quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Doutrinas da idiotice

Em épocas de perigo político, os homens adoptam doutrinas idiotas e destruidoras e abdicam de pensar com justeza. Perseguem ainda aqueles que o fazem , com ferocidade maior ou menor , conforme o grau de medo que atingiram . Até que ponto este processo foi levado na Rússia, todos nós o sabemos. Temos muitas razões para recear que, ainda que talvez sob uma forma menos feroz , algo que não será de todo dissemelhante venha a acontecer no Ocidente.

Bertrand Russell, "Realidade e Ficção"

Patriotada de Trump me espanta porque EUA é país de imigrantes

Espanta-me o signo-lema que elegeu Donald Trump. O mote isolacionista e literalmente reacionário “Make America Great Again” (Torne a América grande novamente) — um slogan agressivo, explicitamente nacionalista e exclusivista no melhor estilo autocrático. O Maga (na sigla em inglês) de Trump é, sem sombra de dúvida, o primeiro degrau de um neofascismo cujo sintoma é a cruel deportação em massa de imigrantes “ilegais”. Como se fosse “legal” largar nosso lugar de nascimento — a terra por onde entramos como atores passageiros neste terrivelmente maravilhoso Vale de Lágrimas. Este vale que a ideologia trumpista quer transformar num inferno, pois imigrar é um movimento dramático, que suplanta escolhas turísticas.


Trata-se de ato contrário ao que paulatinamente fabricou os Estados Unidos e está expresso no projeto dos milhões que assim fizeram, demonstrando justamente o oposto do que Trump proíbe. O “fazer América” que os pais ou avós da maioria dos meus amigos americanos (os de Trump eram alemães e escoceses) realizaram, provando (muitos, sem dúvida, ilegais) o lado mais generoso e tolerante da igualdade como valor difícil de praticar.

O Maga é o dístico expressivo de um perigoso nacionalismo. É a marca dos movimentos afins de hierarquia de raças e gentes. É a negação do acolhimento e uma clara exaltação do etnocentrismo que Trump e os neorrepublicanos transformam em entusiasmo eleitoreiro. Queira Deus que não vire política de Estado. É um disparate reacionário ao estreitamento solidário de um mundo globalizado, marcado por teias de mensagens que nos tornam parte de algo maior que nossas aldeias, grandes não por voltarem a seu passado, mas por se abrirem a um futuro planetário nivelador de estilos de vida.

Ninguém pode ser contra a legalidade imigratória, mas a relação inconsciente entre a ilegitimidade e o expurgo migratório justamente na fronteira sul não pode ser ignorada. Ali — pasmem — se faz um muro entre povos e humanidades num planeta cada vez mais interligado.

Contra essa aversão, deve-se ressaltar o poder da esperança que todo imigrante traz dentro de si quando muda de pátria. O caso da América como república democrática até agora triunfante revela como os peregrinos que, em 1620, atracaram em Plymouth, Massachusetts, criaram um pacto de liberdade e igualdade. Essa igualdade foi repetidamente vivida por milhões de outros “peregrinos”, que reiteraram aos locais a virtude do acolhimento, não do expurgo.

É um espantoso paradoxo essa pintura trumpista dos imigrantes como vilões, justamente numa nação construída por imigrantes. Estrangeiros que lembravam aos americanos a preciosidade de suas heranças políticas e o valor de sua difícil, arriscada e preciosa experiência democrática. Muitos eventos foram lembrados e reeditados justamente por recém-chegados.

O estrangeiro não é apenas um intruso ilegal. Ele é um intrometido que idealiza e admira o país que o acolhe. Falo disso porque muitas vezes testemunhei estrangeiros lembrando aos americanos natos a importância de seus valores e a riqueza de seu estilo de vida. O expurgo de estrangeiros, mesmo ilegais, ao lado do lema de “tornar a América grande novamente”, chega a meus velhos ouvidos como toque antidemocrático e espantosamente isolacionista.

Lembra “América somente para americanos”, quando sabemos que a experiência dos Estados Unidos é parte de toda a Humanidade e com ela compartilhada sem as reservas do nós contra vocês.    

Plano do golpe vestia farda dos pés à cabeça

O planejamento de um golpe para manter Jair Bolsonaro no cargo foi uma operação essencialmente militar. Integrantes das Forças Armadas fizeram preparativos para anular as eleições, sequestrar autoridades e assassinar o futuro presidente. Armaram a instalação de um regime de exceção que seria controlado pelos generais que haviam patrocinado a ascensão do capitão em 2018.

As investigações reveladas nesta terça são mais uma prova de que o envolvimento de militares na trama do golpe jamais foi um fato isolado. O plano tinha a participação de integrantes das Forças Especiais do Exército. As ideias eram discutidas com generais influentes e foram levadas para dentro do Palácio da Alvorada.


As mensagens obtidas pela Polícia Federal mostram que o general da reserva Mario Fernandes organizou uma operação clandestina para consumar o golpe. A ação envolvia o monitoramento de alvos, o uso de um lançador de granadas e até o envenenamento de Lula e Alexandre de Moraes. Segundo os investigadores, ele levou o plano ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava entocado.

A PF também aponta que um grupo de "kids pretos", militares de elite que seriam responsáveis pela execução dos crimes, se reuniu na casa do general Braga Netto em 12 de dezembro de 2022. Três dias depois, eles prepararam uma tocaia para uma provável prisão ilegal de Moraes.

O plano do golpe vestia farda dos pés à cabeça. Depois da operação, Bolsonaro deveria criar um gabinete de crise que seria comandado pelos generais Braga Netto e Augusto Heleno, com a participação de outros militares.

Segundo documentos dos golpistas, o arcabouço jurídico desse período de exceção seria elaborado pelo Superior Tribunal Militar, e as Forças Armadas participariam da organização de novas eleições. O STM divulgou uma nota em que rejeita a hipótese de envolvimento na empreitada.

A tentativa de ruptura nunca foi apenas um sonho pessoal de Bolsonaro, seguido de forma obediente por seus aliados na caserna. Os fardados que estiveram no poder durante o mandato do ex-presidente tinham seus próprios interesses. Não é difícil imaginar quem exerceria autoridade dentro de um regime iniciado por um golpe militar.
Bruno Boghossian

O mundo multipolar das potências médias

A ascensão da China desafiou a hegemonia incontestável dos Estados Unidos sobre a economia mundial - status do qual os EUA desfrutam desde o colapso da União Soviética. Enquanto algumas elites americanas de segurança nacional buscam manter a primazia dos EUA, outras parecem resignadas a um mundo cada vez mais bipolar. Um resultado mais provável, no entanto, é um mundo multipolar em que as potências médias exerçam uma força compensatória considerável, impedindo assim que EUA e China imponham seus interesses aos outros.

As potências médias incluem a Índia, a Indonésia, o Brasil, a África do Sul, a Turquia e a Nigéria - todas grandes economias com presença significativa na economia global ou em suas regiões. Elas estão longe de ser ricas - na verdade, representam uma parcela significativa das pessoas mais pobres do mundo -, mas também têm classes médias grandes e voltadas para o consumo e capacidades tecnológicas consideráveis. O PIB combinado (em termos ajustados pelo poder de compra) dos seis países mencionados acima já supera o dos EUA e a projeção é de que cresça 50% até 2029.


Normalmente, esses países têm políticas externas distintas que rejeitam o alinhamento claro com os EUA ou com a China. Ao contrário do que muitos nos EUA acreditam, as potências médias não têm grande afinidade com a China, nem querem se aproximar dela às custas de seu relacionamento com os EUA. De fato, na medida em que elas se aproximaram da China, isso se deve à política dos EUA. O armamento dos Estados Unidos com seu poder comercial e financeiro os impeliu a proteger suas apostas.

Os líderes das potências médias não querem um mundo em que sejam forçados a tomar partido. “Recusamo-nos a ser um peão numa nova guerra fria”, diz o ex-presidente da Indonésia Joko Widodo. Em vez disso, elas querem construir relações multidimensionais de comércio e investimento, selecionando em um menu de opções que não seja artificialmente restrito por nenhuma rivalidade entre grandes potências. Muitos acreditam, assim como Rana Foroohar, do Financial Times, que “os EUA não são uma âncora para a estabilidade, mas sim um risco contra o qual é preciso se proteger”.

Com as economias avançadas cada vez mais voltadas para o interior, as potências médias se tornaram as campeãs naturais dos bens públicos globais. Elas estão bem posicionadas para liderar a defesa de ações em relação às mudanças climáticas, à saúde pública e ao endividamento. Um bom exemplo é a pressão do Brasil por um imposto global sobre a riqueza dos bilionários durante sua presidência do G20. A proposta em análise arrecadaria centenas de bilhões de dólares e poderia desempenhar um papel importante para preencher a lacuna no financiamento climático para países de baixa renda.

É improvável que as potências médias se tornem um bloco formidável por si só, principalmente porque seus interesses são muito diversos para se encaixarem numa agenda econômica ou de segurança comum. Mesmo quando se juntaram a grupos formais, seu impacto coletivo foi limitado. O Brics (originalmente Brasil, Rússia, Índia, China e, mais tarde, África do Sul) foi lançado com grande alarde em 2009, mas pouco conseguiu além de proporcionar oportunidades de fotos para seus líderes.

