domingo, 30 de março de 2025
A verdade dividida
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos Plausíveis"
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos Plausíveis"
A abominação é mútua
É muito raro que alguém de quem não gostamos nada goste um bocadinho de nós. Geralmente, as pessoas gostam tanto ou tão pouco de nós como nós gostamos delas.
É preciso ser-se vaidoso – coisa que quase todos nós somos, se arranharmos um pouco o verniz com que nos tapamos – para pensar que os outros gostam mais de nós do que nós deles.
A fantasia por trás da nossa vaidade é que os outros são parvos – e é por isso que pensam que nós gostamos deles. Até nos rimos desse desnível ilusório, tal é a nossa sobranceria.
Do fundo da nossa periclitante autoestima, achamos uma coisa inacreditável: “Eu sou melhor do que eles e, como tal, eles gostam mais de mim do que eu gosto deles, porque lhes trago mais do que eles me dão a mim, e assim atinge-se uma espécie de equilíbrio.”
Nós ouvimos Pete Hegseth, J.D. Vance e Trump a dizer que nós, os europeus, somos patéticos e achamos que eles foram apanhados a faltar-nos ao respeito. Mas por que carga de algodão-doce é que aquelas três bestas hão-de gostar mais de nós do que nós gostamos deles?
Eles sentem-se desprezados por nós. Estão fartos de saber o que nós pensamos deles – até porque nós não nos calamos.
Os americanos já fervem com a arrogância e a condescendência dos europeus, com as nossas falinhas mansas quando queremos cravar mais uns dólares e, sobretudo, com a nossa convicção que é aqui na Europa, encharcados em cultura e civilização, que sabemos viver, enquanto os americanos que votaram no Trump não passam de selvagens.
Aqueles três brutamontes sentem, com razão, que os europeus são quase todos aliados dos adversários de Trump. E sabem que essa aliança entre americanos e europeus à esquerda de Trump – uma multidão imensa – tudo fará para os ridicularizar e perseguir.
Fica-nos mal fingirmos que fomos surpreendidos, quando, na verdade, ficámos mais do que satisfeitos: confirmou-se o que pensávamos deles.
Fazemos bem em odiá-los. Mas também temos de deixar que eles nos odeiem também.
Miguel Esteves Cardoso
É preciso ser-se vaidoso – coisa que quase todos nós somos, se arranharmos um pouco o verniz com que nos tapamos – para pensar que os outros gostam mais de nós do que nós deles.
A fantasia por trás da nossa vaidade é que os outros são parvos – e é por isso que pensam que nós gostamos deles. Até nos rimos desse desnível ilusório, tal é a nossa sobranceria.
Do fundo da nossa periclitante autoestima, achamos uma coisa inacreditável: “Eu sou melhor do que eles e, como tal, eles gostam mais de mim do que eu gosto deles, porque lhes trago mais do que eles me dão a mim, e assim atinge-se uma espécie de equilíbrio.”
Nós ouvimos Pete Hegseth, J.D. Vance e Trump a dizer que nós, os europeus, somos patéticos e achamos que eles foram apanhados a faltar-nos ao respeito. Mas por que carga de algodão-doce é que aquelas três bestas hão-de gostar mais de nós do que nós gostamos deles?
Eles sentem-se desprezados por nós. Estão fartos de saber o que nós pensamos deles – até porque nós não nos calamos.
Os americanos já fervem com a arrogância e a condescendência dos europeus, com as nossas falinhas mansas quando queremos cravar mais uns dólares e, sobretudo, com a nossa convicção que é aqui na Europa, encharcados em cultura e civilização, que sabemos viver, enquanto os americanos que votaram no Trump não passam de selvagens.
Aqueles três brutamontes sentem, com razão, que os europeus são quase todos aliados dos adversários de Trump. E sabem que essa aliança entre americanos e europeus à esquerda de Trump – uma multidão imensa – tudo fará para os ridicularizar e perseguir.
Fica-nos mal fingirmos que fomos surpreendidos, quando, na verdade, ficámos mais do que satisfeitos: confirmou-se o que pensávamos deles.
Fazemos bem em odiá-los. Mas também temos de deixar que eles nos odeiem também.
Miguel Esteves Cardoso
O tempo passa rápido
Às vezes, quando me encontro com velhos amigos, lembro-me da rapidez com que o tempo passa. E isso faz-me pensar se temos utilizado o nosso tempo de forma adequada ou não. A utilização adequada do tempo é tão importante. Enquanto tivermos este corpo e especialmente este cérebro humano incrível, eu acho que cada minuto é algo precioso. O nosso dia-a-dia é muito vivido à base de esperança, embora não exista a garantia do nosso futuro. Não há garantia de que amanhã a esta hora estejamos aqui. Mas estamos sempre na expectativa de que isso aconteça, puramente na base da esperança. Por isso, precisamos de fazer o melhor uso possível do nosso tempo. Acredito que a utilização adequada do tempo é a seguinte: se você puder, esteja disponível para as outras pessoas, ou para outros seres sensíveis. Se não, pelo menos, abster-se de os prejudicar. Eu acho que esta é toda a base da minha filosofia.
Concluindo, precisamos de refletir no que é realmente de valor na vida, o que dá sentido às nossas vidas, e definir as nossas prioridades com base nisso. O propósito da nossa vida precisa de ser positivo. Nós não nascemos com o propósito de causar problemas, prejudicando outros. Para que a nossa vida seja de valor, acho que devemos desenvolver boas qualidades humanas básicas – o calor, a bondade, a compaixão. Então, a nossa vida torna-se significativa e mais pacífica, mais feliz.
Dalai Lama, "A Arte da Felicidade"
Concluindo, precisamos de refletir no que é realmente de valor na vida, o que dá sentido às nossas vidas, e definir as nossas prioridades com base nisso. O propósito da nossa vida precisa de ser positivo. Nós não nascemos com o propósito de causar problemas, prejudicando outros. Para que a nossa vida seja de valor, acho que devemos desenvolver boas qualidades humanas básicas – o calor, a bondade, a compaixão. Então, a nossa vida torna-se significativa e mais pacífica, mais feliz.
Dalai Lama, "A Arte da Felicidade"
STF descuida da dimensão política e arrisca anistia ampla
Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a aceitar as denúncias dos acusados de liderar os movimentos antidemocráticos. O julgamento tem uma dimensão jurídica, que acontece nas Cortes, mas também uma dimensão política, junto à opinião pública. A dimensão política não tem sido bem cuidada, e isso tem permitido que o sentimento de injustiça contra as duras penas aplicadas a populares que invadiram as sedes dos três Poderes seja manipulado em favor de uma anistia ampla. Ao ignorar essa dimensão, o STF corre o risco de minar a legitimidade das punições e de abrir espaço à impunidade do ex-presidente Bolsonaro e das outras lideranças.
Uma punição dura para aqueles que participaram da tentativa de golpe de Estado no final do governo Bolsonaro é fundamental para a preservação da democracia brasileira. Se a democracia não mostrar que tem dentes, não será respeitada. A contrapartida dessa firme defesa da democracia, porém, é que o julgamento seja técnico, sóbrio e equilibrado. Mais que isso: tem também de parecer técnico, sóbrio e equilibrado. Precisamos da dureza da pena para dissuadir. Mas também da sobriedade e do equilíbrio da decisão para que a dureza da pena tenha legitimidade social.
O avanço da campanha pela anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos é bastante palpável. Em dezembro de 2024, uma pesquisa Datafolha mostrou que 33% dos brasileiros apoiavam a anistia para os responsáveis pelo ataque do 8 de Janeiro, parcela semelhante à que tinha sido medida pelo instituto em março de 2024. Pesquisas mais recentes têm mostrado apoio maior. Em fevereiro, a AtlasIntel deu 51% de apoio à anistia aos presos do 8 de Janeiro. Na semana passada, o PoderData apontou 37% de apoio à anistia aos presos. Os números variam bastante de acordo com a metodologia, mas podemos dizer que algo entre um terço e metade dos brasileiros apoia a anistia. Seja mais ou seja menos, o patamar é preocupante.
O apoio relativamente alto à anistia se deve ao fato de o público não ter sido convencido de que o 8 de Janeiro tenha sido um golpe — o entendimento majoritário é que foi apenas vandalismo (65%). É o que a pesquisa Datafolha, citada há pouco, revela. A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) era especialmente pobre na documentação da concepção e articulação do 8 de Janeiro — e não contribuiu para mudar esse sentimento.
O Congresso captou o humor do público e tem se movido. O jornal O Estado de S. Paulo mediu o apoio à anistia na Câmara dos Deputados e contou 191 apoiadores, 37% da casa, o suficiente para aprovar um pedido de urgência. Ainda mais revelador são os 196 deputados (38% da Câmara) que não responderam, provavelmente porque podem ir para um lado ou para outro, a depender da direção do vento. A avaliação do líder do PT na Câmara também é que haja 200 deputados a favor da anistia.
A campanha pela anistia está muito concentrada nos populares que foram presos na invasão das sedes dos três Poderes sem que tenham praticado vandalismo ou violência e, mesmo assim, pegaram sentenças duras de prisão. O caso mais controverso é a cabeleireira Débora Rodrigues, ativista que escreveu a frase “Perdeu, Mané” na estátua da Justiça em frente ao prédio do STF, prestes a ser sentenciada a 14 anos de prisão por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado com violência e associação criminosa armada.
Diante da incompreensão generalizada de que o 8 de Janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado, as penas duras aos manifestantes que não cometeram atos de vandalismo ou violência acabam apenas por fortalecer a causa da anistia. O sentimento de injustiça em relação aos peixes pequenos pode ser aproveitado por forças políticas interessadas em ampliar os efeitos da anistia ao ex-presidente e aos generais que, estes sim, não podem ficar impunes.
Se a Polícia Federal, PGR e o STF não conseguirem persuadir a sociedade de que os ataques do 8 de Janeiro foram planejados para provocar instabilidade e justificar uma intervenção militar, talvez seja preciso se resignar e revisar para baixo as penas dos manifestantes não violentos — sob o risco de ver prosperar uma anistia ampla.
A ameaça do STF de que considerará inconstitucional uma anistia aprovada pelo Congresso é suicídio político para uma instituição que já enfrenta uma crise de legitimidade com a metade da cidadania que votou em Bolsonaro. Em vez de tensionar ainda mais o ambiente político, o Supremo precisa recuperar sua autoridade por meio da sobriedade, da comunicação pública e da capacidade de distinguir entre os diferentes níveis de responsabilidade nos movimentos golpistas.
Uma punição dura para aqueles que participaram da tentativa de golpe de Estado no final do governo Bolsonaro é fundamental para a preservação da democracia brasileira. Se a democracia não mostrar que tem dentes, não será respeitada. A contrapartida dessa firme defesa da democracia, porém, é que o julgamento seja técnico, sóbrio e equilibrado. Mais que isso: tem também de parecer técnico, sóbrio e equilibrado. Precisamos da dureza da pena para dissuadir. Mas também da sobriedade e do equilíbrio da decisão para que a dureza da pena tenha legitimidade social.
