

Patriota de mentira procede assim. A qualquer hora, ou em hora particularmente delicada, ele tira a máscara e mostra de que lado está ou sempre esteve. Joga contra seu próprio país.



Dir-se-á – e seus fanáticos seguidores logo dirão -, que Bolsonaro quis apenas fazer mais um aceno a Trump porque necessita do seu apoio para não ser condenado e preso.

Como se o presidente americano estivesse de fato preocupado com a sorte de Bolsonaro. Para Trump, Bolsonaro não passa de uma caricatura tropical dele mesmo. Acha-o tão somente engraçado.

Nas últimas 48 horas, o Senado, por 70 votos a zero, aprovou o projeto de lei que permite ao Brasil retaliar o tarifaço de Trump. A Câmara dos Deputados também o aprovou por larga maioria.

A relatora do projeto foi a senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro, ligada ao agronegócio. Pela primeira vez, direita e esquerda marcharam unidas.

Eduardo Bolsonaro, (PL-SP), deputado licenciado para cuidar da própria vida nos Estados Unidos, e da vida do pai junto a Trump, partiu para cima da senadora. Escreveu nas redes sociais:

“Gostaria de fazer considerações sobre o projeto de lei da senadora Tereza Cristina […] Essa guerra não é nossa, não vamos defender a mentalidade tributária socialista, sob a falsa bandeira da proteção da indústria nacional, para manter essa imensa e pesada carga tributária, que esmaga o poder de compra do brasileiro e nos leva a ter uma péssima qualidade de vida. Tributação é a distribuição criminosa da miséria”.

Quem puxa aos seus não degenera. Dos filhos de Bolsonaro, Eduardo é o que mais puxou ao pai. Vai fritar hambúrguer, Eduardo!

O crime contra a democracia não pode compensar

Uma das características mais marcantes da extrema direita é a clareza com que defende que a punição severa e exemplar de qualquer comportamento desviante ou ilícito é o modo mais eficaz de manter a sociedade na linha. Um bom punitivista desdenha de quem busca compreender as causas sociais do comportamento e desconfia de garantias legais, como o devido processo, a presunção de inocência e o direito de defesa. Tudo isso —dirá— é parte da cultura de complacência progressista que mantém alta a criminalidade, a desordem e o desrespeito à lei no país.

Não tenho dúvida de que a abordagem punitivista do crime —muito mais próxima da percepção e do desejo da maioria dos brasileiros do que a exaurida perspectiva da esquerda— é uma das razões do sucesso popular do bolsonarismo.


Bolsonaro é a favor da pena de morte e da antecipação da maioridade penal, justifica a brutalidade policial, é contra audiências de custódia, progressão de penas e saídas temporárias e não dá a mínima para a superlotação carcerária ou para os direitos humanos de presos. Boa parte da população brasileira o acompanha.

Na base dessa posição está uma aplicação simplificada da teoria econômica do crime, proposta por Gary Becker, Prêmio Nobel de Economia, que em 1968 formulou a hipótese de que os criminosos agem com base em cálculos de custo-benefício. O indivíduo avalia a viabilidade de cometer um delito considerando três variáveis fundamentais: o risco de ser descoberto, a probabilidade real de punição e a severidade da pena em caso de condenação.

Se os riscos de ser descoberto são baixos —por falta de vigilância, insuficiência institucional ou cumplicidade interna—, o crime compensa, pois é provável que se escape ileso. Se, mesmo após a descoberta, a punição for improvável —por motivos políticos ou lentidão judicial—, a sensação de que vale a pena persiste. Por fim, se mesmo após ser descoberto e punido as penalidades forem brandas ou facilmente reversíveis, o benefício potencial da ação ilegal será percebido como ainda superior aos riscos envolvidos.

Pois bem, essa mesma teoria econômica do comportamento aplica-se com ainda mais precisão ao julgamento de Bolsonaro e dos bolsonaristas envolvidos na tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito e na conspiração golpista.

Ser tolerante com a violência política, o golpismo e os ataques às instituições democráticas é o mesmo que reduzir o custo de futuros atentados. E, como ensinou Becker, quando o custo é baixo, o crime se repete.

Ao longo da história, qualquer pessoa que se junta a outras para derrubar um regime sabe, de antemão, que se fracassar o preço será altíssimo. Se, mais adiante, alguém tiver sucesso na empreitada, os punidos serão considerados mártires e o golpe será chamado de revolução; mas, enquanto isso, fuzilamento, evisceração, forca, esquartejamento e prisões perpétuas são o preço cobrado por qualquer regime que resista ao ataque.