Recentemente, o Brics se expandiu para incluir mais quatro países: Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos, e outros podem se juntar. Mas é difícil ver como um grupo de países tão heterogêneo pode agir em conjunto de forma consistente. O pior resultado é que o agrupamento reforçará até mesmo os impulsos autocráticos dos líderes dos Estados-membros eleitos democraticamente.

Talvez a contribuição mais importante das potências médias seja mostrar a viabilidade da multipolaridade e dos diversos caminhos de desenvolvimento na ordem global. Elas trazem uma visão que não depende do poder e da boa vontade dos EUA ou da China

Uma visão comum entre economistas e cientistas políticos é que uma economia global saudável e estável precisa de um hegemon - seja os EUA depois de 1945 ou a Grã-Bretanha durante o padrão-ouro. De acordo com a teoria da “estabilidade hegemônica”, é necessária uma potência superveniente para arcar com os custos da administração de uma economia mundial aberta, como a manutenção de rotas marítimas abertas ou a aplicação de regras comerciais e o livre fluxo financeiro. Dessa forma, a multipolaridade é uma receita para o caos e a desintegração econômica.

Mas essa é uma visão ultrapassada de como o mundo atual funciona. Embora a combinação específica de abertura e proteção varie de modo natural entre os países, nenhum país tem interesse em dar as costas à economia global. Os governos devem equilibrar os benefícios do comércio aberto com o apoio que seus setores podem precisar para desenvolver novas capacidades. Cada país é o seu melhor juiz quando se trata dos termos em que participa da economia mundial.

Seria bom ter um mundo em que os EUA, talvez acompanhados pela China, de fato fornecessem bens públicos globais, como o financiamento em condições favoráveis e o acesso à tecnologia de que os países em desenvolvimento precisam para a mitigação e a adaptação ao clima. Mas esse não é o mundo que temos. Os EUA e outras grandes economias estão lamentavelmente mal dispostos a fornecer os bens públicos de que a economia mundial precisa de verdade e, dado o clima em suas capitais hoje, é improvável que essa disposição melhore tão cedo.

Além disso, como muitas potências médias aprenderam com a experiência, o poder hegemônico pode ser usado tanto por motivos coercitivos quanto por motivos benevolentes. Ele pode ser empregado para impor regras do jogo que não atendam aos seus interesses - e que o hegemon desrespeita sempre tão logo elas se tornam inconvenientes - ou para punir países que não se alinham com os objetivos da política externa do hegemon, como no caso da internacionalização das sanções dos EUA contra o Irã e a Rússia.

Talvez a contribuição mais importante que as potências médias possam fazer seja demonstrar, por meio de seu exemplo, a viabilidade da multipolaridade e dos diversos caminhos de desenvolvimento na ordem global. Elas trazem uma visão para a economia mundial que não depende do poder e da boa vontade dos Estados Unidos ou da China. No entanto, para que as potências médias sejam modelos dignos para os outros, elas devem se tornar atores responsáveis - tanto em suas negociações com países menores quanto na promoção de uma maior responsabilidade política em seu país.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Israel está cometendo crimes de guerra em Gaza

Como o evento em andamento na Faixa de Gaza será chamado no futuro? Israel o chama de "guerra". Não há dúvida de que uma guerra está em andamento, em várias frentes. Mas dentro da estrutura da guerra, um crime está sendo cometido em Gaza. Israel está deliberadamente obliterando uma grande cidade com milhares de anos (Cidade de Gaza), realizando assassinatos em uma escala imensa e tentando expulsar a população de uma região inteira. 

Incêndios florestais na cidade de Nova York? Algo mudou.

Em Vancouver, British Columbia, onde moro há 25 anos, costumávamos culpar a Califórnia e Washington pelos nossos céus ocasionalmente esfumaçados. Então, no verão de 2015, o ar de Vancouver ficou laranja marciano, assim como o ar na Costa Leste no ano passado. Só que dessa vez, os incêndios eram nossos. Não foi apenas um ano ruim; algo fundamental havia mudado. Desde então, quase todo verão trouxe sóis vermelhos ao meio-dia, alertas de saúde, recordes de calor quebrados, ansiedade e, quando os incêndios se aproximam, medo real: nossa antiga casa é um barril de pólvora. Para onde iríamos?

Avisos de bandeira vermelha na Nova Inglaterra indicando clima propício para incêndios — isto é, condições quentes, secas e ventosas — têm sido emitidos repetidamente desde o final de outubro. Esses avisos são comuns no Oeste, mas são extremamente raros no Nordeste, onde cresci e onde minha linha de base foi estabelecida, minha noção do que é clima normal. E posso dizer a vocês: isso não é normal. Na década de 1970, a ideia de incêndios florestais ao longo do corredor da I-95 em novembro era simplesmente inconcebível.

Neste outono, mais de 500 incêndios florestais ocorreram somente em Nova Jersey. E nas últimas duas semanas, em partes de Connecticut e Pensilvânia onde os empreendimentos terminam e as terras selvagens começam, conhecidas como interface urbana-selvagem, os incêndios também ameaçaram casas. O corpo de bombeiros da cidade de Nova York respondeu a 271 incêndios florestais nos cinco distritos apenas nas duas primeiras semanas de novembro. Um incêndio de 5.000 acres está queimando há mais de uma semana na fronteira entre Nova York e Nova Jersey, o que levou a ordens de evacuação voluntária no sábado, depois que o fogo rompeu as linhas de contenção.


No mês passado, um bombeiro foi morto e outros dois ficaram feridos por um veículo enquanto combatiam um incêndio florestal em Berlin, Connecticut. Em 9 de novembro, um funcionário de 18 anos do estado de Nova York foi morto combatendo um incêndio no Sterling Forest State Park. Combatentes de incêndios florestais sendo mortos? Talvez no Colorado ou na Califórnia. Mas no Nordeste, quase nunca.

Duas semanas atrás, um repórter de jornal de Provincetown, Massachusetts, me ligou. As florestas de pinheiros e carvalhos de Cape Cod poderiam queimar como as florestas ocidentais que descrevi no meu livro “Fire Weather”?

“Sim”, eu disse a ele. “Talvez não no passado, mas agora eles podem.”

Parecia estranho, quase traiçoeiro, dizer isso, porque eu vou ao cabo desde criança. Eu conheço o cheiro daquelas agulhas de pinheiro no verão, o suave estalar das pinhas sob os pés. A ideia daquelas árvores queimando nunca me ocorreu antes deste ano.

Estamos sendo lembrados da maneira mais difícil de que compartilhamos este mundo. A fumaça não conhece fronteiras, e nem o fogo. Não é um problema do Sul ou do Ocidente; é nossa realidade compartilhada. Este não é apenas um "ano ruim". Globalmente, 2023 foi o ano mais quente da história registrada, e esse recorde já está sendo quebrado. Este ano está a caminho de ser não apenas um dos outonos mais secos da história dos EUA desde que os registros foram mantidos, mas também o primeiro ano completo em que as temperaturas globais subiram 1,5 graus Celsius (2,7 graus Fahrenheit) acima dos níveis pré-industriais. Isso não parece muito, mas quando esse tipo de calor elevado é prolongado, ele estressa os sistemas naturais, matando criaturas marinhas e tornando florestas e pastagens mais inflamáveis.

Como muitos de nós, posso sentir as coisas se inquietando — erodindo e invadindo ao mesmo tempo. Blocos de Jenga, grandes e pequenos, estão sendo retirados de estruturas que tomamos como certas, desestabilizando o país, o clima, ecossistemas inteiros.

Depois do furacão Helene, as pessoas vivenciaram um distanciamento do mundo como o conheciam na região montanhosa inundada da Carolina do Norte. Quando uma cúpula de calor matou quase 700 habitantes da Colúmbia Britânica e mais de um bilhão de criaturas intermareais em 2021, nós vivenciamos isso lá também. As coisas parecem diferentes agora, em grande parte, porque o clima está diferente agora.

Graças à queima implacável de combustíveis fósseis, estamos — agora mesmo, em tempo real — partindo da época do Holoceno, a zona Cachinhos Dourados de relativa estabilidade climática que nos permitiu construir o mundo como o conhecemos nos últimos 12.000 anos. Devemos reconhecer este momento pelo que ele é: o início de uma nova era de recuo, contração e consolidação civilizacional. Chame-o de pós-Holoceno.

Cientistas do clima previram isso desde a década de 1950, e as empresas petrolíferas vêm negando e desviando a atenção indesejada desde então. A falha de imaginação é uma especialidade humana. Essa falha perceptiva, que Nassim Nicholas Taleb chama de “Problema Lucrécio” em homenagem ao poeta e filósofo romano, ocorre quando baseamos nossa estimativa de possíveis extremos futuros em experiências passadas limitadas.

Esta foi uma característica marcante da resposta ao incêndio de Fort McMurray, Alberta, em 2016, que levou à maior e mais rápida evacuação de um incêndio florestal nos tempos modernos. Apesar de dois anos de seca, duas semanas de calor intenso, previsões meteorológicas detalhadas prevendo clima extremo para incêndios e a presença de cinco incêndios florestais ao redor da cidade, os primeiros evacuados foram alertados não pelas autoridades, mas por vizinhos, familiares e incêndios em seus quintais.

Em 2016, nesse terrível incêndio, vi algo que era mais difícil de não ver no oeste canadense: aqueles incêndios violentos do sul avançando constantemente para o norte em conjunto com o aumento das temperaturas, como o equivalente combustível da doença de Lyme ou da dengue, até que o Canadá também foi infectado.