O avanço da campanha pela anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos é bastante palpável. Em dezembro de 2024, uma pesquisa Datafolha mostrou que 33% dos brasileiros apoiavam a anistia para os responsáveis pelo ataque do 8 de Janeiro, parcela semelhante à que tinha sido medida pelo instituto em março de 2024. Pesquisas mais recentes têm mostrado apoio maior. Em fevereiro, a AtlasIntel deu 51% de apoio à anistia aos presos do 8 de Janeiro. Na semana passada, o PoderData apontou 37% de apoio à anistia aos presos. Os números variam bastante de acordo com a metodologia, mas podemos dizer que algo entre um terço e metade dos brasileiros apoia a anistia. Seja mais ou seja menos, o patamar é preocupante.
O apoio relativamente alto à anistia se deve ao fato de o público não ter sido convencido de que o 8 de Janeiro tenha sido um golpe — o entendimento majoritário é que foi apenas vandalismo (65%). É o que a pesquisa Datafolha, citada há pouco, revela. A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) era especialmente pobre na documentação da concepção e articulação do 8 de Janeiro — e não contribuiu para mudar esse sentimento.
O Congresso captou o humor do público e tem se movido. O jornal O Estado de S. Paulo mediu o apoio à anistia na Câmara dos Deputados e contou 191 apoiadores, 37% da casa, o suficiente para aprovar um pedido de urgência. Ainda mais revelador são os 196 deputados (38% da Câmara) que não responderam, provavelmente porque podem ir para um lado ou para outro, a depender da direção do vento. A avaliação do líder do PT na Câmara também é que haja 200 deputados a favor da anistia.
A campanha pela anistia está muito concentrada nos populares que foram presos na invasão das sedes dos três Poderes sem que tenham praticado vandalismo ou violência e, mesmo assim, pegaram sentenças duras de prisão. O caso mais controverso é a cabeleireira Débora Rodrigues, ativista que escreveu a frase “Perdeu, Mané” na estátua da Justiça em frente ao prédio do STF, prestes a ser sentenciada a 14 anos de prisão por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado com violência e associação criminosa armada.
Diante da incompreensão generalizada de que o 8 de Janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado, as penas duras aos manifestantes que não cometeram atos de vandalismo ou violência acabam apenas por fortalecer a causa da anistia. O sentimento de injustiça em relação aos peixes pequenos pode ser aproveitado por forças políticas interessadas em ampliar os efeitos da anistia ao ex-presidente e aos generais que, estes sim, não podem ficar impunes.
Se a Polícia Federal, PGR e o STF não conseguirem persuadir a sociedade de que os ataques do 8 de Janeiro foram planejados para provocar instabilidade e justificar uma intervenção militar, talvez seja preciso se resignar e revisar para baixo as penas dos manifestantes não violentos — sob o risco de ver prosperar uma anistia ampla.
A ameaça do STF de que considerará inconstitucional uma anistia aprovada pelo Congresso é suicídio político para uma instituição que já enfrenta uma crise de legitimidade com a metade da cidadania que votou em Bolsonaro. Em vez de tensionar ainda mais o ambiente político, o Supremo precisa recuperar sua autoridade por meio da sobriedade, da comunicação pública e da capacidade de distinguir entre os diferentes níveis de responsabilidade nos movimentos golpistas.
Medo na terra da liberdade
Primeiro eles foram atrás dos venezuelanos. Imagens de centenas de supostos criminosos sumariamente deportados dos Estados Unidos sem representação legal e submetidos a tratamento degradante em uma prisão salvadorenha são uma demonstração de crueldade com um único objetivo: aterrorizar milhões de imigrantes ilegais que vivem e trabalham no país. Não importa que a medida seja ilegal. Quando isso for decidido no tribunal, o medo de sair às ruas terá destruído muitas vidas. O americano médio não vai defender os direitos de supostos criminosos (o governo não apresentou nenhuma evidência de que eles o farão), mas em breve as táticas do medo como arma política começarão a afetar mais profundamente. Ele já está fazendo isso.
O segundo governo de Donald Trump, livre de autoridades indesejadas, está estendendo a mesma estratégia a todos os níveis da sociedade. Por meio de vários decretos presidenciais, Trump pretende eliminar qualquer voz que contradiga sua ideologia política, não apenas dentro de sua administração — onde ele eliminou todos os departamentos e empregos relacionados à diversidade e inclusão — mas também em toda a sociedade. Ele começou ameaçando grandes empresas com a perda de contratos públicos, e algumas cederam.
Neste projeto, silenciar as críticas é essencial. Agora é a vez das universidades, que, usando a desculpa de protestos contra o massacre de civis em Gaza, estão ameaçadas de perder o financiamento federal — grande parte dele dedicado à pesquisa científica — se não derem um basta aos protestos estudantis. Nesse caso, o primeiro alvo que todos deveriam observar foi Columbia, Nova York. A universidade concordou em negociar com a Administração. O presidente da instituição renunciou na sexta-feira.
Das universidades aos próprios estudantes. O mundo viu imagens, típicas de uma operação antidrogas, da prisão nas ruas de um estudante turco da Universidade de Boston por participar de manifestações pró-Palestina. Centenas de vistos de estudantes internacionais foram revogados por esse motivo, e um juiz teve que suspender a tentativa de deportação contra um estudante da Columbia com autorização de residência permanente. O medo de dizer algo inconveniente ao governo se estende nada menos que ao âmbito do ensino superior, da liberdade acadêmica e da liberdade de crítica.
O próximo alvo são os advogados. Neste caso, a ameaça implícita é que, se representarem indivíduos ou instituições em casos contra a atual Casa Branca, perderão contratos públicos . Pelo menos duas empresas decidiram processar o governo, mas outras duas concordaram em negociar. Essas são empresas multimilionárias que se recusam a reagir, então a mensagem é letal para o resto da profissão, com capacidades muito mais modestas. Mais uma vez, por meio da intimidação, o governo está ganhando terreno na sociedade americana. Ele já havia ameaçado a imprensa antes. Seguindo o mesmo padrão, ele escolheu a Associated Press, a agência de notícias mais respeitada do país, para dar o exemplo. A AP se recusou a se referir ao Golfo do México como Golfo da América, como Trump quer, e foi excluída do grupo de veículos de comunicação com acesso ao Salão Oval.
O objetivo desta ofensiva vai além da agenda pessoal de Trump: ela também serve ao fanatismo reacionário que o cerca. Assim, por meio da chantagem, toma forma a ideia artificial dos Estados Unidos como um país branco, heterossexual e conservador, no qual todos aqueles que não se encaixam nesse padrão são meros hóspedes com papel subordinado na sociedade. A democracia americana foi construída sobre uma concepção extrema de liberdade individual. Isso pode mudar para sempre se a rejeição dessa política não se tornar generalizada. Dada a passividade do Congresso, as ações de alguns juízes continuam. Cada concessão é um espaço de poder ocupado pelo trumpismo, ou seja, a doutrina do medo.
O segundo governo de Donald Trump, livre de autoridades indesejadas, está estendendo a mesma estratégia a todos os níveis da sociedade. Por meio de vários decretos presidenciais, Trump pretende eliminar qualquer voz que contradiga sua ideologia política, não apenas dentro de sua administração — onde ele eliminou todos os departamentos e empregos relacionados à diversidade e inclusão — mas também em toda a sociedade. Ele começou ameaçando grandes empresas com a perda de contratos públicos, e algumas cederam.
Neste projeto, silenciar as críticas é essencial. Agora é a vez das universidades, que, usando a desculpa de protestos contra o massacre de civis em Gaza, estão ameaçadas de perder o financiamento federal — grande parte dele dedicado à pesquisa científica — se não derem um basta aos protestos estudantis. Nesse caso, o primeiro alvo que todos deveriam observar foi Columbia, Nova York. A universidade concordou em negociar com a Administração. O presidente da instituição renunciou na sexta-feira.
Das universidades aos próprios estudantes. O mundo viu imagens, típicas de uma operação antidrogas, da prisão nas ruas de um estudante turco da Universidade de Boston por participar de manifestações pró-Palestina. Centenas de vistos de estudantes internacionais foram revogados por esse motivo, e um juiz teve que suspender a tentativa de deportação contra um estudante da Columbia com autorização de residência permanente. O medo de dizer algo inconveniente ao governo se estende nada menos que ao âmbito do ensino superior, da liberdade acadêmica e da liberdade de crítica.
O próximo alvo são os advogados. Neste caso, a ameaça implícita é que, se representarem indivíduos ou instituições em casos contra a atual Casa Branca, perderão contratos públicos . Pelo menos duas empresas decidiram processar o governo, mas outras duas concordaram em negociar. Essas são empresas multimilionárias que se recusam a reagir, então a mensagem é letal para o resto da profissão, com capacidades muito mais modestas. Mais uma vez, por meio da intimidação, o governo está ganhando terreno na sociedade americana. Ele já havia ameaçado a imprensa antes. Seguindo o mesmo padrão, ele escolheu a Associated Press, a agência de notícias mais respeitada do país, para dar o exemplo. A AP se recusou a se referir ao Golfo do México como Golfo da América, como Trump quer, e foi excluída do grupo de veículos de comunicação com acesso ao Salão Oval.
O objetivo desta ofensiva vai além da agenda pessoal de Trump: ela também serve ao fanatismo reacionário que o cerca. Assim, por meio da chantagem, toma forma a ideia artificial dos Estados Unidos como um país branco, heterossexual e conservador, no qual todos aqueles que não se encaixam nesse padrão são meros hóspedes com papel subordinado na sociedade. A democracia americana foi construída sobre uma concepção extrema de liberdade individual. Isso pode mudar para sempre se a rejeição dessa política não se tornar generalizada. Dada a passividade do Congresso, as ações de alguns juízes continuam. Cada concessão é um espaço de poder ocupado pelo trumpismo, ou seja, a doutrina do medo.
sábado, 29 de março de 2025
Notas sobre a mentira da era Trump
Dois dos regimes mais abomináveis da história da humanidade chegaram ao poder no século XX, e ambos se estabeleceram com base na violação e no esfacelamento da verdade, cientes de que o cinismo, o cansaço e o medo podem tornar as pessoas suscetíveis a mentiras e falsas promessas de líderes determinados a alcançar o poder incondicional. Como Hannah Arendt escreveu em seu livro de 1951, Origens do totalitarismo: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).”
No entanto, não quero fazer uma analogia direta entre as circunstâncias atuais e os horrores opressivos da época da Segunda Guerra Mundial, apenas olhar para determinadas condições e atitudes — ao comentar as obras de George Orwell 1984 e A revolução dos bichos, Margaret Atwood as chamou de “sinais de alerta” — que tornam um povo suscetível à demagogia e à manipulação política, e transformam uma nação numa presa fácil para os aspirantes a autocratas. Quero examinar como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção, e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade, e o que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo.