Na democracia, os golpistas ao menos têm direito ao devido processo —e já não se paga com sangue e vida, o que é muito mais do que eles ofereceriam aos seus inimigos se tivessem tido êxito. Mas nem mesmo a democracia sobrevive se não cobra um alto preço de quem tenta derrubar governos legítimos ou permanecer no poder à força.

O Brasil viveu várias experiências traumáticas com regimes autoritários e golpes militares ao longo de sua história, o que torna a democracia liberal, entre nós, sempre uma conquista provisória e sob risco. Nesse cenário, se não houver vigilância, investigação e punição de atos contra o Estado democrático de Direito emite-se a mensagem —aos oportunistas de sempre— de que o crime contra a democracia é um ato de baixo risco e que, portanto, compensa.

Por essa razão, todos precisam ser julgados e severamente punidos —inclusive Bolsonaro. Isso não é desejo de vingança, mas uma necessidade estratégica: elevar drasticamente o custo percebido de futuros atentados semelhantes. É fundamental que ninguém acredite poder escapar às consequências de atentar contra o regime democrático.

Aplique-se aos golpistas a mesma lógica do bolsonarismo, que diz: "Se não houver punição firme, o crime compensará". Permitir a impunidade ou minimizar a gravidade dos crimes contra a democracia significa tornar esses atos politicamente lucrativos, encorajar novos ataques e fragilizar permanentemente o sistema democrático.

Não há democracia sustentável sem que os riscos para seus inimigos sejam claros, certos e rigorosamente aplicados.

Freud com Hitler

Acabo de voltar de uma viagem à Alemanha, em que experimentei o famoso Turismo Nazi. Visitei o local em Nurembergue, onde Hitler fazia seus comícios diante de multidões inflamadas. Também estive no Centro de Concentração de Dachau, ainda mais impressionante. A preservação desses lugares de memória demonstra um esforço da Alemanha para não repetir os erros do passado. Mas a crescente popularidade do partido Alternative für Deutschland (Alternativa para a Alemanha, AfD), de inspiração nazi, preocupa os alemães progressistas, que se perguntam se esse esforço terá sido em vão.

Enquanto as testemunhas da II Guerra Mundial se tornam anciãs e escassas, muitos jovens enxergam nas pautas da extrema-direita a solução para a crise econômica no país. No lugar dos judeus, o bode expiatório são os imigrantes — ambos têm em comum a condição de Outro, percebido como ameaça a ser subtraída.


Hitler ascendeu ao poder pelo voto popular, quando o povo se sentia fragilizado e elegeu o que Freud chamaria de um “Pai forte”. O psicanalista judeu morreu em setembro de 1939, três semanas após o início da II Guerra. Teve seus livros queimados pelos nazis e precisou se exilar na Inglaterra. No livro Psicologia das massas e análise do eu (1921), descreveu o mecanismo inconsciente que leva um sujeito, na massa, a projetar parte do seu Eu sobre a figura de um líder poderoso, capaz de guiá-lo e apaziguar seu desamparo.

Numa massa organizada, o sujeito se identifica com o líder de tal modo que o situa no lugar do seu próprio Ideal — de pensamento, de conduta, etc. Isto explica o alto grau de obediência em que as pessoas se engajam em instituições como a Igreja e o Exército, em que o Líder Supremo não admite questionamento. E este não é um processo exclusivo dos alemães. É um processo humano, que aconteceu e acontecerá em outros contextos.

Em troca da sua servidão voluntária, a massa ganha a fantasia de segurança, pertencimento e irmandade. São todos “filhos” do grande líder. A mesma fantasia contagiou os golpistas que acamparam em Brasília e outras cidades do Brasil, entre 2022 e 2023, defendendo a narrativa de Jair Bolsonaro de que houve fraude na eleição de Lula. Os golpistas estavam irmanados na destruição dos palácios dos Três Poderes e no patriotismo que sempre alimentou os fascismos (apesar de Bolsonaro não esconder sua veneração patética pelos Estados Unidos).

Segundo Freud, tais projeções tendem a ocorrer em qualquer massa organizada em torno de um líder forte. A rigor, nem eu nem você somos seres humanos superiores, livres de cair nessa armadilha. Aliás, a crença na superioridade do “nós” em relação ao “eles” é a essência do supremacismo nazi.

Nenhum de nós está livre do risco de cometer violências em nome de um Ideal que nos capture, inconscientemente, num momento de vulnerabilidade. É preciso atentarmos para esse perigo, para resistirmos a ele democraticamente, num mundo em que a crise parece o estado natural das coisas e as propostas autoritárias se apresentam como o caminho mais fácil.