Desde então, os incêndios florestais têm queimado mais intensamente, rapidamente e letalmente do que nunca, e é difícil não ver ecos em outras tendências globais. Nestes incêndios de novembro, não consigo deixar de ver uma alegoria para a queima antecipada de nossas normas políticas: a previsão detalhada, os precedentes abundantes, a fé míope em (ou desdém absoluto por) leis e métodos antigos que podem de alguma forma conter essa nova energia volátil.

Saber perder eleições é uma arte

Eu já deveria ter esquecido as eleições nos Estados Unidos. Torci por Kamala Harris, perdi. Perdi eleições municipais, estaduais e federais. Uma fora do Brasil não é nada. Se houver algo em Marte, farei minha aposta.

A energia inicial, milhões de dólares arrecadados entre pequenos doadores, me impressionou. Pensei que a alegria da campanha e seu olhar para o futuro bastariam. Hoje, percebo que havia uma raiva e uma frustração que o otimismo superficial não resolve. Trump interpretou bem, venceu.

Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram, com mais entusiasmo.

Não consigo entender como racional uma proposta de deportação em massa. Não só porque será difícil e mais caro substituir essa mão de obra com americanos natos. A ideia de Trump de expulsar imigrantes e mesmo a de Giorgia Meloni, de confiná-los num outro país, não resolvem.

Tangidos por fome, guerras e desastres naturais, milhões continuarão a arriscar suas vidas em busca de oportunidades. O capitalismo garante liberdade para o fluxo de capitais e mercadorias, mas bloqueia a mão de obra. É uma negação de suas bases econômicas. Veremos parte da humanidade tentando escapar; outra, de certa forma, lançando-a ao mar.

Vivemos o ano mais quente da História. A temperatura media já é de 1,5 °C mais alta que a do período pré-industrial. Por que negar tantas evidências, sobretudo num país atingido por furacões cada vez mais fortes, do Katrina ao Milton? Nesse contexto, o slogan drill baby, drill (perfure, querido, perfure) — cavar para buscar petróleo entre as pedras — é uma forma simbólica de cavar a própria sepultura.

A própria ideia de taxar importações, de se fechar, de certa maneira, para o comércio internacional parece sedutora, supõe uma idade de ouro da indústria americana. Mas, na verdade, pode encarecer e dificultar a vida dos americanos. É um tipo de visão que favorece o avanço do grande competidor que é a China. Os chineses se prepararam com visão de longo prazo.

Darei apenas um exemplo: em 2007, eles compraram uma montanha no Peru, o Monte Toromocho. Ele continha 2 bilhões de toneladas de cobre. Nesta semana, a China inaugura um porto gigantesco a 80 quilômetros de Lima. Eles se preparam para dominar as commodities desde o início do século e agora constroem a Nova Rota da Seda. Se abstrairmos o regime político autoritário, os chineses parecem incluir o planeta em sua estratégia, enquanto os Estados Unidos tendem a se fechar numa política isolacionista.

Tudo isso ainda são impressões iniciais. Teremos ainda um longo caminho, e a imprensa americana será uma espécie de termômetro para medir a experiência renovada de Trump. É uma imprensa que, de modo geral, também apostou em Kamala Harris e vive sob grande pressão da direita. Ela pode ter cometido erros, subestimado a frustração popular, mas ainda é uma indústria que gasta parte do dinheiro apurando e confirmando a veracidade das informações. Por mais que seja atacada, a verdade é que é explorada pelas plataformas eletrônicas, que reproduzem seu trabalho sem remunerá-lo.

As suposições de que é possível informar sem apurar e confirmar, de que há uma liberdade ilimitada e de que realidades paralelas têm o mesmo valor dos fatos verificáveis servem apenas para aumentar a confusão e turvar o debate político.

Assim como na pandemia, abre-se um período em que o papel da imprensa americana será essencial ao lado da ciência, que se defrontará com uma grande onda de negacionismo, das mudanças climáticas à importância das vacinas.

Em síntese, a derrota sempre nos leva à humildade de reconhecer erros, reformular caminhos. Nem sempre os vencedores detêm outra verdade, além da verdade de que são os vencedores.
Fernando Gabeira

'Crise climática não se resolve com mais capitalismo'

A atual fase do capitalismo, em que a busca pelo crescimento constante é baseada na produção e no consumo desenfreado, faz com que o planeta dê sinais de esgotamento, desaguando na atual crise climática, segundo o professor da Universidade de Tóquio e filósofo japonês Kohei Saito.

Autor do livro O Capital no Antropoceno (Boitempo Editorial), que está sendo lançado no Brasil e já vendeu mais de 500 mil unidades pelo mundo, Saito analisa como o filósofo alemão Karl Marx previu a atual crise do meio ambiente e critica algo comum no Brasil: os "verdes" que, segundo ele, tentam instituir práticas sustentáveis ínfimas – como o uso de ecobags – para fugir da realidade climática.

Para o professor, só um novo sistema, pautado pelo decrescimento econômico, com a produção social e a partilha da riqueza como objetivo central, é capaz de reparar os danos causados até aqui.

Ele também critica planos econômicos verdes de países ricos por ver neles um potencial destrutivo para o resto do planeta.

"Especialmente em países como na América Latina, haverá mais extração de minerais, como o lítio. O capitalismo verde trará mais exploração de recursos naturais, mais exploração forçada sob o nome de ESG", enumera, referindo-se ao acrônimo do mundo corporativo que diz respeito à observância de padrões ambientais, sociais e de governança por uma empresa.

"Foi isso que Marx criticou: o perigo do capitalismo. Enquanto o capitalismo continuar, a expansão infinita da economia continuar, haverá sério problemas ecológicos."


No começo do livro, o senhor critica quem usa "ecobags, reduz o consumo de embalagens ou troca o carro a combustão por um elétrico". Por que a crítica?

Essas atitudes simplesmente não são suficientes para realmente mudar a situação da crise climática, que é muito séria. É uma das maiores crises que a humanidade enfrentou na história, e muitas pessoas vão morrer por isso.

Quando você tem uma ecobag ou recicla alguns plásticos, você se sente bem. Acha que fez algo bom para o meio ambiente, é reconfortante, mas o problema é que esse tipo de atitude se tornou uma justificativa para continuar com o que nos trouxe aqui. Empresas produzem alguns produtos ecológicos, usam essa boa imagem, mas isso só é feito para vender mais produtos.

O importante é dizer que estamos, simplesmente, consumindo e produzindo demais. Ninguém fala sobre reduzir o consumo. Acho que não podemos esquecer que o problema é muito maior e, por isso, precisamos repensar esse sistema capitalista, que requer expansão constante da produção e consumo massivo apenas para manter nosso sistema funcionando.

O livro busca fazer uma leitura do nosso tempo e da urgência climática através da obra do alemão Karl Marx. Como Marx via essa crise que se desenha e o capitalismo?

Marx é frequentemente entendido como alguém que critica o capitalismo, principalmente a exploração da classe trabalhadora e a desigualdade do sistema. O problema é que frequentemente os socialistas que o estudam falam apenas sobre como podemos substituir o capitalismo por um sistema no qual essas novas tecnologias e as forças produtivas possam criar uma sociedade melhor, onde todos podem ser como capitalistas, sem exploração, mas com o mesmo padrão de consumo.

Eu acho problemática essa leitura de Marx. Quando passei a estudá-lo, prestei também atenção à ecologia. Problemas ecológicos no capitalismo são óbvios, segundo ele, dado que a tecnologia e qualquer inovação são criadas apenas para gerar mais lucro.

De acordo com Marx, humanos e natureza têm esse tipo de interação metabólica, mas o capitalismo é sempre maior e mais rápido. Por isso nós produzimos e vendemos mais, sem levar em consideração a sustentabilidade dos recursos naturais, fazendo com que essa interação tenha problemas, fazendo com que alguma discrepância apareça. Foi isso que Marx criticou: o perigo do capitalismo. Enquanto o capitalismo continuar, a expansão infinita da economia continuar, haverá sério problemas ecológicos.

O senhor cita o "decrescimento no sistema capitalista" como solução do problema. O que seria isso?

Hoje até os capitalistas estão cientes desse problema, dado que a mudança climática também os afeta. Então, agora, as pessoas falam sobre como descarbonizar a economia, mas também em como manter o capitalismo, porque capitalismo sem crescimento é um desastre.

Nosso atual sistema é baseado na suposição de que a economia crescerá no ano que vem. Então, o que eles fazem agora? Falam sobre investir mais em tecnologia verde, energia renovável, etc. Acreditam que é possível fazer a economia crescer, criar mais empregos investindo nessas novas fábricas, mas também descarbonizar ou reduzir a emissão de carbono ao mesmo tempo.

O problema é que, se tentarmos crescer mais, ainda temos que produzir mais veículos elétricos. E isso significa que também precisamos de mais energia renovável: mais painéis solares, mais turbinas eólicas, mais baterias e assim por diante. Isso também requer mais recursos e energia.

E por que isso é necessariamente ruim?

Precisamos de uma rápida descarbonização nos próximos 20 ou 30 anos. Temos um limite de tempo. Então, se produzirmos mais, isso não é bom. Talvez devêssemos reduzir algumas coisas desnecessárias.

Especialmente em países como na América Latina, haverá mais extração de minerais, como o lítio. O capitalismo verde trará mais exploração de recursos naturais, mais exploração forçada sob o nome de ESG.