“O historiador sabe o quão frágil é a tessitura dos fatos no cotidiano em que vivemos”, escreveu Arendt em 1971, no ensaio “A mentira na política”. “Ela está sempre correndo o risco de ser perfurada por uma única mentira ou despedaçada pela mentira organizada de grupos, países ou classes, ou negada e distorcida, muitas vezes cuidadosamente acobertada por calhamaços de mentiras, ou simplesmente autorizada a cair no esquecimento. Fatos necessitam de testemunhos para serem lembrados, e de testemunhas confiáveis para serem oficializados, de modo a encontrar um lugar seguro para habitar o domínio dos interesses humanos.”
O termo “declínio da verdade” (usado pelo think tank Rand Corporation para descrever “o enfraquecimento do papel dos fatos e análises” na vida pública norte-americana) entrou para o léxico da era da pós-verdade, que inclui também expressões agora corriqueiras como “fake news” e “fatos alternativos”. E não só as notícias são falsas: também existe a ciência falsa (produzida por negacionistas das mudanças climáticas e anti-vaxxers, os ativistas do movimento antivacina), a história falsa (promovida por revisionistas do Holocausto e supremacistas brancos), os perfis falsos de norte-americanos no Facebook (criados por trolls russos) e os seguidores e “likes” falsos nas redes sociais (gerados por bots).
Trump, o 45º presidente dos Estados Unidos, mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o The Washington Post calculou que ele fez 2.140 alegações falsas ou enganosas no seu primeiro ano de governo — uma média de quase 5,9 por dia. As mentiras dele — sobre absolutamente tudo, desde as investigações sobre a interferência russa nas eleições, passando por sua popularidade e suas conquistas, até o tempo que passa vendo TV — são apenas o mais espalhafatoso entre os vários sinais de alerta acerca de seus ataques às instituições democráticas e normas vigentes. Ele ataca rotineiramente a imprensa, o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema eleitoral e os funcionários públicos responsáveis pelo bom funcionamento do governo norte-americano.
Entretanto, os ataques à verdade não estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo as instituições democráticas e trocando os especialistas pela sabedoria das multidões. Alegações falsas sobre as relações financeiras do Reino Unido com a União Europeia (em anúncios da campanha do partido Vote Leave num ônibus) ajudaram a mudar a votação em favor do Brexit; e a Rússia intensificou a propagação da sua dezinformatsiya durante as campanhas eleitorais na França, na Alemanha, na Holanda e em outros países, em esforços orquestrados de propaganda para desacreditar e desestabilizar democracias.
O papa Francisco nos lembra: “Não existe desinformação inofensiva; acreditar na falsidade pode ter consequências calamitosas.” O ex-presidente Barack Obama comentou que “um dos maiores desafios que temos em nossa democracia é o fato de não compartilharmos a mesma base de fatos” — atualmente as pessoas estão “operando em universos de informação completamente diferentes”. E o senador republicano Jeff Flake fez um discurso no qual alertou que “2017 foi o ano em que nós vimos a verdade — objetiva, empírica, baseada em evidências — ser mais agredida e atacada do que em qualquer outro período da história norte-americana, por meio das mãos da figura mais poderosa do nosso governo”.9
Como isso aconteceu? Quais são as raízes da falsidade na era Trump? Como a verdade e o bom senso se tornaram espécies ameaçadas de extinção, e o que sua morte iminente sugere para o futuro do nosso discurso público, da nossa política e dos nossos governantes? Esse é o tema deste livro.
É muito fácil encarar Trump — um candidato que baseou sua carreira política no pecado original do nascimentismo (ou birtherism) — como um cisne negro que conquistou seu cargo graças a uma soma perfeita de fatores: um eleitorado frustrado ainda se recuperando da ressaca da crise financeira de 2008; a interferência dos russos na eleição com uma enxurrada de fake news a favor dele nas redes sociais; uma oponente altamente polarizada que simbolizava a elite de Washington, acusada pelos populistas; e uma publicidade espontânea estimada em 5 bilhões de dólares graças à cobertura dos veículos de imprensa obcecados com as visualizações e os cliques gerados pelo ex-astro de reality show.
Se um escritor criasse um vilão como Trump — uma personificação megalomaníaca e extravagante do narcisismo, mendacidade, ignorância, preconceito, grosseria e demagogia com impulsos tirânicos (isso sem falar que é alguém que consome até uma dúzia de Coca-Cola diet por dia) —, seria acusado de ter produzido um personagem muito fantasioso ou sem nenhuma verossimilhança. Na verdade, o presidente dos Estados Unidos frequentemente se apresenta como um personagem menos convincente do que seria uma mistura de Ubu Rei, Triumph the Insult Comic Dog e um personagem descartado de Molière.
No entanto, por mais que a personalidade de Trump possua traços cômicos, não devemos nos cegar diante das consequências tremendamente sérias de seus ataques à verdade e ao Estado de direito, que evidenciam a vulnerabilidade de nossas instituições e comunicações digitais. Um candidato tão exposto durante a campanha por seu histórico de mentiras e práticas comerciais enganosas dificilmente conseguiria tanto apoio popular se setores do público não tivessem adotado uma postura um tanto quanto blasé em relação à verdade. É inegável que existem problemas sistêmicos em relação ao modo como as pessoas obtêm as informações e como passaram a pensar de forma cada vez mais polarizada.
Com Trump, a esfera pessoal é política e, em muitos sentidos, ele é menos uma anomalia caricata e mais um bizarro epítome de uma série de atitudes mais amplas e interligadas que corroem lentamente a verdade nos dias de hoje, desde a mistura do noticiário e da política com o entretenimento até a polarização tóxica que tomou conta da política norte-americana, passando pelo crescente desprezo populista em relação ao conhecimento especializado.
Essas atitudes, por sua vez, são símbolos das dinâmicas que foram ganhando corpo por anos a fio, criando um ambiente perfeito no qual Veritas, a deusa da Verdade (conforme foi retratada por Goya na famosa gravura Murió la Verdad), poderia adoecer e cair morta.
Já faz décadas que a objetividade — ou mesmo a ideia de que as pessoas desejam conhecer a melhor verdade disponível — está fora de moda. A famosa frase do ex-senador Daniel Patrick Moynihan — “Todo mundo tem o direito de ter suas próprias opiniões, mas não seus próprios fatos” — é mais atual do que nunca: a polarização se tornou tão extrema nos Estados Unidos que os eleitores dos estados de maioria republicana e dos de maioria democrata estão tendo dificuldades para entrar em consenso sobre os mesmos fatos. Isso vem acontecendo desde que um verdadeiro sistema solar de sites de notícias de direita passou a orbitar a Fox News e o Breitbart News e consolidou sua força gravitacional sobre a base republicana. E esse cenário vem sendo exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em bolhas, ambientes cada vez mais fechados e sem comunicação com o exterior.
Quanto a isso, o relativismo está em ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960. Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para expor os preconceitos do pensamento ocidental, burguês e primordialmente masculino; e por acadêmicos que pregavam o evangelho do Pós-modernismo, que argumentava que não existem verdades universais, apenas pequenas verdades pessoais — percepções moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos, que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias “baseadas na ciência”.
O relativismo, é claro, combina perfeitamente com o narcisismo e a subjetividade que estão em expansão, desde “A década do eu”, de Tom Wolfe, até a autoestima na era das selfies. Não é nenhuma surpresa, portanto, que o efeito Rashomon — o ponto de vista de que tudo depende do seu ponto de vista — venha permeando nossa cultura, desde livros de sucesso como Destinos e Fúrias, de Lauren Groff, até séries de TV como The Affair, baseados na ideia de realidades conflitantes e narradores em quem não se pode confiar.
Tenho lido e escrito sobre muitos desses assuntos nas últimas quatro décadas, desde a ascensão do conceito de desconstrução e das batalhas acerca do cânone literário nos campi universitários; debates sobre a releitura ficcional de fatos históricos em filmes como JFK, de Oliver Stone, e A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow; esforços feitos pelos governos Clinton e Bush para se furtar à transparência e definir a realidade em seus próprios termos; a guerra de Donald Trump contra a linguagem e seus esforços para normalizar o anormal; e a influência da tecnologia na forma como processamos e compartilhamos informações. Nestas páginas pretendo recorrer à leitura de livros e da realidade atual para ligar alguns pontos acerca dos ataques à verdade e situá-los num quadro mais amplo de dinâmicas sociais e políticas que vêm se infiltrando em nossa cultura há anos. Também pretendo chamar a atenção para alguns livros e artigos proféticos do passado, que ajudam a entender melhor o dilema em que
A verdade é um dos pilares da democracia. Como observou a ex-procuradora-geral interina Sally Yates, a verdade é uma das coisas que nos separam de uma autocracia: “Nós podemos — e devemos — debater políticas e questões, mas esses debates devem se basear em fatos em comum, e não em apelações baratas à emoção e ao medo na forma de mentiras e de uma retórica polarizante.”
“Não apenas existe uma verdade objetiva, como deixar de dizê-la é uma questão importante. Não temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas temos como controlar se eles devem responder por essas mentiras ou se então, seja por exaustão ou para proteger nossos interesses políticos, vamos olhar para o outro lado e igualar a indiferença à verdade.”
Michiko Kakutani, "A morte da verdade" (Introdução)
O alarmante para o leitor contemporâneo é que as palavras de Arendt soam cada vez menos como um comunicado do século passado e mais como um terrível reflexo do panorama cultural e político em que vivemos hoje — um mundo no qual as fake news e as mentiras são divulgadas em escala industrial por “fábricas” de trolls russos, lançadas num fluxo ininterrupto pela boca e pelo Twitter do presidente dos Estados Unidos, e espalhadas pelo mundo todo na velocidade da luz por perfis em redes sociais. O nacionalismo, o tribalismo, a sensação de estranhamento, o medo de mudanças sociais e o ódio aos estrangeiros estão novamente em ascensão à medida que as pessoas, trancadas nos seus grupos partidários e protegidas pelo filtro de suas bolhas, vêm perdendo a noção de realidade compartilhada e a habilidade de se comunicar com as diversas linhas sociais e sectárias.
No entanto, não quero fazer uma analogia direta entre as circunstâncias atuais e os horrores opressivos da época da Segunda Guerra Mundial, apenas olhar para determinadas condições e atitudes — ao comentar as obras de George Orwell 1984 e A revolução dos bichos, Margaret Atwood as chamou de “sinais de alerta” — que tornam um povo suscetível à demagogia e à manipulação política, e transformam uma nação numa presa fácil para os aspirantes a autocratas. Quero examinar como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção, e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade, e o que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo.
“O historiador sabe o quão frágil é a tessitura dos fatos no cotidiano em que vivemos”, escreveu Arendt em 1971, no ensaio “A mentira na política”. “Ela está sempre correndo o risco de ser perfurada por uma única mentira ou despedaçada pela mentira organizada de grupos, países ou classes, ou negada e distorcida, muitas vezes cuidadosamente acobertada por calhamaços de mentiras, ou simplesmente autorizada a cair no esquecimento. Fatos necessitam de testemunhos para serem lembrados, e de testemunhas confiáveis para serem oficializados, de modo a encontrar um lugar seguro para habitar o domínio dos interesses humanos.”
