sábado, 1 de março de 2025

Divórcio à americana

Num filme famoso – e escandaloso – do início dos anos 1960, o realizador Pietro Germi conseguiu sintetizar, numa hilariante sátira, o machismo ridículo que vigorava então nos países do Sul da Europa. A comédia, intitulada Divórcio à Italiana, contava a história de um decadente aristocrata siciliano, interpretado pelo inesquecível Marcello Mastroianni, que, ao apaixonar-se por uma prima mais jovem, durante umas férias de verão, procura um estratagema para se livrar da mulher com quem era casado – no tempo em que o divórcio era proibido em Itália. Elabora, para isso, um plano que pensa ser infalível: arranjar um amante para a mulher e apanhar os dois em “flagrante delito”. Em seguida, simulando um “ataque de fúria”, poderia aniquilá-los, ciente de que, nessa época, os homicídios por “honra” eram perdoados pela justiça e aceites pela sociedade.

A sátira à autoridade omnipresente da Igreja Católica e aos “bons costumes”, que tornavam socialmente mais admissível matar o cônjuge do que aceitar o divórcio, era uma “carga” demasiado pesada para os censores do Portugal salazarista. Por isso, aqui, o filme só foi exibido muitos anos depois, após o 25 de Abril, apesar do êxito internacional que obteve, tendo inclusive conquistado o Oscar de Melhor Argumento Original, além de outros prémios em diversos festivais.

Salvaguardadas as devidas distâncias, estamos agora a assistir a uma espécie de remake ao vivo de algo semelhante nas relações internacionais, com muitas alianças a desmoronarem-se, sem que o divórcio seja declarado. E sem que faltem, nalguns casos, até algumas ameaças de assassínio, sempre justificadas por questões de honra ou de interesse próprio.


Após décadas de casamento, com muitas celebrações pelo meio, a Europa e os Estados Unidos da América estão, desde o regresso de Donald Trump à Casa Branca, numa separação de facto. As diferenças entre os dois são cada vez mais acentuadas, há desacordo em quase tudo e, na verdade, já não têm o mesmo interesse em continuar juntos.

Donald Trump, como Marcello Mastroianni no filme, já só pensa em arranjar formas de poder livrar-se dos antigos aliados europeus. Seja através de ameaças de invasão da Gronelândia, administrada pela Dinamarca, do anúncio de novas tarifas para enfraquecer a economia ou patrocinando os radicais e extremistas que querem destruir a União Europeia por dentro. E já nem sequer esconde o seu desejo antigo por um relacionamento mais permanente e estável com Vladimir Putin, que representa a maior ameaça à paz europeia.

O romance entre os dois já é assumido e visível para o mundo. Prova disso foi dada esta semana na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando, pela primeira vez, os representantes de Moscovo e de Washington estiveram do mesmo lado, contra a maioria, na recusa em condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia.

Os factos são já mais do que evidentes. A Europa não pode, então, continuar a iludir-se com a aliança e a proteção dos EUA. Precisa de quebrar a relação de décadas de dependência e assumir o divórcio. E deve fazê-lo sem planos maquiavélicos nem subterfúgios, mas antes com frontalidade – a única maneira que tem de ganhar força perante o resto do mundo.

Só há uma forma de o fazer: com uma liderança inequívoca e a firmeza de convicções que nortearam a criação do projeto europeu. Uma convicção assente num Estado social forte e solidário, na defesa da democracia e da liberdade, no respeito escrupuloso pelos direitos humanos e numa ideia de progresso para todos os cidadãos, sem exceções.

Neste processo, ninguém pode dizer que foi apanhado de surpresa. Tudo o que Trump está a fazer é exatamente o que tinha prometido. Não adianta, por isso, continuar a tentar adiar o divórcio cada vez mais próximo e inevitável. Está na hora de começar a fazer as partilhas, como avisou o próximo chanceler alemão, Friedrich Merz, ao assumir que a sua “prioridade absoluta” é garantir “a independência em relação aos EUA”. E, neste caso, é melhor um divórcio litigioso do que continuar a perpetuar crimes justificados pela “honra”.

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