É por isso que eu critico o "Green New Deal" americano. Ele é obviamente bom para os trabalhadores nos Estados Unidos, mas ruim para muitas pessoas neste planeta. Não é algo universalizável para que todos possam ser como os americanos. Isso é óbvio. Então eu acho que essa não é uma boa estratégia. Se você realmente se importa com a vida de todos, é necessário imaginar uma política melhor.

E como ficam os países mais pobres?

Não estou defendendo que deveríamos simplesmente permanecer no nível atual de desenvolvimento. Obviamente, os países pobres precisam de mais desenvolvimento. E também acredito que no Brasil há muitos lugares que precisam de mais infraestrutura, como estradas, eletricidade, água e esse tipo de coisa.

Mas mais produção e mais crescimento não resolvem o problema, porque pessoas ricas simplesmente pagarão mais e continuarão com seus iates, jatos, carros, gigantescos, casas e seu consumo excessivo.

Talvez o futuro seja uma sociedade mais igualitária com foco em sustentabilidade e democracia, nos concentrando mais em uma educação satisfatória, assistência médica, transporte público, ar limpo.

Ao final do livro, o senhor cita que 3,5% das pessoas podem fazer a diferença na atual crise. Pode explicar isso melhor?

Geralmente achamos que precisamos de mais de 50% das pessoas envolvidas para mudar algo, mas isso não é necessário. Há um estudo de uma professora de Harvard, chamada Erica Chenoweth, que demonstra que angariar 3,5% é o suficiente, caso elas estejam realmente envolvidas.

Em uma forma pacífica e não violenta, são 3,5% que se levantam para mudar algo. A sociedade mudou e mudará. Então, espero que o aprofundamento das mudanças climáticas, com o aprofundamento da crise do capitalismo, muitas pessoas vejam que nosso sistema atual é irracional, e que 3,5% delas se levantem e busquem alterar essa situação ao invés de simplesmente usarem sua ecobag ou reciclarem algumas garrafas pet.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Telaviv: assim se fabrica a guerra infinita

Israel não deseja a paz. Nunca quis tanto que estivesse errado o que escrevo. Mas as evidências se acumulam. Na verdade, pode-se dizer que Israel nunca desejou a paz – uma paz justa, ou seja, baseada num acordo justo para ambos os lados. É verdade que a saudação rotineira em hebreu é Shalom (paz) – shalom quando alguém se despede e shalom quando alguém chega. E quase todo israelense dirá sempre que deseja a paz, claro que sim. Mas ele não se refere ao tipo de paz que traz justiça, sem a qual não há paz e não haverá paz. Os israelenses desejam paz, não justiça; certamente nada que se baseie em valores universais. Nos últimos dez anos, aliás Israel afastou-se até mesmo da aspiração de construir a paz. Desistiu completamente dela. A paz desapareceu da agenda, seu lugar foi tomado por ansiedades coletivas, fabricadas sistematicamente, e por questões pessoais, privadas, que agora têm prioridade sobre todas as outras.


Os israelenses que ansiavam pela paz aparentemente morreram há cerca de uma década, depois do fracasso da reunião de Camp David em 2000, da disseminação da mentira de que não há um parceiro palestino para a paz e, claro, do terrível período da segunda intifada, encharcado de sangue. Mas a verdade é que, mesmo antes disso, Israel nunca desejou realmente a paz. Nunca, nem por um minuto, Israel tratou os palestinos como seres humanos com direitos iguais. Nunca viu seu sofrimento como um sofrimento humano e nacional compreensíveis.

Também o movimento israelense pela paz – se é que chegou a existir – morreu uma morte lenta, em meio às penosas cenas da segunda intifada e à mentira da falta de parceiros. Tudo o que restou foi um punhado de organizações tão empenhadas quanto ineficazes, face às campanhas de deslegitimação montadas contra elas. Logo, Israel foi deixada em sua postura isolacionista.

A evidência mais esmagadora da rejeição da paz por Israel é, claro, o projeto das colônias de ocupação da Palestina. Desde o início de sua existência, nunca houve um teste mais seguro ou mais preciso para as verdadeiras intenções de Israel do que esse empreendimento particular. Em linguagem clara: os construtores das colônias desejam consolidar a ocupação, e quem deseja consolidar a ocupação não deseja a paz. Esse é o resumo da ópera.

Considerando que as decisões de Israel são racionais, é impossível aceitar que a construção nos territórios e a aspiração pela paz possam coexistir mutuamente. Cada ato de construção em colônias de ocupação, cada casa móvel e cada varanda transmitem rejeição. Se Israel quisesse alcançar a paz através dos Acordos de Oslo, teria ao menos parado, por iniciativa própria, de construir as colônias. O fato de que isso não aconteceu prova que Oslo foi uma fraude, ou, na melhor das hipóteses, a crônica de um fracasso anunciado. Se Israel desejava construir a paz em Taba, em Camp David, em Sharm el-Sheikh, em Washington ou em Jerusalém, seu primeiro passo teria sido acabar com toda ocupação nos territórios. Incondicionalmente. Sem exigir nada em troca. O fato de Israel não tê-lo feito é a prova de que não quer uma paz justa.

Mas as colônias são apenas um dos indicadores das intenções de Israel. Seu isolamento está entranhado bem mais fundo – em seu DNA, sua corrente sanguínea, suas crenças mais primordiais. Lá, no nível mais profundo, está o conceito de que esta terra está destinada apenas aos judeus. Lá, no nível mais profundo, está entrincheirado o valor de “am sgula” — os escolhidos por Deus.

Na prática, isso se traduz na noção de que, nesta terra, os judeus estão autorizados a fazer o que aos outros é proibido. Esse é o ponto de partida, e não há como chegar a uma paz justa a partir daí. Não há nenhuma maneira de alcançar uma paz justa quando o nome do jogo é desumanização dos palestinos. Não há forma de conseguir alcançar a paz quando sua demonização é martelada na cabeça das pessoas dia após dia. Quem está convencido de que cada palestino é um suspeito e quer “jogar os judeus no mar” nunca vai construir a paz com os palestinos. A maioria dos israelenses estão convencidos de ambas as afirmações.

Na década passada, as duas populações foram separadas uma da outra. O jovem israelense médio nunca se encontrará com seu par palestino, a não ser durante seu serviço militar (e, mesmo assim, apenas se servir nos territórios ocupados). Nem o jovem palestino médio encontrará um israelense da sua idade, a não ser o soldado que o hostiliza no checkpoint, ou invade sua casa no meio da noite, ou o colono que usurpa sua terra ou queima seus bosques.

Em consequência, o único encontro entre os dois povos é entre os ocupantes, que são armados e violentos, e os ocupados, que são desesperados e também se voltam para a violência. Foram-se os tempos em que palestinos trabalhavam em Israel e israelenses iam fazer compras na Palestina. Foi-se o período de relações meio-normais e um-quarto-iguais, que existiram por poucas décadas entre dois povos que dividiam o mesmo pedaço de território. É muito fácil, nesse estado de coisas, incitar e inflamar um contra o outro, espalhar medos e instigar novos ódios sobre os já existentes. Essa é, também, uma receita certa de não-paz.

Foi assim que um novo anseio israelense surgiu: o desejo de separação: “Eles ficam lá e nós ficamos aqui (e lá também)”. Num momento em que a maioria dos palestinos – avaliação que me permito fazer, após décadas de cobertura nos territórios – ainda quer coexistência, mesmo que cada vez menos, a maioria dos israelenses quer não-envolvimento e separação, mas sem pagar o preço. A visão de dois estados ganhou adesão generalizada, mas sem qualquer intenção de implementá-la na prática. A maioria dos israelenses é a favor, mas não agora e talvez nem mesmo aqui. Eles foram treinados a acreditar que não há parceiro para a paz – isto é, um parceiro palestino – mas há um parceiro israelense.

Infelizmente, a verdade é quase o oposto. Os palestinos não-parceiros não têm mais nenhuma chance de provar que são parceiros; os não-parceiros israelenses estão convencidos de que são interlocutores. Começou então um processo em que as condições, obstáculos e dificuldades impostas por Telaviv se amontoaram, mais um marco no isolamento israelense. Primeiro, veio a exigência de acabar com o terrorismo; em seguida, a demanda pela troca da liderança (Yasser Arafat visto como uma pedra no caminho); e depois disso o Hamas tornou-se o obstáculo. Agora é a recusa dos palestinos em reconhecer Israel como um Estado judeu. Israel considera legítimo cada passo que dá – de prisões políticas em massa à construção nos territórios –, enquanto todo movimento palestino é considerado “unilateral”.

O único país sem fronteiras do planeta não quis, até aqui, delimitar sequer as fronteiras que estaria pronto a aceitar num acordo. Israel não internalizou o fato de que, para os palestinos, as fronteiras de 1967 são a mãe de todos os acordos, a linha vermelha da justiça (ou justiça relativa). Para os israelenses, elas são “fronteiras suicidas”. Essa é a razão pela qual a preservação do status quo tornou-se o verdadeiro alvo, o objetivo primordial da política de Israel, quase seu tudo ou nada. O problema é que a situação existente não pode durar para sempre. Historicamente, poucas nações aceitaram viver sob ocupação sem resistência. E também a comunidade internacional estará apta, um dia, a proferir um pronunciamento firme, acompanhado de medidas punitivas, sobre este estado de coisas. Segue-se que o objetivo de Israel é irrealista.