O termo “declínio da verdade” (usado pelo think tank Rand Corporation para descrever “o enfraquecimento do papel dos fatos e análises” na vida pública norte-americana) entrou para o léxico da era da pós-verdade, que inclui também expressões agora corriqueiras como “fake news” e “fatos alternativos”. E não só as notícias são falsas: também existe a ciência falsa (produzida por negacionistas das mudanças climáticas e anti-vaxxers, os ativistas do movimento antivacina), a história falsa (promovida por revisionistas do Holocausto e supremacistas brancos), os perfis falsos de norte-americanos no Facebook (criados por trolls russos) e os seguidores e “likes” falsos nas redes sociais (gerados por bots).
Trump, o 45º presidente dos Estados Unidos, mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o The Washington Post calculou que ele fez 2.140 alegações falsas ou enganosas no seu primeiro ano de governo — uma média de quase 5,9 por dia. As mentiras dele — sobre absolutamente tudo, desde as investigações sobre a interferência russa nas eleições, passando por sua popularidade e suas conquistas, até o tempo que passa vendo TV — são apenas o mais espalhafatoso entre os vários sinais de alerta acerca de seus ataques às instituições democráticas e normas vigentes. Ele ataca rotineiramente a imprensa, o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema eleitoral e os funcionários públicos responsáveis pelo bom funcionamento do governo norte-americano.
Entretanto, os ataques à verdade não estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo as instituições democráticas e trocando os especialistas pela sabedoria das multidões. Alegações falsas sobre as relações financeiras do Reino Unido com a União Europeia (em anúncios da campanha do partido Vote Leave num ônibus) ajudaram a mudar a votação em favor do Brexit; e a Rússia intensificou a propagação da sua dezinformatsiya durante as campanhas eleitorais na França, na Alemanha, na Holanda e em outros países, em esforços orquestrados de propaganda para desacreditar e desestabilizar democracias.
O papa Francisco nos lembra: “Não existe desinformação inofensiva; acreditar na falsidade pode ter consequências calamitosas.” O ex-presidente Barack Obama comentou que “um dos maiores desafios que temos em nossa democracia é o fato de não compartilharmos a mesma base de fatos” — atualmente as pessoas estão “operando em universos de informação completamente diferentes”. E o senador republicano Jeff Flake fez um discurso no qual alertou que “2017 foi o ano em que nós vimos a verdade — objetiva, empírica, baseada em evidências — ser mais agredida e atacada do que em qualquer outro período da história norte-americana, por meio das mãos da figura mais poderosa do nosso governo”.9
Como isso aconteceu? Quais são as raízes da falsidade na era Trump? Como a verdade e o bom senso se tornaram espécies ameaçadas de extinção, e o que sua morte iminente sugere para o futuro do nosso discurso público, da nossa política e dos nossos governantes? Esse é o tema deste livro.
* * *
É muito fácil encarar Trump — um candidato que baseou sua carreira política no pecado original do nascimentismo (ou birtherism) — como um cisne negro que conquistou seu cargo graças a uma soma perfeita de fatores: um eleitorado frustrado ainda se recuperando da ressaca da crise financeira de 2008; a interferência dos russos na eleição com uma enxurrada de fake news a favor dele nas redes sociais; uma oponente altamente polarizada que simbolizava a elite de Washington, acusada pelos populistas; e uma publicidade espontânea estimada em 5 bilhões de dólares graças à cobertura dos veículos de imprensa obcecados com as visualizações e os cliques gerados pelo ex-astro de reality show.
Se um escritor criasse um vilão como Trump — uma personificação megalomaníaca e extravagante do narcisismo, mendacidade, ignorância, preconceito, grosseria e demagogia com impulsos tirânicos (isso sem falar que é alguém que consome até uma dúzia de Coca-Cola diet por dia) —, seria acusado de ter produzido um personagem muito fantasioso ou sem nenhuma verossimilhança. Na verdade, o presidente dos Estados Unidos frequentemente se apresenta como um personagem menos convincente do que seria uma mistura de Ubu Rei, Triumph the Insult Comic Dog e um personagem descartado de Molière.
No entanto, por mais que a personalidade de Trump possua traços cômicos, não devemos nos cegar diante das consequências tremendamente sérias de seus ataques à verdade e ao Estado de direito, que evidenciam a vulnerabilidade de nossas instituições e comunicações digitais. Um candidato tão exposto durante a campanha por seu histórico de mentiras e práticas comerciais enganosas dificilmente conseguiria tanto apoio popular se setores do público não tivessem adotado uma postura um tanto quanto blasé em relação à verdade. É inegável que existem problemas sistêmicos em relação ao modo como as pessoas obtêm as informações e como passaram a pensar de forma cada vez mais polarizada.
Com Trump, a esfera pessoal é política e, em muitos sentidos, ele é menos uma anomalia caricata e mais um bizarro epítome de uma série de atitudes mais amplas e interligadas que corroem lentamente a verdade nos dias de hoje, desde a mistura do noticiário e da política com o entretenimento até a polarização tóxica que tomou conta da política norte-americana, passando pelo crescente desprezo populista em relação ao conhecimento especializado.
Essas atitudes, por sua vez, são símbolos das dinâmicas que foram ganhando corpo por anos a fio, criando um ambiente perfeito no qual Veritas, a deusa da Verdade (conforme foi retratada por Goya na famosa gravura Murió la Verdad), poderia adoecer e cair morta.
Já faz décadas que a objetividade — ou mesmo a ideia de que as pessoas desejam conhecer a melhor verdade disponível — está fora de moda. A famosa frase do ex-senador Daniel Patrick Moynihan — “Todo mundo tem o direito de ter suas próprias opiniões, mas não seus próprios fatos” — é mais atual do que nunca: a polarização se tornou tão extrema nos Estados Unidos que os eleitores dos estados de maioria republicana e dos de maioria democrata estão tendo dificuldades para entrar em consenso sobre os mesmos fatos. Isso vem acontecendo desde que um verdadeiro sistema solar de sites de notícias de direita passou a orbitar a Fox News e o Breitbart News e consolidou sua força gravitacional sobre a base republicana. E esse cenário vem sendo exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em bolhas, ambientes cada vez mais fechados e sem comunicação com o exterior.
Quanto a isso, o relativismo está em ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960. Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para expor os preconceitos do pensamento ocidental, burguês e primordialmente masculino; e por acadêmicos que pregavam o evangelho do Pós-modernismo, que argumentava que não existem verdades universais, apenas pequenas verdades pessoais — percepções moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos, que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias “baseadas na ciência”.
O relativismo, é claro, combina perfeitamente com o narcisismo e a subjetividade que estão em expansão, desde “A década do eu”, de Tom Wolfe, até a autoestima na era das selfies. Não é nenhuma surpresa, portanto, que o efeito Rashomon — o ponto de vista de que tudo depende do seu ponto de vista — venha permeando nossa cultura, desde livros de sucesso como Destinos e Fúrias, de Lauren Groff, até séries de TV como The Affair, baseados na ideia de realidades conflitantes e narradores em quem não se pode confiar.
Tenho lido e escrito sobre muitos desses assuntos nas últimas quatro décadas, desde a ascensão do conceito de desconstrução e das batalhas acerca do cânone literário nos campi universitários; debates sobre a releitura ficcional de fatos históricos em filmes como JFK, de Oliver Stone, e A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow; esforços feitos pelos governos Clinton e Bush para se furtar à transparência e definir a realidade em seus próprios termos; a guerra de Donald Trump contra a linguagem e seus esforços para normalizar o anormal; e a influência da tecnologia na forma como processamos e compartilhamos informações. Nestas páginas pretendo recorrer à leitura de livros e da realidade atual para ligar alguns pontos acerca dos ataques à verdade e situá-los num quadro mais amplo de dinâmicas sociais e políticas que vêm se infiltrando em nossa cultura há anos. Também pretendo chamar a atenção para alguns livros e artigos proféticos do passado, que ajudam a entender melhor o dilema em que
nos encontramos hoje.
A verdade é um dos pilares da democracia. Como observou a ex-procuradora-geral interina Sally Yates, a verdade é uma das coisas que nos separam de uma autocracia: “Nós podemos — e devemos — debater políticas e questões, mas esses debates devem se basear em fatos em comum, e não em apelações baratas à emoção e ao medo na forma de mentiras e de uma retórica polarizante.”
“Não apenas existe uma verdade objetiva, como deixar de dizê-la é uma questão importante. Não temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas temos como controlar se eles devem responder por essas mentiras ou se então, seja por exaustão ou para proteger nossos interesses políticos, vamos olhar para o outro lado e igualar a indiferença à verdade.”
Michiko Kakutani, "A morte da verdade" (Introdução)
Desagregação profunda
Maurício Romão, que em conjunto com Adriano Oliveira e Maurício Garcia fundaram e coordenam o grupo “Pesquisa em Debate”, do Recife, hoje em todo o país, recentemente escreveu o artigo “Desaprovação de Governantes no mundo contemporâneo”, com o impressionante score de avaliação dos governos em pesquisa mundial em 22 países, da aprovação média positiva em 38,8% dos governantes, e a desaprovação média negativa em 51,7%, apontando os seguintes fatores: (a) a crise de representação das economias liberais; (b) o acirramento da polarização; (c) cada cidadão julgando o governo pela sua demanda específica, e não pela sua totalidade; (d) o indivíduo como protagonista de suas informações e desejos no mundo digital; (e) as posições políticas, exacerbadas pela religião, desemprego, percepção de direitos, e outros fatores; (f) a desorganização das bases produtivas e de distribuição decorrentes do COVID; (g) o desequilíbrio fiscal, na tentativa, por parte dos governantes, de atender às díspares demandas sociais. Uma verdadeira desagregação.
O mundo complica-se economicamente. O PIB sobe, e as diferenças sociais aumentam. Segundo o “World Inequality Report”, de 1980 para cá os 10% mais ricos aumentaram sua participação no PIB do mundo, enquanto os 50% mais baixos diminuíram a sua participação. Hoje, 2.500 pessoas detêm patrimônio equivalente a 12% do PIB mundial, na concentração das decisões e espiral do conflito.
Após a falência do “socialismo” na solução da igualdade e liberdade social; após a falência das “democracias” na solução da representatividade e distribuição de renda; vem aí o “fascismo”, no descontamento das classes média comprimidas com a representatividade atual e não aceitação de soluções à esquerda, na geração da massa de apoio a líderes radicais de direita, que também não resolverão o problema, porque olham, apenas, para si mesmos, e representam. somente, o grande capital. E as economias enfrentando as crescentes limitações ecológicas, que acirrarão ainda mais a situação. Uma desagregação completa.
Trump, ao presidir os Estados Unidos como se fosse uma S.A., aumenta a desagregação e o conflito, na anteposição às nações que ele considera como “inimigas”, e mesmo contra os interesses do que seriam os seus “aliados” mais próximos. E como disse Napoleão, “Todo homem luta com mais bravura pelos seus interesses do que pelos seus direitos”. E assim vai.
