Infelizmente, o Itamaraty de hoje está provando que não é preciso descer às catacumbas infernais da ditadura desabrida para que manipulações da história e da memória sejam levadas a cabo alegremente, mesmo numa situação democrática, ainda que polarizada.
Elimina-se esses objetos de uma memória coletiva na vã tentativa de apagar ou diminuir a importância de vultos históricos, cuja contribuição para o Brasil foi reconhecida por todas as correntes políticas, mas não mais.
O episódio do busto é apenas um em uma sequência de atos mais ou menos arbitrários que visam a expurgar o pensamento crítico, o dissenso, o pluralismo e a valorização da memória institucional do Itamaraty e de sua diplomacia bicentenária.
O veto a uma biografia de Alexandre de Gusmão apenas por contar com um prefácio de caráter histórico de um desafeto, o ex-ministro Rubens Ricupero, abriu as comportas para o controle do pensamento em níveis inéditos, em que a censura interna é brandida como arma na guerra cultural por uma nova memória em que vultos inconvenientes vão sendo tirados de circulação.
Retira-se um busto, vetam-se publicações, reforma-se o currículo do curso de formação de diplomata com ênfase numa visão de mundo afim ao pensamento oficial, proíbe-se que uma turma de Rio Branco homenageie personalidades que caíram em desgraça aos olhos do atual governo, encostam-se diplomatas do departamento de escadas e corredores pelo simples fato de terem feito o seu trabalho, em governos anteriores.
Na nova história oficial, fatos e contribuições de líderes e ex-ministros de distintas cepas políticas são desprezados, uma vez que a mentalidade vigente é revolucionária: importa destruir tudo o que foi feito, como reconheceu o próprio Presidente, num jantar durante sua visita a Washington, em março passado.
A nova era exige fazer tábula rasa e, para alcançar esse objetivo, é preciso também depurar a instituição de indivíduos que seriam “ideologicamente perigosos”.
A manipulação da memória coletiva não se faz sem a busca da homogeneidade do pensamento, o que requer, por sua vez, um corpo de funcionários expurgado dos “maus elementos”, dos ideologicamente degenerados.
É preciso escolher alguns bodes expiatórios, sacrificá-los no altar da seita olavista, para exorcizar os demônios internos. Para isso, buscam-se para perseguir funcionários que serviram a governos anteriores, em geral, mais fracos e desprotegidos.
A recente exoneração de ex-assessor da presidência na era petista da chefia de uma das divisões do Itamaraty, um cargo considerado técnico, demonstra o grau de aviltamento a que se é capaz de descer para dar satisfação às milícias digitais, que lincharam o referido funcionário e exigiram sua cabeça.
É claro que o chanceler resolveu aplacar os justiceiros virtuais para poupar a si próprio, numa contradição evidente para qualquer observador neutro.
Basta recordar que Araújo foi subchefe do gabinete de um chanceler de Dilma Rousseff. E entre seus assessores imediatos e ocupantes de altos cargos do ministério, há outros que também exerceram funções de destaque em governos anteriores, como seria natural em qualquer circunstância.
No entanto, coerência não é bem a palavra que descreve a atual chefia do Itamaraty. A exoneração do funcionário foi, sob todos os aspectos, uma decisão timorata, que rompe com a ideia de uma diplomacia profissional, cuja essência é justamente a manutenção de uma burocracia hierárquica que serve com eficiência a qualquer governo.
Chefes de divisão não são grandes formuladores da política externa, mas meros executores no nível técnico do ministério. A perseguição nesse nível da hierarquia não é apenas inédita, mas abala os pilares da diplomacia profissional, joga na sarjeta o moral da tropa comandada pelo chefe da casa.
O Itamaraty nos faz lembrar daquela passagem da obra 1984 de Orwell: “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. O ministério das Relações Exteriores, que já esteve na vanguarda da profissionalização do serviço público, hoje se coloca na vanguarda do atraso, ou pior, é a ponta de lança de uma busca distópica pelo controle do pensamento e da memória, que visa a controlar o futuro.
O chanceler pode tentar livrar-se de seus fantasmas eliminando bustos e aceitando a perseguição de funcionários de menor hierarquia, mas não há dúvida de que a realidade, mais cedo ou mais tarde, voltará a assolá-lo. Não há manipulação histórica e controle do pensamento que resista por muito tempo à luz desinfetante e saneadora dos fatos.
Hussein Kalout
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