Desconectada da realidade, a maioria dos israelenses mantém seu estilo de vida normal. A seus olhos, o mundo está sempre contra eles, e as áreas de ocupação à sua porta estão fora de sua esfera de interesse. Quem ousa criticar a política de ocupação é rotulado de anti-semita, cada ato de resistência é percebido como uma ameaça existencial. Toda a oposição internacional à ocupação é lida como “deslegitimização” de Israel e como um desafio para a própria existência do país. Os sete bilhões de pessoas do mundo – a maioria das quais contra a ocupação – estão erradas, e seis milhões de judeus israelenses – a maioria dos quais apóia a ocupação – estão certos. Essa é a realidade na visão do israelense médio.

Some a isso a repressão, a ocultação e a dissimulação, e você tem uma outra justificativa para o isolamento. Por que alguém deveria lutar pela paz, desde que a vida em Israel seja boa, a calma prevaleça e a realidade se mantenha oculta? A única maneira de a Faixa de Gaza, sitiada, lembrar as pessoas de sua existência é atirando foguetes, e, atualmente, a Cisjordânia só entra na agenda quando há sangue derramado por lá. Da mesma forma, o ponto de vista da comunidade internacional só é levado em conta quando tenta impor boicotes e sanções, que por sua vez geram imediatamente campanhas de autovitimização cravejadas de contundentes – e, às vezes, também impertinentes – acusações históricas.

Este é, pois, o quadro sombrio. Não contém um raio de esperança. A mudança não vai acontecer por si mesma, a partir do interior da sociedade israelense, caso continue a se comportar como se comporta. Os palestinos cometeram mais do que um erro, mas seus erros são marginais. A justiça de base está do seu lado, e o isolamento de base é o limite dos israelenses. Eles querem ocupação, não paz.

Tenho a esperança de estar errado.

Verdades inconvenientes


Os democratas podem se confortar pensando que os freios e contrapesos da América são fortes, e que Trump está destinado a fracassar, mas isso seria um erro. Existem duas Américas agora, e muito pouco as conecta

Alon Pinkas 

Autocracia S.A

Anne Applebaum é uma consagrada jornalista (ex-editora das revistas The economist e The Spectator ) escritora (prêmio Pulitzer, em 2003, com a obra Gulag – Uma história dos campos de prisioneiros soviéticos ) que consolidou seu prestígio internacional como historiadora e uma destacada pensadora sobre o fenômeno do autoritarismo que tem ampliado seus domínios ao longo da história política contemporânea.

Em 1988, como correspondente internacional, na Polônia (onde veio a casar, em 1992, com Radoslaw Sikorski, Ministro das Relações Exteriores da Polônia, ex-membro do Parlamento Europeu) vivenciou, de perto, os estertores da guerra fria, o colapso da União Soviética o que lhe conferiu experiência profissional com visão privilegiada sobre ascensão e declínio das democracias ocidentais bem como a crescente onda do populismo autoritário que vem ampliando espaços na geopolítica global.

Sua aguda percepção, rechaça, de plano, visões simplistas e conclusões apressadas, salientando que não há nações condenadas a viver sob uma ordem autoritária, tampouco existem garantias irremovíveis para a existência dos sistemas democráticos. Vai além ao afirmar que, atualmente não existe um campo democrático e um campo autoritário: “São vários tons de cinza. Há muitos países no meio e, há muitas práticas autocráticas dentro das democracias. Há, também, países que são, nominalmente, parte do mundo democrático, mas se alinham, cada vez mais, às autocracias tentando importar seus métodos […] cujo exemplo mais famoso é Viktor Orban que é membro da União Europeia e da Otan e, mesmo assim, está abertamente alinhado com a Rússia em sua política externa” (Entrevista na Folha de São Paulo, Edição de 04/11/24).


No livro O Crepúsculo da Democracia, o subtítulo oferece ao leitor mensagem central do autoritarismo: seduz e, ao mesmo tempo, desfaz os laços de amizade em nome da política. O ponto de partida é o relato de uma prosaica festa de confraternização na passagem do século de uma centena de amigos e companheiros que, progressivamente, se deram às costas diante da possibilidade de divergir. Em duas décadas, o contágio do ódio eliminou a possibilidade do pluralismo das ideias, ensejando a relação conflituosa amigo/inimigo. A autora sentiu na própria pele, por conta da origem judia, as chibatadas do antissemitismo.

Em seis capítulos, respaldada em fatos e nas lições da história, Applebaum ao tempo que alerta para a escalada do populismo e autoritarismo no mundo, não subestima a força do movimento e aponta para as fragilidades das democracias, incapazes de superar e vencer o descontentamento, a insatisfação das pessoas com os rumos da vida moderna, as dramáticas mudanças sociais, demográficas e tecnológicas que alimentam o apelo salvador dos líderes autocráticos.

Como resultado da experiência profissional, estudos e reflexões sobre o fenômeno do autoritarismo, a Anne Applebaum identifica um novo modelo de organização das forças que têm por inimigo comum a democracia ocidental: a Autocracia S.A.

Superado como regra, o argumento da força deu lugar às formas mais sutis de destruição das instituições democráticas e ao contrário das alianças militares ou policiais de outras épocas e lugares, assinala a autora: “esse grupo opera não como um bloco, mas como um aglomerado de empresas unidas não pela ideologia, mas pela brutal e obstinada determinação de preservar sua riqueza e seu poder. É isso que chamo de Autocracia S.A.”

Acrescenta: “Em vez de ideias, os tiranos que lideram a Rússia, China, Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Nicarágua, Angola, Mianmar, Cuba, Síria, Zimbábue, Mali, Bielorússia, Sudão, Azerbaijão, e talvez outras três dezenas de países compartilham a determinação de privar seus cidadãos de qualquer influência ou voz pública reais, de resistir a todas as formas de transparência ou prestação de contas e de reprimir qualquer um, no âmbito, doméstico e internacional que os desafie”.

O modus operandi da organização oferece aos seus membros poder, dinheiro e “algo menos tangível: a impunidade”. A rigor, esta rede ampla e diversificada, sob as bênçãos da Rússia putinista celebrou uma terrível aliança com o moderno casamento da cleptocracia com a ditadura que protege as tenebrosas transações no universo paralelo do circuito dos crimes financeiros. Todos os déspotas dos diversos continentes são corruptos, bilionários e solidários na luta contra os valores das sociedades abertas e democráticas.

De fato, a sólida e minuciosa narrativa se estende por cinco densos capítulos e revela uma realidade assustadora. A ambição dos ditadores é dominar o mundo. Na entrevista dada à Folha um dia antes da eleição de Trump, a autora não fez previsão. Talvez, pressentira a derrota.

E quando indagada quanto às formas de lutar pela democracia, enfatizou o ativismo democrático da cidadania e, no epílogo do livro, “Democratas Associados”, conclui com uma convocação: “Elas (as democracias) podem ser destruídas a partir de fora para dentro, por divisões e demagogos. Ou podem ser salvas. Mas somente se aqueles que vivem nelas estiverem dispostos a fazer o esforço de salvá-las” .

EUA sob Trump serão animal perigoso

Estonteado desde a derrota de 5 de novembro, o Partido Democrata americano nem sequer teve tempo de lamber as feridas pela perda tríplice da Casa Branca, da maioria no Senado e da maioria na Câmara. A cada dia Donald Trump oblitera um pouco mais os vestígios restantes da infeliz candidatura de Kamala Harris. O tratamento de choque é ardilosamente calibrado. Todo dia o ex e futuro presidente anuncia novo indicado para compor o primeiro escalão de seu governo.

A lista inicial é puro-sangue, de lealdade irrestrita e obrigatória ao chefe. De resto, os indicados são ecléticos, e pessoas minimamente sensatas fariam bem em deles manter distância. A seguir, algumas pinceladas, começando pelo mais polêmico e insustentável dentre eles — Matt Gaetz, designado por Trump para procurador-geral/ministro da Justiça dos Estados Unidos.

— Equivale a nomear um serial killer para o cargo de cirurgião-geral [responsável pela saúde pública do país] — escreveu a jornalista Bess Levin na Vanity Fair.


Gaetz, de 42 anos, queixo e cabeleira kennedyanos, mas olhar de Jack Nicholson em “O iluminado”, pouco exerceu a advocacia antes de se tornar deputado federal pela Flórida. Na quarta-feira, renunciou abruptamente ao mandato, antecipando-se à divulgação de um dossiê “altamente comprometedor” pelo Comitê de Ética da Câmara, que há três anos o investiga por tráfico sexual e uso de drogas. Ao renunciar, Gaetz conseguiu abortar a jurisdição da comissão parlamentar, mas dificilmente evitará que o relatório venha a púbico. Até porque o escolhido de Trump também já foi acusado de promover um campeonato de sexo entre legisladores — vencia quem mantinha o maior número de relações com estagiárias, virgens e universitárias. Gaetz talvez seja o único com chances mínimas de sobreviver à sabatina no Senado — mesmo um Senado de maioria republicana.

A republicana Kristi Noem governa o estado de Dakota do Sul há cinco anos. Foi pinçada por Trump para chefiar o pantagruélico Departamento de Segurança Interna, composto por 22 agências federais, com a missão de “executar uma das operações de deportação mais maciças da história americana”. Sua biografia pouco tem de notável, exceto por um episódio que narra em seu livro de memórias, “No Going Back...” (Sem volta): como e por que ela levou Cricket, o filhote de 14 meses da família, até uma pedreira e ali o executou com um tiro à queima-roupa. O pointer era desobediente, não aprendia a caçar. Odiava-o, explicou. (Também contou ter matado uma cabra pelo mesmo método.) Trump, que notoriamente também detesta caninos, gostou do episódio.