Aqui, abaixo da linha do Equador, vida que segue. Nem o PIB sobe, há 15 anos, e as diferenças sociais mais do que aumentam; estamos longe de um consenso. Equilíbrio fiscal, nem se pensar. No futebol, Alemanha 7 x 1 no Brasil na Copa do Mundo de 2014, Argentina 4 x 1 no Brasil nas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2026, nos piores resultados já atingidos, no que parece ser o “novo normal”. Roberto DaMatta compara a pequenez de nossa economia e condições sociais com a grandeza de nossa cultura, como o futebol, a música e nossos valores, que dão a amálgama de nosso país. O que ocorre hoje no futebol brasileiro é indicador de desagregação, na prevalência de interesses corporativos.
Nesta semana, em um shopping, ocorreu de eu escutar uma criança perguntando a outra: “Você acha que o julgamento foi “puro”, ou “impuro”? Pensei, instantaneamente: “Foi nos termos da Lei”; na esperança de alguma razão. Polarização precoce, infelizmente. Que cuidemos de nossas crianças, são somente crianças.
Vã razão.
Ricardo Guedes
O mundo complica-se economicamente. O PIB sobe, e as diferenças sociais aumentam. Segundo o “World Inequality Report”, de 1980 para cá os 10% mais ricos aumentaram sua participação no PIB do mundo, enquanto os 50% mais baixos diminuíram a sua participação. Hoje, 2.500 pessoas detêm patrimônio equivalente a 12% do PIB mundial, na concentração das decisões e espiral do conflito.
Após a falência do “socialismo” na solução da igualdade e liberdade social; após a falência das “democracias” na solução da representatividade e distribuição de renda; vem aí o “fascismo”, no descontamento das classes média comprimidas com a representatividade atual e não aceitação de soluções à esquerda, na geração da massa de apoio a líderes radicais de direita, que também não resolverão o problema, porque olham, apenas, para si mesmos, e representam. somente, o grande capital. E as economias enfrentando as crescentes limitações ecológicas, que acirrarão ainda mais a situação. Uma desagregação completa.
Trump, ao presidir os Estados Unidos como se fosse uma S.A., aumenta a desagregação e o conflito, na anteposição às nações que ele considera como “inimigas”, e mesmo contra os interesses do que seriam os seus “aliados” mais próximos. E como disse Napoleão, “Todo homem luta com mais bravura pelos seus interesses do que pelos seus direitos”. E assim vai.
Aqui, abaixo da linha do Equador, vida que segue. Nem o PIB sobe, há 15 anos, e as diferenças sociais mais do que aumentam; estamos longe de um consenso. Equilíbrio fiscal, nem se pensar. No futebol, Alemanha 7 x 1 no Brasil na Copa do Mundo de 2014, Argentina 4 x 1 no Brasil nas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2026, nos piores resultados já atingidos, no que parece ser o “novo normal”. Roberto DaMatta compara a pequenez de nossa economia e condições sociais com a grandeza de nossa cultura, como o futebol, a música e nossos valores, que dão a amálgama de nosso país. O que ocorre hoje no futebol brasileiro é indicador de desagregação, na prevalência de interesses corporativos.
Nesta semana, em um shopping, ocorreu de eu escutar uma criança perguntando a outra: “Você acha que o julgamento foi “puro”, ou “impuro”? Pensei, instantaneamente: “Foi nos termos da Lei”; na esperança de alguma razão. Polarização precoce, infelizmente. Que cuidemos de nossas crianças, são somente crianças.
Vã razão.
Ricardo Guedes
Os golpistas estão nus
Vem aí mais um ignóbil aniversário do golpe militar reverenciado por Jair Bolsonaro e muitos de seus fiéis. Um regime inaugurado sem cadáveres. “No dia 1° de abril de 1964 também não morreu ninguém. Mas centenas e milhares morreram depois”, lembrou Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento que converteu em réus Bolsonaro, cinco militares e dois delegados por tentativa de golpe de Estado. Pouco antes, a colega de Corte Cármen Lúcia havia citado um livro lançado no ano passado pela historiadora mineira Heloisa Starling.
A Máquina do Golpe sustenta que a ditadura instaurada em 1964 resultou de duas décadas de ruminações. “Não se faz golpe num dia”, afirmou a magistrada.
A acusação pela qual Bolsonaro é réu compõe-se de vários capítulos. O primeiro é de 29 de julho de 2021 e o último, de 8 de janeiro de 2023. Não houve mortes dois anos atrás em Brasília, como não tinha havido em 1964. Já violência… Marcela da Silva Pinno, policial militar de serviço naquele dia, teve o capacete arrebentado por uma barra de ferro, como descreveu em uma CPI do Congresso em 2023. Um trecho de seu depoimento à comissão parlamentar integra um vídeo de cinco minutos exibido no Supremo na quarta-feira 26 com um apanhado de atos violentos praticados por bolsonaristas no 8 de Janeiro. O vídeo foi idealizado pelo juiz Alexandre de Moraes, relator do processo contra o ex-presidente. Para o togado, é importante enfrentar um fenômeno descrito na academia como “viés de positividade”. Este consiste em romantizar memórias. “Isso não é violência?”, perguntou ele, enquanto as imagens eram exibidas.
Bolsonaro reclamou do vídeo, por não constar dos autos. Segundo Moraes, os códigos Penal e de Processo Penal admitem o uso de fatos notórios em um julgamento. O capitão poderia tê-lo visto in loco, mas sua coragem esgotara-se. A Primeira Turma do STF, de cinco magistrados, levou dois dias para examinar a denúncia contra o capitão e seus comparsas proposta pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Na terça-feira 25 (três horas pela manhã, três à tarde) e no dia seguinte (três horas matinais). De surpresa, o ex-presidente tinha ido ao tribunal na terça, aparente demonstração de valentia que durou 24 horas. No dia seguinte, preferiu acompanhar a sessão no aconchego do gabinete de Flávio, o filho senador. No tribunal, sentara-se na primeira fila da sala. Perto, estavam dois familiares de vítimas da ditadura que ele enaltece. Hildegard Angel, irmã de Stuart Angel, estudante assassinado em 1971, e Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, jornalista “suicidado” em 1975.
Nenhum fardado daquele regime assassino prestou contas à Justiça. Agora, Bolsonaro, os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e Walter Braga Netto, o almirante Almir Garnier e o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid serão julgados, ao lado dos delegados federais Alexandre Ramagem e Anderson Torres. O octeto integra o que Gonet chama de “núcleo crucial” do golpe. Os cabeças, na falta de um termo melhor. O procurador-geral apresentou denúncias contra mais quatro “núcleos”, compostos ao todo por 26 conspiradores, dos quais 19 das Forças Armadas. Todos os nomeados, assinala Gonet, pertenciam a uma organização criminosa “com forte influência de setores militares” e “liderada” pelo ex-presidente. Três núcleos já têm data para saber se virarão réus: 9 e 30 de abril e 7 de maio.
Nesses julgamentos, o STF decide se a denúncia da Procuradoria reúne elementos suficientes para dar continuidade ao processo. No caso do “núcleo crucial”, a Primeira Turma entendeu que sim, por unanimidade (5 a 0). O ilícito principal estava no vídeo de Moraes. Diz o artigo 359-M, do Código Penal: é crime “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Em 8 de janeiro de 2023, havia faixas a clamar por uma intervenção militar. A invasão do Supremo e do Congresso caracteriza ainda o crime do artigo 359-L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. “Vamos entrar e tomar o que é nosso, vamos entrar e tomar o poder”, afirmava um manifestante no vídeo.
A Procuradoria selou 532 acordos para encerrar processos contra insurrectos. Estes confessaram que o objetivo era conseguir a intervenção militar. “Golpe tem povo, mas tem tropa, tem armas e tem liderança. Um ano, dois anos de investigação, não descobriram quem porventura seria esse líder”, disse Bolsonaro na porta do Senado, após se tornar réu, em pronunciamento no qual se declarou perseguido e voltou a atacar as urnas eletrônicas.
O golpe de 1964 não teve liderança única. O início da derrubada de João Goulart deu-se com o deslocamento de tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, então capital do País. À frente, o general Olímpio Mourão Filho, mas o ditador seria o marechal Humberto Castelo Branco. Outro general Mourão, o senador Hamilton, ex-vice de Bolsonaro, escreveu no ano passado, no aniversário do regime: “A Nação se salvou de si mesma”. Agora, ataca (e ameaça) o STF por fazer de Bolsonaro réu: “Se o povo constatar cabalmente que a lei tem lado e a Carta Magna é ignorada, pois não protege a todos, não sabemos o que pode acontecer”.
O capitão também não quer ser responsabilizado pelas destruições patrimoniais superiores a 20 milhões de reais causados por seus partidários em Brasília. Seu octeto é réu por dano ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado, além de quadrilha, tentativa de golpe e de abolição do Estado de Direito. “Destruição, eu?”, disse o capitão, ao ressaltar que estava nos Estados Unidos desde 30 de dezembro de 2022. “Não necessariamente o acusado tenha que ter estado no dia 8 de janeiro, mas se ele concorreu para que esse evento tivesse ocorrido, ele responde nos termos da lei. Não adianta a pessoa dizer que não estava no 8 de Janeiro, se ela participou de uma série de atos que culminaram com esse evento”, afirmou o juiz Cristiano Zanin no julgamento, ao lembrar o chamado “concurso de pessoas”. Pelo artigo 29 do Código Penal, “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Com a abertura de ação penal, o Supremo agora verificará o que Bolsonaro e os demais réus fizeram para inspirar ou provocar o 8 de Janeiro, se há provas e qual a punição cabível para tais condutas. Haverá depoimentos, perícias e todas as medidas previstas em um processo sob uma democracia. Ou seja, os golpistas terão o amparo das leis que pretendiam abolir. Em Brasília, as apostas são de que o desfecho virá ainda em 2025.
Na denúncia da Procuradoria, a tentativa de golpe começa em julho de 2021, com uma live de Bolsonaro realizada com o intuito de minar a confiança popular nas urnas e na Justiça Eleitoral. Depois, houve uma reunião ministerial em julho de 2022 de teor golpista (o que fazer para impedir ou reverter a derrota na eleição), o evento com embaixadores estrangeiros para anunciar ao mundo o “roubo” no pleito, a preparação do decreto para anular o resultado das urnas e intervir no Tribunal Superior Eleitoral, os acampamentos na porta de quartéis e a pressão sobre as Forças Armadas. O capítulo final foi o 8 de janeiro de 2023.
