A sátira à autoridade omnipresente da Igreja Católica e aos “bons costumes”, que tornavam socialmente mais admissível matar o cônjuge do que aceitar o divórcio, era uma “carga” demasiado pesada para os censores do Portugal salazarista. Por isso, aqui, o filme só foi exibido muitos anos depois, após o 25 de Abril, apesar do êxito internacional que obteve, tendo inclusive conquistado o Oscar de Melhor Argumento Original, além de outros prémios em diversos festivais.
Salvaguardadas as devidas distâncias, estamos agora a assistir a uma espécie de remake ao vivo de algo semelhante nas relações internacionais, com muitas alianças a desmoronarem-se, sem que o divórcio seja declarado. E sem que faltem, nalguns casos, até algumas ameaças de assassínio, sempre justificadas por questões de honra ou de interesse próprio.
Donald Trump, como Marcello Mastroianni no filme, já só pensa em arranjar formas de poder livrar-se dos antigos aliados europeus. Seja através de ameaças de invasão da Gronelândia, administrada pela Dinamarca, do anúncio de novas tarifas para enfraquecer a economia ou patrocinando os radicais e extremistas que querem destruir a União Europeia por dentro. E já nem sequer esconde o seu desejo antigo por um relacionamento mais permanente e estável com Vladimir Putin, que representa a maior ameaça à paz europeia.
O romance entre os dois já é assumido e visível para o mundo. Prova disso foi dada esta semana na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando, pela primeira vez, os representantes de Moscovo e de Washington estiveram do mesmo lado, contra a maioria, na recusa em condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia.
Os factos são já mais do que evidentes. A Europa não pode, então, continuar a iludir-se com a aliança e a proteção dos EUA. Precisa de quebrar a relação de décadas de dependência e assumir o divórcio. E deve fazê-lo sem planos maquiavélicos nem subterfúgios, mas antes com frontalidade – a única maneira que tem de ganhar força perante o resto do mundo.
Só há uma forma de o fazer: com uma liderança inequívoca e a firmeza de convicções que nortearam a criação do projeto europeu. Uma convicção assente num Estado social forte e solidário, na defesa da democracia e da liberdade, no respeito escrupuloso pelos direitos humanos e numa ideia de progresso para todos os cidadãos, sem exceções.
Neste processo, ninguém pode dizer que foi apanhado de surpresa. Tudo o que Trump está a fazer é exatamente o que tinha prometido. Não adianta, por isso, continuar a tentar adiar o divórcio cada vez mais próximo e inevitável. Está na hora de começar a fazer as partilhas, como avisou o próximo chanceler alemão, Friedrich Merz, ao assumir que a sua “prioridade absoluta” é garantir “a independência em relação aos EUA”. E, neste caso, é melhor um divórcio litigioso do que continuar a perpetuar crimes justificados pela “honra”.
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