A indicação de Mike Huckabee para a embaixada americana em Jerusalém é o que se poderia chamar de encontro de almas. Ele governou o estado do Arkansas por quase uma década, é ministro da Igreja Batista, milita no sionismo cristão, tentou por duas vezes ser o candidato republicano à Casa Branca. Huckabee não chegou nem perto, mas fez história ao afirmar que “na verdade, não existe o que chamam de palestino” e “tampouco existe a Cisjordânia — o que existe é Judeia e Samaria”. Aos assentamentos ilegais de israelenses na Cisjordânia Ocupada ele dá o nome de “comunidades”. Cessar-fogo em Gaza? Nem pensar. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, deve estar contando os dias para a chegada do novo embaixador.

Entre os que dependem de confirmação pelo Senado também está Robert Kennedy Jr., um fio desencapado na política que seduziu Trump não apenas pelo sobrenome da cultuada dinastia. Negacionista feroz da eficácia das vacinas, promotor de inúmeras teorias da conspiração e adversário combativo dos alimentos ultraprocessados, Kennedy é um poço de esquisitices. Mais de uma década atrás, ao perceber uma aguda perda de memória somada a outros efeitos de cognição, submeteu-se a uma bateria de exames de imagens que apontavam para um tumor cerebral. Às vésperas de ser submetido à cirurgia, conta o New York Times, percebeu-se que o cisto em questão era um parasita que havia conseguido penetrar no seu cérebro, dele se alimentado e morrido. O raro fenômeno atende pelo nome de neurocisticercose.

Kennedy também já foi diagnosticado com envenenamento por mercúrio, fibrilação atrial e sofre de disfonia espasmódica nas cordas vocais, o que torna a sua fala um tanto agoniada e rouca. Sem falar numa doentia, e autodeclarada, compulsão por sexo. Trump não apenas o quer na chefia do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, como quer que dê vazão a suas ideias mais extravagantes.

Há os que não dependem de confirmação pelo Senado, como a dupla de bilionários desiguais — Elon Musk, cuja fortuna beira os US$ 309 bilhões, e Vivek Ramaswamy, com seu mísero US$ 1 bilhão — elencados para codirigir um fantasioso Departamento de Eficiência do Governo. Como primeiras ideias da dupla, a eliminação do Departamento de Educação, da Receita Federal e do FBI. Deles falaremos noutra ocasião.

Por ora, ficamos com uma frase do escritor Ben Tarnoff para a New York Review of Books:

— Um império em decadência é um animal perigoso.

sábado, 16 de novembro de 2024

Pensamento do Dia


 

A América impacta o mundo

O mundo abre os olhos na direção do horizonte e tenta enxergar as retas e curvas do caminho. Quer ver se consegue descobrir o quê e o porquê os nossos irmãos do Norte, que habitam a maior potência econômica e militar do planeta, escolheram para liderá-los um empresário da área do entretenimento, conhecido por sua expressão misógina e machista, dando a ele um superpoder, eis que seu retorno ao assento no Salão Oval da Casa Branca pode ser considerado o mais retumbante da história norte-americana.

O impacto da vitória de Donald Trump abre expectativas no centro e nos fundões do planeta. Perguntas que emergem: conseguirá ele abrir uma “era de ouro” na terra americana, como anunciou em seu discurso de vitória? A promessa bate no sistema cognitivo da população como a implantação de uma Shangri-la, o paraíso tão sonhado pelos mortais. Conseguirá ele fechar as fronteiras do país, e fazer voltar para seus países milhões de imigrantes que buscaram realizar seus sonhos na terra de Abraham Lincoln? Conseguirá ele agradar seus eleitores com uma economia sem inflação e lhes garantindo um sólido poder de compra? Enfim, conseguirá Trump proporcionar aos eleitores o tão almejado conforto e bem-estar?

Este escriba tem lá suas dúvidas. Puxo um fio da história. Há 193 anos, em abril de 1831, Alexis de Tocqueville e seu amigo Gustavo Beaumont embarcaram no Havre (França) com destino à Nação do norte. Os dois jovens magistrados se investiam de uma missão: conhecer e examinar a solidez das instituições penitenciárias. Cumpriram a tarefa. Tocqueville produziu o clássico A Democracia na América, onde pontuava sobre o que viu na jovem Nação: “Existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde o homem nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna”.

Entremos nos dias de hoje. Espraia-se por todos os lados o desencanto. A desesperança. O país que elegeu, neste 5 de novembro, seu presidente, está coberto por uma camada de ódio, violência e medo. Pergunta-se: que amor à Pátria pode existir em espíritos tomados pelo pavor, pela violência de tiros a esmo (um quase matando o próprio candidato Trump)? Qual o motivo da vitória de alguém que expressa posições misóginas, racistas, disposto a expulsar do território milhões de imigrantes? Que espírito público é este da população, quando a conflituosidade se expande no seio da maior democracia mundial?

O sonho americano é uma utopia. Ontem, ouvíamos o lamento de Simón Bolívar, o grande timoneiro, ao retratar a sofrida América Latina: “Não há boa fé na América, nem entre os homens nem entre as nações; os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento. A única coisa que se pode fazer na América é emigrar”.

Hoje, vemos a ameaça de uma espada sobre a cabeça daqueles que se abrigaram na “terra dos sonhos”. Emigrar foi a opção de massas carentes de regiões do planeta que escolheram a grande Nação para viver. Muitos pensam em retornar à antiga casa sob medo de o braço de um comandante que transpira vingança cair sobre suas cabeças.

Afinal, o que explica a eleição do tempestuoso dono do império Trump?

A resposta aponta para um mundo em conflito. O planeta vive uma era de dissonâncias. Guerras explodem em regiões. Os povos olham para os céus e não encontram faróis. As multidões continuam a querer se embalar com os sonhos de outrora. O gosto suave de passear pelas ruas, andar à noite, conversar com os vizinhos, buscar o calor da convivência, reforçando os vínculos de solidariedade, destruídos pela explosão populacional das grandes e médias cidades e pela deterioração da infraestrutura de serviços. A violência irrompe nos centros maiores e menores, empurrada pelo fluxo centrífugo de bandos incontroláveis que governos não conseguem deter.

As desigualdades afloram com força. Os ricos ficam mais ricos. Os pobres, mais pobres. As doenças se tornam pandêmicas. E assim, a chama telúrica se apaga sob o violento sopro da expansão desordenada das margens sociais. Os governos se tornam entes ineficientes. O blablablá se expande. Nuvens plúmbeas tornam sombrios os horizontes. Novos e imensos grotões de miséria se abrem. Tristes tempos.

A cosmética das ruas ganha enfeites esquisitos. A imagem mais parece a de um jogo de futebol, disputado com a melhor bola da Fifa e os uniformes mais bonitos. Mas o campo é esburacado. Até os jogadores exibem sua “moderna” estética em cabeças trabalhadas por tesouras que fazem veredas no cabelo. As pinturas chamam a atenção. Um colorido extravagante comprova que os jogos de futebol passaram a ser desfiles mambembes de cabeças ocupadas por nova arte da tesoura, e onde tronco e membros são tomados por berrantes tatuagens. Frases de poesia bicuda e demônios desenhados é o que não faltam. Tudo parece um festival de assombração.

Nas prateleiras do poder, chegam reclamações sobre a eficiência dos serviços públicos, tocados por burocracias lentas e paquidérmicas, quadros funcionais ineptos e desmotivados. Explodem denúncias sobre negligências, malhas de corrupção. A realidade é amarga.

Moradores de cidade fronteiriça libanesa estão 'determinados a ficar'

Desde o início da guerra Israel-Hezbollah, centenas de milhares de libaneses fugiram de suas casas por causa da luta. Mas os moradores de uma cidade bem na zona de combate decidiram ficar.

Rmeish, a apenas 2 km da fronteira, abriga 7.000 cristãos maronitas e está cercada por tiros por todos os lados.


“Há muitos danos. Talvez 90% das casas tenham algum tipo de dano, vidros quebrados e rachaduras nas paredes. Não sei o que vai acontecer quando o inverno chegar”, diz Jiries al-Alam, um fazendeiro que também trabalha como agente funerário na igreja da cidade.

“Estamos determinados a ficar, mas quase ninguém dorme à noite por causa dos ataques aéreos. Felizmente, não houve mortes entre os moradores até agora, mas 200 do meu gado morreram por causa dos sinalizadores militares”, ele acrescenta.

Um dia após o Hamas lançar seu ataque sem precedentes ao sul de Israel a partir de Gaza em 7 de outubro de 2023, seu aliado libanês Hezbollah começou a lançar foguetes ao norte de Israel, que por sua vez, começaram a atingir o Líbano.

Os moradores de Rmeish começaram a ver foguetes voando em ambas as direções acima deles.

“Muitas famílias ergueram bandeiras brancas em suas casas e carros para dizer que estão em paz e não têm nenhuma ligação com o que está acontecendo”, diz o padre George al-Ameel, 44, padre e professor da cidade.

“Queremos ficar em nossas casas e não queremos nenhuma guerra em nossa cidade.”

Depois que Israel iniciou sua invasão terrestre ao Líbano em 1º de outubro deste ano, a guerra se aproximou de Rmeish, com combates intensos ocorrendo em duas aldeias, ambas a menos de 1,6 km de distância.