O voto que preparou o caminho da ação penal e teve endosso unânime no STF foi arrasador até para o único juiz que fez alguns reparos ao caso e mostrou certa boa vontade com linhas de defesa dos acusados. Em 1h50, Moraes rebateu um a um os argumentos expostos na véspera pelos advogados dos réus, um total também de 1h50 de sustentações orais. “O ministro Alexandre (de Moraes) não deixou pedra sobre pedra”, afirmou Luiz Fux, que considera necessário a Corte repensar o tamanho das penas aplicadas pelos crimes do 8 de Janeiro e quer participar do interrogatório do delator Mauro Cid. O Supremo condenou até agora 497 baderneiros pelo 8 de Janeiro. Do total, 249 (cerca de metade) tiveram penas de até três anos, 146 pegaram de 11 a 14 anos e 102, acima de 16 anos. São 68% de homens e 32% de mulheres. Os idosos, 8%. Os dados foram compilados por Moraes. O bolsonarismo quer convencer a opinião pública de que “velhinhas de bíblia na mão” e mães de família têm sido sentenciadas, e com mão pesada. O símbolo da campanha é a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. Ela pichou a frase “perdeu, mané” numa estátua em frente ao STF. Começou a ser julgada e há dois votos para puni-la com 14 anos de prisão. Fux pediu vistas, o que adiou a conclusão. Neste caso, ele parece propenso a levantar a discussão de revisão da dosimetria das penas.
Quanto à delação de Cid, a anulação foi requerida por Bolsonaro e Braga Netto. Os advogados da dupla dizem que o tenente-coronel mentiu. Cid prestou nove depoimentos na delação. O último, em novembro de 2024, serviu para explicar por que havia escondido informações. A omissão quase lhe custou o cancelamento do acordo. A colaboração não o livra da ação penal, ele também se tornou réu. Caberá à Corte decidir, no processo, o beneficio que ele merece. O delator pediu pena máxima de dois anos e que sua família não seja processada. Ao aceitar a denúncia contra Bolsonaro, Cid e cia., o STF rejeitou por unanimidade a anulação.
Com a vida difícil perante a lei, Bolsonaro apela à política. Insiste na ideia de o Congresso aprovar anistia a golpista. Após a manifestação esvaziada no Rio de Janeiro em 16 de março, convocou apoiadores para outra, em 6 de abril, em São Paulo. Na mesma Avenida Paulista ocorrerá em 30 de março um ato de propósito oposto: sem anistia. A eventual vitória de um aliado na eleição presidencial de 2026 poderia ainda lhe garantir perdão. Foi o que Donald Trump fez em relação os golpistas norte-americanos que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O capitão sonha ainda com um bote salva-vidas de Trump. Seu filho deputado, Eduardo, está em autoexílio nos EUA e promete infernizar a vida de Moraes. Elon Musk, dono do ex-Twitter e conselheiro de Trump, juntou-se à trincheira. No julgamento que tornou Bolsonaro réu, escreveu em sua rede social: “Alexandre de Moraes não tem bens nos EUA?”
“Nós sabemos que as milícias digitais continuam atuando, inclusive durante este julgamento (…), na tentativa de intimidar o Poder Judiciário”, comentou o magistrado. “Não perceberam que se até agora não intimidaram o Poder Judiciário, não vão. Seja com milícias digitais nacionais ou estrangeiras.”
André Barrocal
A Máquina do Golpe sustenta que a ditadura instaurada em 1964 resultou de duas décadas de ruminações. “Não se faz golpe num dia”, afirmou a magistrada.
A acusação pela qual Bolsonaro é réu compõe-se de vários capítulos. O primeiro é de 29 de julho de 2021 e o último, de 8 de janeiro de 2023. Não houve mortes dois anos atrás em Brasília, como não tinha havido em 1964. Já violência… Marcela da Silva Pinno, policial militar de serviço naquele dia, teve o capacete arrebentado por uma barra de ferro, como descreveu em uma CPI do Congresso em 2023. Um trecho de seu depoimento à comissão parlamentar integra um vídeo de cinco minutos exibido no Supremo na quarta-feira 26 com um apanhado de atos violentos praticados por bolsonaristas no 8 de Janeiro. O vídeo foi idealizado pelo juiz Alexandre de Moraes, relator do processo contra o ex-presidente. Para o togado, é importante enfrentar um fenômeno descrito na academia como “viés de positividade”. Este consiste em romantizar memórias. “Isso não é violência?”, perguntou ele, enquanto as imagens eram exibidas.
Bolsonaro reclamou do vídeo, por não constar dos autos. Segundo Moraes, os códigos Penal e de Processo Penal admitem o uso de fatos notórios em um julgamento. O capitão poderia tê-lo visto in loco, mas sua coragem esgotara-se. A Primeira Turma do STF, de cinco magistrados, levou dois dias para examinar a denúncia contra o capitão e seus comparsas proposta pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Na terça-feira 25 (três horas pela manhã, três à tarde) e no dia seguinte (três horas matinais). De surpresa, o ex-presidente tinha ido ao tribunal na terça, aparente demonstração de valentia que durou 24 horas. No dia seguinte, preferiu acompanhar a sessão no aconchego do gabinete de Flávio, o filho senador. No tribunal, sentara-se na primeira fila da sala. Perto, estavam dois familiares de vítimas da ditadura que ele enaltece. Hildegard Angel, irmã de Stuart Angel, estudante assassinado em 1971, e Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, jornalista “suicidado” em 1975.
Nenhum fardado daquele regime assassino prestou contas à Justiça. Agora, Bolsonaro, os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e Walter Braga Netto, o almirante Almir Garnier e o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid serão julgados, ao lado dos delegados federais Alexandre Ramagem e Anderson Torres. O octeto integra o que Gonet chama de “núcleo crucial” do golpe. Os cabeças, na falta de um termo melhor. O procurador-geral apresentou denúncias contra mais quatro “núcleos”, compostos ao todo por 26 conspiradores, dos quais 19 das Forças Armadas. Todos os nomeados, assinala Gonet, pertenciam a uma organização criminosa “com forte influência de setores militares” e “liderada” pelo ex-presidente. Três núcleos já têm data para saber se virarão réus: 9 e 30 de abril e 7 de maio.
Nesses julgamentos, o STF decide se a denúncia da Procuradoria reúne elementos suficientes para dar continuidade ao processo. No caso do “núcleo crucial”, a Primeira Turma entendeu que sim, por unanimidade (5 a 0). O ilícito principal estava no vídeo de Moraes. Diz o artigo 359-M, do Código Penal: é crime “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Em 8 de janeiro de 2023, havia faixas a clamar por uma intervenção militar. A invasão do Supremo e do Congresso caracteriza ainda o crime do artigo 359-L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. “Vamos entrar e tomar o que é nosso, vamos entrar e tomar o poder”, afirmava um manifestante no vídeo.
A Procuradoria selou 532 acordos para encerrar processos contra insurrectos. Estes confessaram que o objetivo era conseguir a intervenção militar. “Golpe tem povo, mas tem tropa, tem armas e tem liderança. Um ano, dois anos de investigação, não descobriram quem porventura seria esse líder”, disse Bolsonaro na porta do Senado, após se tornar réu, em pronunciamento no qual se declarou perseguido e voltou a atacar as urnas eletrônicas.
O golpe de 1964 não teve liderança única. O início da derrubada de João Goulart deu-se com o deslocamento de tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, então capital do País. À frente, o general Olímpio Mourão Filho, mas o ditador seria o marechal Humberto Castelo Branco. Outro general Mourão, o senador Hamilton, ex-vice de Bolsonaro, escreveu no ano passado, no aniversário do regime: “A Nação se salvou de si mesma”. Agora, ataca (e ameaça) o STF por fazer de Bolsonaro réu: “Se o povo constatar cabalmente que a lei tem lado e a Carta Magna é ignorada, pois não protege a todos, não sabemos o que pode acontecer”.
O capitão também não quer ser responsabilizado pelas destruições patrimoniais superiores a 20 milhões de reais causados por seus partidários em Brasília. Seu octeto é réu por dano ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado, além de quadrilha, tentativa de golpe e de abolição do Estado de Direito. “Destruição, eu?”, disse o capitão, ao ressaltar que estava nos Estados Unidos desde 30 de dezembro de 2022. “Não necessariamente o acusado tenha que ter estado no dia 8 de janeiro, mas se ele concorreu para que esse evento tivesse ocorrido, ele responde nos termos da lei. Não adianta a pessoa dizer que não estava no 8 de Janeiro, se ela participou de uma série de atos que culminaram com esse evento”, afirmou o juiz Cristiano Zanin no julgamento, ao lembrar o chamado “concurso de pessoas”. Pelo artigo 29 do Código Penal, “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Com a abertura de ação penal, o Supremo agora verificará o que Bolsonaro e os demais réus fizeram para inspirar ou provocar o 8 de Janeiro, se há provas e qual a punição cabível para tais condutas. Haverá depoimentos, perícias e todas as medidas previstas em um processo sob uma democracia. Ou seja, os golpistas terão o amparo das leis que pretendiam abolir. Em Brasília, as apostas são de que o desfecho virá ainda em 2025.
Na denúncia da Procuradoria, a tentativa de golpe começa em julho de 2021, com uma live de Bolsonaro realizada com o intuito de minar a confiança popular nas urnas e na Justiça Eleitoral. Depois, houve uma reunião ministerial em julho de 2022 de teor golpista (o que fazer para impedir ou reverter a derrota na eleição), o evento com embaixadores estrangeiros para anunciar ao mundo o “roubo” no pleito, a preparação do decreto para anular o resultado das urnas e intervir no Tribunal Superior Eleitoral, os acampamentos na porta de quartéis e a pressão sobre as Forças Armadas. O capítulo final foi o 8 de janeiro de 2023.
O voto que preparou o caminho da ação penal e teve endosso unânime no STF foi arrasador até para o único juiz que fez alguns reparos ao caso e mostrou certa boa vontade com linhas de defesa dos acusados. Em 1h50, Moraes rebateu um a um os argumentos expostos na véspera pelos advogados dos réus, um total também de 1h50 de sustentações orais. “O ministro Alexandre (de Moraes) não deixou pedra sobre pedra”, afirmou Luiz Fux, que considera necessário a Corte repensar o tamanho das penas aplicadas pelos crimes do 8 de Janeiro e quer participar do interrogatório do delator Mauro Cid. O Supremo condenou até agora 497 baderneiros pelo 8 de Janeiro. Do total, 249 (cerca de metade) tiveram penas de até três anos, 146 pegaram de 11 a 14 anos e 102, acima de 16 anos. São 68% de homens e 32% de mulheres. Os idosos, 8%. Os dados foram compilados por Moraes. O bolsonarismo quer convencer a opinião pública de que “velhinhas de bíblia na mão” e mães de família têm sido sentenciadas, e com mão pesada. O símbolo da campanha é a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos. Ela pichou a frase “perdeu, mané” numa estátua em frente ao STF. Começou a ser julgada e há dois votos para puni-la com 14 anos de prisão. Fux pediu vistas, o que adiou a conclusão. Neste caso, ele parece propenso a levantar a discussão de revisão da dosimetria das penas.
