Nas adjacências do Golfo do México – nome que está ameaçado de extinção – muitas bibliotecas escolares já convivem com a censura. Trata-se de uma caçada. As autoridades alegam que perseguem agentes do antissemitismo, sem apresentar provas circunstanciadas. Falam também que combatem o racismo – contra brancos. Em sua mira, entra tudo aquilo que desafine da doutrina obtusa do trumpismo. É uma nuvem de gafanhotos de silício que começou a devorar a liberdade acadêmica.
Começou também a prender pessoas. Ilegalmente. Mahmoud Khalil e Rumeysa Ozturk estão encarcerados em desobediência frontal a determinações judiciais. Estudiosos estrangeiros que vivem lá se veem ameaçados de expulsão. Estudantes são vigiados. A delação entre colegas é incentivada ou mesmo imposta. Desde que o macarthismo se abateu sobre milhares de professores nos anos 1940 e 1950 não se via nada parecido na terra de Bob Dylan, Martin Luther King, Jimmy Carter, Andy Warhol, Kamala Harris e Timothy Leary. Chuva corrosiva. Fuligem no céu. Trevas sob o sol a pino.
Donald Trump banca o Torquemada estulto. Armado de seu lança-chamas moral, incinera as cátedras que ainda respiram. Columbia sofreu um corte de US$ 400 milhões do orçamento que deveria receber do governo federal. Parte disso seria destinada ao combate contra a aids. Os golpes financeiros e políticos levaram a instituição a uma espécie de nocaute, a um estado de letargia que é até difícil de entender. Na semana passada, Columbia anunciou a demissão de sua presidente (reitora), Katrina Armstrong, que ficou apenas uns meses na função. Outras escolas se apressam em retirar dos seus currículos e de seus programas termos que façam referência a diversidade sexual ou estudos da democracia. O índex de vetos é pormenorizado e humilhante. A rendição já vem dando seus sinais.
E o que é que isso tem a ver com a universidade pública no nosso país? Ora, tudo. Absolutamente tudo. Tudo e mais um pouco. A sanha repressora que se levantou a partir do Salão Oval tem conexões íntimas, ou mesmo promíscuas, com facções da extrema direita antidemocrática de diversos países, o Brasil incluído.
Para essas forças, o paraíso se efetiva na tirania e no brilho opaco dos olhos dos fanáticos. Sua estratégia é desmontar a autonomia dos ambientes acadêmicos e lobotomizar os cérebros. Você viu Jack Nicholson em O Estranho no Ninho? Pois é isso. O que acontece nos Estados Unidos, hoje, é o ensaio geral do que vem sendo preparado para os tristes trópicos. Na primeira oportunidade, as tropas vão se pôr em movimento e virão para cima, com seu ódio ressentido.
Em seu primeiro mandato, entre 2017 e 2020, Donald Trump enfrentou resistências nas melhores escolas de sua nação. Lee Bollinger, um renomado especialista em liberdade de expressão, que presidiu Columbia de 2002 a 2023, expressou mais de uma vez seu descontentamento com as rosnadas do republicano. Agora, Trump, além de latir, começa a morder. Sangue nos olhos. O inquisidor do século 21 redobrou a carga e promoveu a uma “ocupação autoritária” (“authoritarian takeover”), para usar aqui as palavras do próprio Bollinger, segundo reportou o Guardian, em reportagem publicada em 20 de março. Bollinger não está mais à frente de Columbia, infelizmente. Trump está de volta à Casa Branca, mais infelizmente ainda.
O improvável leitor que não duvide: o que não falta hoje, seja no Congresso Nacional, seja no Palácio dos Bandeirantes, é gente engravatada que mal vê a hora de copiar o “authoritarian takeover”. Cada uma de nossas universidades será brindada com uma blitzkrieg taylormade. Na USP o bote virá de um jeito, digamos, personalizado. Na Unicamp, de outro. A Unesp terá seu próprio roteiro. Assaltos parecidos virão nas federais.
A gente já viu esse filme antes. A gente já viu como termina. A gente parece que esqueceu. Agora, estamos vendo o mesmo filme começar de novo, como se fosse uma atração inédita. Nos Estados Unidos, onde a elite financeira e tecnológica cerrou fileiras com o poder estatal, num pacto de viés antidemocrático, podemos ver o trailer.
A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só. A arte, a Filosofia e a ciência, que tecem as melhores universidades do mundo, não têm fronteiras. Isso vale para as horas das grandes conquistas e para as horas, como esta, em que temos de nos defender.
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