“Ficamos em casa por meses, então os ataques aéreos começaram a chegar muito perto e, de repente, nossa casa foi atingida, fomos forçados a sair no meio da noite”, diz Rasha Makhbour, 38.

“O trabalho das pessoas parou e ninguém sai, a escola dos nossos filhos está fechada, tudo mudou.”

A família de seis pessoas de Rasha mudou-se para outra casa no centro da cidade depois que a deles ficou inabitável.

“Acreditamos que os foguetes que atingiram nossa casa vieram do sul, não do nosso país”, diz ela.

As Forças de Defesa de Israel disseram à BBC que não houve "nenhum ataque conhecido das IDF" em Rmeish durante as datas em que a casa de Rasha Makhbour foi danificada, alegando que foi um "lançamento fracassado do Hezbollah".

Israel emitiu uma ordem geral de evacuação para o sul do Líbano desde que sua invasão terrestre começou. A ONU diz que mais de 640.000 pessoas foram deslocadas de lá enquanto fugiam dos combates.

O governo israelense diz que seus objetivos militares no sul do Líbano são repelir o Hezbollah e devolver 60.000 israelenses deslocados de suas cidades fronteiriças ao norte para suas casas.

Na fronteira com Israel, Rmeish é a única cidade libanesa que não recebeu ordens diretas de sair.

Embora nenhum dos lados tenha ameaçado diretamente os moradores de Rmeish durante o conflito, sua lealdade ao Líbano foi questionada.

“Houve vozes por baixo da mesa espalhando rumores de que nossa presença aqui é evidência de nossa colaboração com Israel, o inimigo. Rejeitamos isso completamente”, diz o Padre al-Ameel.

É uma mensagem reiterada pelo prefeito de Rmeish, Milad al-Alam.

“Não tivemos garantias de segurança de nenhum lado”, ele diz. “Nossa cidade é pacífica, e nossa única causa é ficar por nossa identidade e nosso país.”
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Até o início da invasão terrestre de Israel, uma unidade do exército libanês permaneceu em Rmeish e ajudou a organizar o movimento para dentro e para fora da cidade. Mas, conforme as forças israelenses se moviam para cruzar a fronteira, o exército libanês – que não está diretamente envolvido na guerra – decidiu se retirar de Rmeish, para grande aflição dos moradores locais.

O exército libanês disse que rejeitou a descrição de que eles "se retiraram" de locais de fronteira, referindo a BBC a uma declaração de que o exército está "reposicionando" uma série de unidades militares no sul.

Então, no final de outubro, a rota principal para fora de Rmeish foi atingida – deixando os moradores se sentindo ainda mais isolados e vulneráveis. Desde então, apenas um comboio de ajuda chegou à cidade com a coordenação das forças de manutenção da paz da ONU, disse a missão da Unifil.

“Temos necessidades de combustível, alimentos e medicamentos, havia uma entrega vinda de Tiro que teve que retornar”, diz o Padre al-Ameel. “Se alguém se machuca, não há hospital para cuidados médicos sérios.”

O prefeito Al-Alam nos disse que está otimista de que a rota para fora da cidade estará disponível novamente em breve, para que eles possam abastecer suas reservas de combustível, mesmo que a rota através de uma zona de guerra ativa seja perigosa.

Outros na cidade continuam ansiosos.

“A situação está realmente ruim. Não há mercadorias, comida ou combustível chegando. Estamos começando a ver itens sumindo das prateleiras”, diz Jiries al-Alam, o agente funerário da cidade.

“Mas encontraremos um jeito. Agora é a temporada das azeitonas e, no pior dos casos, podemos simplesmente comer azeitonas. Queremos ficar em nossas casas e, portanto, morreremos em nossas casas se for preciso.”

A mídia e os escândalos políticos

Em 2002, é traduzido no Brasil O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia, de John B. Thompson (Vozes). Não se trata de um ataque gratuito aos que comercializam os escândalos, mas do estudo sobre um fenômeno influente nas disputas que emergem no século XXI. A tecnologia comunicacional para informar, desinformar ou omitir vem de longe. Roberto Marinho elegeu o “Caçador de marajás”, depois o apeou da Presidência. As redes cibernéticas não inventam a roda.

O professor de Cambridge foca três escândalos: “abuso de poder” (Richard Nixon/Watergate); “político-financeiro” (Parlamento Europeu/ Catar); politicossexual (Bill Clinton/ Mônica Lewinski). No Brasil, apelos aos quartéis ignoram violações dos direitos humanos jogadas debaixo do tapete (Vladimir Herzog/ Tortura). Ocorrências sofrem de espancamentos e choques elétricos no pau-de-arara para proteger as Forças Armadas. Os desaparecidos aguardam ainda agora, pela justiça.

O ruim fica pior com as fake news para enxovalhar a imagem dos adversários, o que envolve um conluio da mídia com o judiciário. A situação evoca o compromisso para, com novos mecanismos, corrigir os desvios de agentes públicos. A encenação serve de palco aos palhaços sociopatas sem noção republicana tipo o italiano Silvio Berlusconi, o brasileiro Jair Bolsonaro e o argentino Javier Milei. O circo é cosmopolita. A reprodução dos escarcéus sobrevive à demagogia institucional, que propaga a antipolítica, o livre mercado e criminaliza a esquerda — bode expiatório do desconforto.


A máquina de triturar do lawfare aciona episódios fictícios. As denúncias forjadas desmontam as empresas nacionais de engenharia, a indústria naval, o pré-sal, a Petrobras. A solapa dos vira-latas obedece a ditames estrangeiros. O livro Lava Jato: O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, de Vladimir Netto, elogia o homem sem qualidades ungido herói pela Rede Globo. Difícil saber onde termina a ausência de reflexão crítica da imprensa corporativa, e onde começa o cinismo de quem engana sem a discrição dos hipócritas, permitindo que a impostura seja flagrada pelos observadores. No teatro de falsidades, a verdade desce o ralo; ratazanas vêm à tona.

A mídia não é a democracia, senão o espetáculo no ato de produzir sentido. Para tal: (a) substitui o uso da razão “pela expressão em público de sentimentos”; (b) substitui o direito de cada um e todos de expressar um parecer pelo “formador de opinião”. Em Simulacro e poder: uma análise da mídia, Marilena Chaui insere a pantomima na “destruição da esfera da opinião pública”.

Nas enchentes do Rio Grande do Sul, os repórteres perguntam aos moradores o que sentem diante das inundações, ao invés de indagar o que pensam sobre a vergonhosa inoperância da Prefeitura. O desastre reduz-se a uma fatalidade doméstica, sem encadear as incúrias governamentais. A manobra blinda o prefeito do “kit-covid” de cloroquina e ivermectina distribuído durante a pandemia, na triste capital gaúcha.

Escândalos abalam o poder e, às vezes, geram flagelos pessoais; vide o destino do “pai dos pobres” Getúlio Vargas e do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier — um inocente acusado por “convicções” sem PowerPoint. Não que os erros desconstruam a confiabilidade sistêmica, em si. O Congresso está repleto de aventureiros que surfam em campanhas caluniosas e difamatórias. Vale tudo no pé de goiabeira de emendas parlamentares em causa própria, ilustrativas da grave crise de dedicação à res publica por amor à filosofia da avareza, que ergue o deus-dinheiro no altar do hiperindividualismo.

A missão do jornalismo de fiscalizar os governos, revelar as falhas e erradicar os males — em nome do interesse público — é subvertida. Há desrespeito ao ethos da profissão inspirada nos princípios iluministas, com a nobre incumbência de diagnosticar as enfermidades sociais. No oligopólio das comunicações, a dita independência dos jornalistas é canibalizada pela alta hierarquia. Mentiras, a soldo, são ecoadas por paladinos da moral e costumes para esconder a responsabilidade das “elites”.

Já as mudanças nas relações trabalhistas levam à busca por sustentação nas urnas, além das antigas classes sociais. Com divisões ideológicas atenuadas, progressistas compõem com outros segmentos para vencer as eleições, e potencializam as manchetes negativas fruto de alianças não programáticas com parcerias dúbias. Haja equilíbrio na balança das práticas, desejos, expectativas e resultados.

John B. Thompson aborda eventos do hemisfério Norte, ao esmiuçar a tríade dos escândalos. Entre nós, o desafio está em desbravar acontecimentos acobertados pelo silêncio da mídia. Seguem cases que travam “lutas pelo poder simbólico, em que a reputação e a confiança estão em jogo”, na dura realidade. São metáforas de reatualização da dialética colonialista para a dominação/subordinação.

(i) Escândalo politicossexual (e racista). O Projeto de Lei (PL 1.904/2024) proíbe o aborto após a 22ª. semana, inclusive por estupro, e estipula às transgressoras uma pena de homicídio superior ao previsto na legislação para estupradores. A mobilização de diversos grupos feministas nas principais metrópoles impede a tramitação na Câmara Federal. A mídia enfatiza o nonsense da penalidade e confina o assunto à dosimetria. Não investiga os partidos e os políticos com mandato que cometem a violência sexista (e racialista). A lei atinge as meninas pretas e pobres de 8 a 12 anos, as grandes vítimas nas estatísticas ao longo do tempo. A bandeira do direito natural da mulher ao corpo não é hasteada. E o medievalismo bolsonarista sai incólume do golpe contra os valores da modernidade.