Quanto à delação de Cid, a anulação foi requerida por Bolsonaro e Braga Netto. Os advogados da dupla dizem que o tenente-coronel mentiu. Cid prestou nove depoimentos na delação. O último, em novembro de 2024, serviu para explicar por que havia escondido informações. A omissão quase lhe custou o cancelamento do acordo. A colaboração não o livra da ação penal, ele também se tornou réu. Caberá à Corte decidir, no processo, o beneficio que ele merece. O delator pediu pena máxima de dois anos e que sua família não seja processada. Ao aceitar a denúncia contra Bolsonaro, Cid e cia., o STF rejeitou por unanimidade a anulação.
Com a vida difícil perante a lei, Bolsonaro apela à política. Insiste na ideia de o Congresso aprovar anistia a golpista. Após a manifestação esvaziada no Rio de Janeiro em 16 de março, convocou apoiadores para outra, em 6 de abril, em São Paulo. Na mesma Avenida Paulista ocorrerá em 30 de março um ato de propósito oposto: sem anistia. A eventual vitória de um aliado na eleição presidencial de 2026 poderia ainda lhe garantir perdão. Foi o que Donald Trump fez em relação os golpistas norte-americanos que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O capitão sonha ainda com um bote salva-vidas de Trump. Seu filho deputado, Eduardo, está em autoexílio nos EUA e promete infernizar a vida de Moraes. Elon Musk, dono do ex-Twitter e conselheiro de Trump, juntou-se à trincheira. No julgamento que tornou Bolsonaro réu, escreveu em sua rede social: “Alexandre de Moraes não tem bens nos EUA?”
“Nós sabemos que as milícias digitais continuam atuando, inclusive durante este julgamento (…), na tentativa de intimidar o Poder Judiciário”, comentou o magistrado. “Não perceberam que se até agora não intimidaram o Poder Judiciário, não vão. Seja com milícias digitais nacionais ou estrangeiras.”
André Barrocal
Vale a pena ser honesto no Brasil?
Era para ser um almoço em família como qualquer outro. Mas, lá pelas tantas, Gilberto Braga (1945-2021) quase se engasgou com a comida ao ouvir um comentário do irmão: "Tio Darcy poderia estar rico", comentou Ronaldo, se referindo ao irmão de sua mãe, Yedda, que trabalhava como delegado na Polícia Federal. "Nunca trouxe uma garrafa de uísque", queixou-se. Passado o susto, Gilberto resolveu tomar a palavra: "Você acha que alguém não pode ser honesto e ganhar dinheiro?". Como sua pergunta ficou sem resposta, ele insistiu: "Não vale a pena ser honesto no Brasil?"
A cena acima é descrita na biografia Gilberto Braga – O Balzac da Globo, escrita pelos jornalistas Artur Xexéo (1951-2021) e Maurício Stycer. "Pela primeira vez em sua carreira, Gilberto Braga definiu o tema de uma novela antes mesmo de ter uma história para contar", explicam os autores no livro. "Uma novela sobre ética, determinada a responder: ‘Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?'".
No mesmo dia do tal almoço em família, Gilberto Braga começou a escrever a sinopse daquela que seria uma de suas novelas de maior audiência: Vale Tudo. Exibida entre 16 de maio de 1988 e 6 de janeiro de 1989, fez tanto sucesso que, no aniversário de 60 anos da TV Globo, ganha uma nova versão, assinada por Manuela Dias, autora da novela Amor de Mãe e da série Justiça, entre outras produções.
"Não acho, de forma alguma, que o Brasil seja um país onde ‘todo mundo é desonesto'. Pelo contrário. Acho que o brasileiro é majoritariamente honesto e trabalhador", defende Manuela Dias, que assistiu à versão original quando tinha 11 anos e, ainda hoje, não se esquece de algumas cenas memoráveis, como aquela em que Raquel (interpretada por Regina Duarte) rasga o vestido de noiva da filha, Maria de Fátima (papel de Glória Pires). "Sou do time que acha que vale muito a pena ser honesto, tanto no Brasil quanto em qualquer lugar. Caráter é o que você faz quando não tem ninguém olhando", diz, citando uma frase atribuída ao filósofo Epicuro.
Mas Gilberto Braga não foi o primeiro a se questionar: "Vale a pena ser honesto? ". Segundo o economista Eduardo Giannetti, essa pergunta é feita desde Platão, na Grécia Antiga. No segundo livro de A República, o filósofo grego relata a fábula de um camponês que, certo dia, encontra o anel da invisibilidade. "Quem continuaria honesto se pudesse ficar invisível? ", indaga o autor de O Anel de Giges.
"Sócrates, então, tenta mostrar que, sim, vale a pena ser honesto mesmo em uma situação de total impunidade", afirma Giannetti. No caso de Vale Tudo, o economista pondera que, desde 1989, o caráter do brasileiro não mudou – o que mudou, e muito, foi a situação do país. "A derrocada do Cruzado e a volta da inflação tornavam todos os valores do sistema econômico brasileiro muito arbitrários e imprevisíveis", explica o economista. "Havia uma insegurança generalizada em relação ao futuro do país. O que predominava era a lei da selva: o salve-se quem puder."
Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Giannetti ressalta que a sociedade brasileira só conseguiu respirar aliviada em 1994 quando foi instituído o Plano Real. Mesmo assim, duas características ainda dificultam nossa adesão às normas de convivência: o individualismo exacerbado, quando se pensa muito em si mesmo e pouco, ou quase nada, no outro, e a miopia temporal, quando se privilegia o agora em detrimento do depois.
"O trânsito brasileiro talvez seja a melhor ilustração do nosso individualismo", observa Giannetti. "É como dizia aquele antigo comercial de TV: o negócio é levar vantagem em tudo", recorda, citando o anúncio do cigarro Vila Rica, apresentado pelo ex-jogador Gerson. Já a miopia temporal, explica, é o primado do presente em relação ao futuro. "As pessoas agem muito tendo em vista o imediato. Tudo que requer sacrifício momentâneo para obtenção de benefícios futuros é complicado no Brasil. Isso compromete todo e qualquer planejamento a longo prazo", adverte.
A exemplo de Giannetti, o filósofo Clóvis de Barros Filho, a historiadora Mary Del Priore e o antropólogo Roberto Da Matta também são convidados a responder a pergunta que, lá atrás, tanto inquietou Gilberto Braga: "Vale a pena ser honesto no Brasil? ".
Coautor do livro Ética e Vergonha na Cara!, ao lado do educador Mário Sérgio Cortella, Barros Filho responde que sim, vale a pena. E acrescenta: em qualquer tempo e lugar. "Não se trata de compensação. Mas, de fazer a coisa certa", afirma.
Indagado sobre se ética e honestidade são sinônimos, explica que não. Ética, ensina o "explicador", como ele gosta de ser chamado, é a arte da convivência. Já a honestidade, entre outros atributos, é uma referência de conduta. Para quem deseja viver em harmonia, ele dá uma dica: seja honesto! "A honestidade está para a ética assim como a aritmética está para a matemática", compara.
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mary Del Priore afirma que a desonestidade é uma característica que, há séculos, percorre o Brasil de alto a baixo. "Desde o período colonial, os interesses privados sempre se sobrepuseram aos interesses públicos", lamenta. "O ditado ‘Mateus, primeiro os meus' era regra."
A autora da coleção Histórias da Gente Brasileira afirma que, se tivesse que enumerar alguns trambiqueiros dos períodos colonial, imperial e republicano, a lista seria enorme. Mas, há, também, exemplos de probidade, e o melhor deles é Dom Pedro 2°. "Nunca quis um tostão dos cofres públicos", enfatiza. "Morreu pobre e no exílio".
Quanto à pergunta de Gilberto Braga, ela diz que continua atualíssima. E que, em todos os grupos sociais, avançamos pouco desde 1988. "Somos os únicos desonestos? Não. O atual presidente dos Estados Unidos dá o maior exemplo: responde a processos por enriquecimento ilícito, compra de favores, fraude eleitoral... Quer mais?"
Uma resposta desconcertante é a do antropólogo Roberto Da Matta. "Vale a pena, mas é difícil", diz. "Ser honesto é tão difícil quanto não mentir. Se você vive em sociedade, é impossível", acrescenta. Da Matta é autor de uma crônica intitulada "História de Pedro Honorato, o Político Honesto".
Filho de mãe rezadeira e pai lavrador, Pedro Honorato, quando garoto, prometeu a Deus ser honesto. E procurou cumprir sua promessa. Adulto, candidatou-se a prefeito. Foi eleito. De cara, demitiu duas funcionárias que não trabalhavam: a sobrinha de um senador e a amante do ex-prefeito. Logo, começou a colecionar desafetos. Um dia, negou um pedido à própria mulher. Foi a gota d'água.
"No fim, o pobre coitado não tinha onde morar. Foi expulso de casa porque não quis nomear o cunhado como secretário. Na rua da amargura, pergunta para si mesmo: o que fiz de errado?", observa o antropólogo. "Tem um axioma que explica o Brasil: tenho coragem para fazer tudo, menos para negar o pedido de um amigo."
O compositor Nilo Romero e o ator Reginaldo Faria participaram da versão original de Vale Tudo. O primeiro é coautor de Brasil, tema de abertura da novela, ao lado de Cazuza (1958-1990) e George Israel. O segundo deu vida ao empresário Marco Aurélio – aquele que, a bordo de seu jatinho, dá uma "banana" para o telespectador.
Nilo Romero conta que Brasil foi criada por encomenda: não para Vale Tudo, mas para Rádio Pirata (1987), longa de Lael Rodrigues (1951-1989). Na hora de compor a música, ele e Israel misturaram samba e rock. Em seguida, mandaram uma fita cassete para Cazuza. "A versão dele chegou a tocar nas rádios, mas o insucesso do filme fez parecer que sua trajetória como hit terminaria rapidamente", avalia.
Nisso, Gilberto Braga assistiu ao show de Gal Costa e resolveu usar a versão dela como tema de abertura. "Brasil foi escolhida na sexta-feira anterior à estreia. A música foi gravada no sábado, Gal Costa colocou a voz no domingo e a novela estreou na segunda", conta Romero.
Quando recebeu o convite do diretor Dennis Carvalho para interpretar o mau-caráter Marco Aurélio, Reginaldo Faria pensou: "Vou apanhar na rua". Braço direito de Odete Roitman (papel de Beatriz Segall), desviava dinheiro da companhia aérea TCA, onde era diretor, para sua conta bancária. Ao longo da novela, porém, não levou uma "guarda-chuvada" sequer.
"Por incrível que pareça, Marco Aurélio não foi odiado pelo público. Eu era aplaudido por onde andava. O público se identificava com ele e, se pudesse, daria uma ‘banana' em seu lugar. Não para o Brasil, mas para quem afundou o Brasil", reflete o ator.
Que fim levou Marco Aurélio? Quem arrisca um palpite é Ana Paula Guimarães, autora do livro O Brasil Mostra Sua Cara – Vale Tudo, A Telenovela Que Escancarou a Elite e a Corrupção Brasileira: "Acho improvável que ele tenha se regenerado. É mais provável que tenha voltado ao Brasil e se candidatado a um cargo público nas próximas eleições. Isso, infelizmente, é muito Brasil!".