(ii) Escândalo político-financeiro. O crime de lesa-pátria da Taxa Selic do Banco Central retira do Erário R$ 816,2 bilhões, em 2023. Para comparar, o orçamento do Ministério da Saúde é R$ 231 bilhões; da Educação, R$ 180 bilhões. Alvo de acusações por investimentos em offshores em conflito com a função, o presidente do Bacen obtém dividendos pessoais com os juros elevados. Estes incentivam a desindustrialização e o modelo neocolonial-exportador, que incendeia biomas e florestas. A política monetária em curso inibe o crescimento da nação com geração de empregos e distribuição de renda. Os rentistas e os extrativistas agradecem a gentileza, com os bolsos cheios. E o neoliberalismo bolsonarista sai imune do golpe contra os valores do Estado de bem-estar social.

(iii) Escândalo de abuso de poder. No desgoverno, a criação na Associação Brasileira de Inteligência de uma “ABIN paralela” visa um órgão de vigilância típico dos regimes de exceção. À revelia do processo legal, a invasão de privacidade alcança trinta mil cidadãos; sequer são poupados os amigos da famiglia miliciana. Ao contrário do famoso triplex que não era do Lula, a conspiração direitista não recebe atenção no noticiário. Ninguém é preso. Passa-se pano na articulação terrorista entre o fascismo sociopolítico, o laissez-faire econômico e o conservadorismo cultural. E o totalitarismo bolsonarista sai ileso do golpe contra os valores civilizatórios do Estado de direito democrático.

“O mistério das coisas, onde está ele?/ Onde está ele que não aparece/ Pelo menos para mostrar que é mistério?”, lê-se no poema de um heterônimo de Fernando Pessoa. Os escândalos proibidos movem o moinho do populismo extremista, na exata medida em que a ideologia empreendedorista individual apaga a dimensão do público, no imaginário social. A utopia pode e deve ser antecipada com a desconstituição das ilusões atomizadas em templos neopentecostais ou apostas digitais em BETs. Só a participação e a cooperação formam os sujeitos transformadores da ordem estabelecida.

Norberto Bobbio, autoproclamado “liberal-socialista”, considera a mídia uma ameaça à democracia por pasteurizar as consciências e manietar o juízo autônomo dos indivíduos. A circunstância possui um agravante no abandono de áreas essenciais: água, luz, saneamento, transporte. A privatização converte direitos em mercadorias acessíveis apenas para quem paga. Sebastião Melo (MDB-RS) e Ricardo Nunes (MDB-SP) sequestram os equipamentos públicos para prestação de serviços; nem parques escapam da fúria privatista. Terceirizam as obrigações funcionais e também o que não lhes pertence, como fazem os gestores sem competência para administrar. Melhor devolvê-los aos seus donos, trocá-los pelo Orçamento Participativo (OP). Sem medo de ser feliz. Com gana de vencer.

O que fazer enquanto tudo arde?

O Brasil arde. Portugal também. Em ambos os casos existem mãos criminosas por detrás de muitos destes incêndios. Há sempre canalhas dispostos a lucrar com a desgraça de todos. Por outro lado, a situação de emergência climática em que vivemos facilita a propagação dos fogos.

— É a natureza! — afirmam alguns.

Mas não, não é a natureza. O aquecimento global resulta da ação humana. As mãos criminosas que ateiam incêndios são as mesmas que derrubam florestas, que exploram os recursos até a exaustão, que desregulam a natureza. São as estúpidas mãos da ganância.

Enquanto o Brasil arde, a Europa central, a Ásia e o norte de África enfrentam chuvas torrenciais. No Sudão do Sul quase um milhão de pessoas foram forçadas a abandonar as suas terras, talvez para sempre, pois algumas áreas ficarão submersas por longos anos.


Nenhum lugar do planeta está a salvo. Todos sabemos que a partir de agora cada inverno será mais invernal e cada verão mais infernal. Pior: os dias de inverno podem irromper a qualquer momento, inclusive no pino do verão, e vice-versa.

As diferentes sociedades humanas aprenderam a harmonizar-se com os ciclos da natureza. Nem poderia ser de outra forma. Todas as formas de vida se desenvolveram no rigoroso respeito por esses ciclos.

O caos climático foi criado por nós. Ou conseguimos revertê-lo, ou teremos de nos adaptar. Reverter o aquecimento global será muito difícil, mas podemos pelo menos procurar abrandá-lo enquanto nos adaptamos. O que não pudemos é ignorar o desastre, insistindo na tese de que não passa de um fenômeno natural.

Povos cujas línguas não produziram uma única palavra para exprimir a ideia de tufão ou furacão, agora enfrentam vários todos os anos. Terras que foram sempre férteis e bem irrigadas estão hoje inertes e ressequidas. Florestas que se formaram há centenas de milhares de anos acham-se ameaçadas.

O negacionismo climático não é uma simples e inofensiva divergência política e filosófica; uma teimosia de pessoas desinformadas; um disparate risível, como o terraplanismo. Não: vejo-o como um ato de sabotagem. O negacionista conspira contra o esforço coletivo para enfrentar o apocalipse ambiental.

Comprei e estou reformando um casarão do século XVIII, que une, de forma harmoniosa, a arquitetura tradicional swahili, árabe e portuguesa (terraços magníficos, sustentados por grossas traves de madeira, imensas cisternas, frescos pátios interiores). São assim os edifícios da Ilha de Moçambique, reconhecidos pela Unesco como Patrimônio Mundial. O desafio consiste em respeitar a arquitetura tradicional, e os seus saberes, ao mesmo tempo que deixamos o casarão preparado para resistir a ventos ciclônicos e a chuvas diluvianas.

Contudo, de pouco me servirá preparar o casarão para enfrentar ciclones se o aquecimento global não for interrompido, levando a uma enorme subida do nível do mar. Nesse caso, toda a ilha acabará submersa.

É neste ponto que estamos. Ou nos unimos todos, ou naufragamos todos. Não pode haver tolerância para quem coloca os seus interesses efêmeros acima dos interesses da Humanidade.

A flor e a náusea


Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade, "A Rosa do Povo"

Faz sentido cancelar o X?

Na sequência da vitória de Trump e da influência de Elon Musk na campanha eleitoral e agora na Administração, o The Guardian tomou uma decisão drástica: o jornal britânico abandonou a plataforma X (o antigo Twitter, redenominado desde que Musk passou a ser proprietário da rede). De acordo com o jornal, o X transformou-se numa rede tóxica, promotora de conteúdos racistas e de teorias da conspiração, e o seu proprietário tem utilizado a plataforma para formatar o discurso político. O The Guardian reconhece que as redes sociais são importantes para os meios de comunicação, enquanto tornam possível alcançar novas audiências. No entanto, neste momento a direção editorial considera preferível que os leitores se dirijam diretamente ao site do jornal, onde o jornalismo está disponível para todos.

O The Guardian é o caso mais significativo de uma tendência que se tem feito sentir nos últimos tempos. Desde que Musk adquiriu o X, os utilizadores têm diminuído – nos EUA, a queda é da ordem dos 30% – e só no dia seguinte às eleições norte-americanas, 280 mil pessoas abandonaram a plataforma. Os resultados financeiros também estão longe de ser famosos: pese embora a obscuridade das contas da empresa, o valor do X terá caído 75% nos últimos dois anos. O que pouco importará a Musk, beneficiário de contratos de milhares de milhões com o Estado norte-americano e agora transformado num gigantesco conflito de interesses ambulantes.

Existem de fato boas razões para abandonar o X, hoje uma miragem do que foi o Twitter. Há cerca de 15 anos, quando abri a minha conta, a informação chegava mais cedo no Twitter, com opiniões livres e com ângulos mais provocadores e interessantes do que os dos media tradicionais. A combinação de agilidade com liberdade tornou a plataforma influente e contrastante com a tendência da comunicação social para arrastar os pés.

O tempo encarregou-se de revelar, desta feita no Twitter, quão insólita é a ideia de que a liberdade medra sem freios. Como a história demonstra, a liberdade consolidou-se com instituições de intermediação e formas de regulação. Por isso, a comunicação social tem critérios editoriais e obrigações deontológicas e as leis limitam o que pode ser dito e escrito. Hoje, o X é um espaço aberto aos trolls, à insídia e raramente se vislumbra qualquer debate produtivo. Mais, o algoritmo empurra-nos de forma imparável para conteúdos violentos, notícias falsas e revela um evidente enviesamento político, distante do espírito liberal fundador.

Foi este o contexto que levou o The Guardian a abandonar a plataforma. O que só acontece porque, com mais de um milhão de assinantes, provenientes de 180 países, o jornal britânico é um media global, com músculo financeiro para fazer esta escolha. Em parte, o The Guardian sai do X, porque pode gerir os custos de uma saída. Dificilmente um meio de comunicação social de base nacional poderia abdicar desta fonte de tráfego.

Mas quais seriam as consequências, se outras vozes acompanhassem o The Guardian no cancelamento do X? O resultado agregado seria mais um passo rumo ao acantonamento, ao fechamento face a outras visões do mundo e ao fim de um espaço comum de informação, mesmo que o debate seja hoje praticamente inexistente. O X pode ter-se transformado numa rede social bem menos recomendável, mas cancelar a plataforma corresponderia a uma entrega de território e a mais uma capitulação das vozes progressistas, que abdicariam de estarem presentes nas redes sociais com influência e impacto real.
Pedro Adão e Silva