A cena acima é descrita na biografia Gilberto Braga – O Balzac da Globo, escrita pelos jornalistas Artur Xexéo (1951-2021) e Maurício Stycer. "Pela primeira vez em sua carreira, Gilberto Braga definiu o tema de uma novela antes mesmo de ter uma história para contar", explicam os autores no livro. "Uma novela sobre ética, determinada a responder: ‘Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?'".
No mesmo dia do tal almoço em família, Gilberto Braga começou a escrever a sinopse daquela que seria uma de suas novelas de maior audiência: Vale Tudo. Exibida entre 16 de maio de 1988 e 6 de janeiro de 1989, fez tanto sucesso que, no aniversário de 60 anos da TV Globo, ganha uma nova versão, assinada por Manuela Dias, autora da novela Amor de Mãe e da série Justiça, entre outras produções.
"Não acho, de forma alguma, que o Brasil seja um país onde ‘todo mundo é desonesto'. Pelo contrário. Acho que o brasileiro é majoritariamente honesto e trabalhador", defende Manuela Dias, que assistiu à versão original quando tinha 11 anos e, ainda hoje, não se esquece de algumas cenas memoráveis, como aquela em que Raquel (interpretada por Regina Duarte) rasga o vestido de noiva da filha, Maria de Fátima (papel de Glória Pires). "Sou do time que acha que vale muito a pena ser honesto, tanto no Brasil quanto em qualquer lugar. Caráter é o que você faz quando não tem ninguém olhando", diz, citando uma frase atribuída ao filósofo Epicuro.
Mas Gilberto Braga não foi o primeiro a se questionar: "Vale a pena ser honesto? ". Segundo o economista Eduardo Giannetti, essa pergunta é feita desde Platão, na Grécia Antiga. No segundo livro de A República, o filósofo grego relata a fábula de um camponês que, certo dia, encontra o anel da invisibilidade. "Quem continuaria honesto se pudesse ficar invisível? ", indaga o autor de O Anel de Giges.
"Sócrates, então, tenta mostrar que, sim, vale a pena ser honesto mesmo em uma situação de total impunidade", afirma Giannetti. No caso de Vale Tudo, o economista pondera que, desde 1989, o caráter do brasileiro não mudou – o que mudou, e muito, foi a situação do país. "A derrocada do Cruzado e a volta da inflação tornavam todos os valores do sistema econômico brasileiro muito arbitrários e imprevisíveis", explica o economista. "Havia uma insegurança generalizada em relação ao futuro do país. O que predominava era a lei da selva: o salve-se quem puder."
Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Giannetti ressalta que a sociedade brasileira só conseguiu respirar aliviada em 1994 quando foi instituído o Plano Real. Mesmo assim, duas características ainda dificultam nossa adesão às normas de convivência: o individualismo exacerbado, quando se pensa muito em si mesmo e pouco, ou quase nada, no outro, e a miopia temporal, quando se privilegia o agora em detrimento do depois.
"O trânsito brasileiro talvez seja a melhor ilustração do nosso individualismo", observa Giannetti. "É como dizia aquele antigo comercial de TV: o negócio é levar vantagem em tudo", recorda, citando o anúncio do cigarro Vila Rica, apresentado pelo ex-jogador Gerson. Já a miopia temporal, explica, é o primado do presente em relação ao futuro. "As pessoas agem muito tendo em vista o imediato. Tudo que requer sacrifício momentâneo para obtenção de benefícios futuros é complicado no Brasil. Isso compromete todo e qualquer planejamento a longo prazo", adverte.
A exemplo de Giannetti, o filósofo Clóvis de Barros Filho, a historiadora Mary Del Priore e o antropólogo Roberto Da Matta também são convidados a responder a pergunta que, lá atrás, tanto inquietou Gilberto Braga: "Vale a pena ser honesto no Brasil? ".
Coautor do livro Ética e Vergonha na Cara!, ao lado do educador Mário Sérgio Cortella, Barros Filho responde que sim, vale a pena. E acrescenta: em qualquer tempo e lugar. "Não se trata de compensação. Mas, de fazer a coisa certa", afirma.
Indagado sobre se ética e honestidade são sinônimos, explica que não. Ética, ensina o "explicador", como ele gosta de ser chamado, é a arte da convivência. Já a honestidade, entre outros atributos, é uma referência de conduta. Para quem deseja viver em harmonia, ele dá uma dica: seja honesto! "A honestidade está para a ética assim como a aritmética está para a matemática", compara.
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mary Del Priore afirma que a desonestidade é uma característica que, há séculos, percorre o Brasil de alto a baixo. "Desde o período colonial, os interesses privados sempre se sobrepuseram aos interesses públicos", lamenta. "O ditado ‘Mateus, primeiro os meus' era regra."
A autora da coleção Histórias da Gente Brasileira afirma que, se tivesse que enumerar alguns trambiqueiros dos períodos colonial, imperial e republicano, a lista seria enorme. Mas, há, também, exemplos de probidade, e o melhor deles é Dom Pedro 2°. "Nunca quis um tostão dos cofres públicos", enfatiza. "Morreu pobre e no exílio".
Quanto à pergunta de Gilberto Braga, ela diz que continua atualíssima. E que, em todos os grupos sociais, avançamos pouco desde 1988. "Somos os únicos desonestos? Não. O atual presidente dos Estados Unidos dá o maior exemplo: responde a processos por enriquecimento ilícito, compra de favores, fraude eleitoral... Quer mais?"
Uma resposta desconcertante é a do antropólogo Roberto Da Matta. "Vale a pena, mas é difícil", diz. "Ser honesto é tão difícil quanto não mentir. Se você vive em sociedade, é impossível", acrescenta. Da Matta é autor de uma crônica intitulada "História de Pedro Honorato, o Político Honesto".
Filho de mãe rezadeira e pai lavrador, Pedro Honorato, quando garoto, prometeu a Deus ser honesto. E procurou cumprir sua promessa. Adulto, candidatou-se a prefeito. Foi eleito. De cara, demitiu duas funcionárias que não trabalhavam: a sobrinha de um senador e a amante do ex-prefeito. Logo, começou a colecionar desafetos. Um dia, negou um pedido à própria mulher. Foi a gota d'água.
"No fim, o pobre coitado não tinha onde morar. Foi expulso de casa porque não quis nomear o cunhado como secretário. Na rua da amargura, pergunta para si mesmo: o que fiz de errado?", observa o antropólogo. "Tem um axioma que explica o Brasil: tenho coragem para fazer tudo, menos para negar o pedido de um amigo."
O compositor Nilo Romero e o ator Reginaldo Faria participaram da versão original de Vale Tudo. O primeiro é coautor de Brasil, tema de abertura da novela, ao lado de Cazuza (1958-1990) e George Israel. O segundo deu vida ao empresário Marco Aurélio – aquele que, a bordo de seu jatinho, dá uma "banana" para o telespectador.
Nilo Romero conta que Brasil foi criada por encomenda: não para Vale Tudo, mas para Rádio Pirata (1987), longa de Lael Rodrigues (1951-1989). Na hora de compor a música, ele e Israel misturaram samba e rock. Em seguida, mandaram uma fita cassete para Cazuza. "A versão dele chegou a tocar nas rádios, mas o insucesso do filme fez parecer que sua trajetória como hit terminaria rapidamente", avalia.
Nisso, Gilberto Braga assistiu ao show de Gal Costa e resolveu usar a versão dela como tema de abertura. "Brasil foi escolhida na sexta-feira anterior à estreia. A música foi gravada no sábado, Gal Costa colocou a voz no domingo e a novela estreou na segunda", conta Romero.
Quando recebeu o convite do diretor Dennis Carvalho para interpretar o mau-caráter Marco Aurélio, Reginaldo Faria pensou: "Vou apanhar na rua". Braço direito de Odete Roitman (papel de Beatriz Segall), desviava dinheiro da companhia aérea TCA, onde era diretor, para sua conta bancária. Ao longo da novela, porém, não levou uma "guarda-chuvada" sequer.
"Por incrível que pareça, Marco Aurélio não foi odiado pelo público. Eu era aplaudido por onde andava. O público se identificava com ele e, se pudesse, daria uma ‘banana' em seu lugar. Não para o Brasil, mas para quem afundou o Brasil", reflete o ator.
Que fim levou Marco Aurélio? Quem arrisca um palpite é Ana Paula Guimarães, autora do livro O Brasil Mostra Sua Cara – Vale Tudo, A Telenovela Que Escancarou a Elite e a Corrupção Brasileira: "Acho improvável que ele tenha se regenerado. É mais provável que tenha voltado ao Brasil e se candidatado a um cargo público nas próximas eleições. Isso, infelizmente, é muito Brasil!".
sexta-feira, 28 de março de 2025
Depois do Genocídio em Gaza, 'pior' ainda é possível?
Gaza expôs completamente a violência ilimitada inerente a um estado colonial de colonos. O genocídio de Israel visa extinguir tudo o que é palestino, o povo, a água que bebem, a comida que comem e as árvores que cultivam.
Embora sacrossantos sob a lei internacional, todos os hospitais e clínicas de Gaza foram parcial ou totalmente destruídos desde outubro de 2023. A destruição inclui o centro de fertilidade Basma IVF e os 4.000 embriões armazenados lá, portanto, os palestinos foram mortos antes mesmo de nascer.
Israel acaba de destruir o Hospital da Amizade Turco-Palestina, especializado em oncologia. Ele foi minado de ponta a ponta e explodido enquanto os soldados que cometeram esse novo crime de guerra ficaram parados e assistiram.
Dias depois, a unidade de emergência do Complexo Médico Nasser foi alvo de um ataque com mísseis que matou cinco pessoas e feriu outras.
Israel começou a bombardear o hospital Nasser no final de 2023, matando ou ferindo pacientes e funcionários. De fevereiro a abril de 2024, o hospital foi sitiado, com atiradores atirando no hospital e em qualquer pessoa nas proximidades. A ONU o descreveu como "um lugar de morte". Depois que as forças de ocupação se retiraram, 300 corpos foram descobertos de uma vala comum.
Em março de 2025, violando o cessar-fogo, Israel retomou seus ataques a Gaza, assassinando mais de 600 pessoas em uma semana, incluindo centenas de crianças. A destruição de mais um hospital, bem como o ataque a outro, é um aviso prévio de que um estado que comete tais crimes depois de mais de 18 meses já gastos massacrando civis é capaz de qualquer coisa.
No entanto, enquanto as pessoas do mundo estão horrorizadas com o que estão vendo, seus governos não estão. Não é apenas o genocídio. Israel, totalmente apoiado pelo governo dos EUA, está destruindo o direito internacional. Os últimos 2000 anos de desenvolvimento de códigos de comportamento civilizado por estados parecem uma perda de tempo.
Somente outros governos podem impedir isso, mas eles estão escolhendo não impedir. Alguns estão ajudando e encorajando isso, fornecendo armas a Israel para que ele possa continuar matando, mantendo relações diplomáticas e comerciais com esse estado criminoso e emitindo declarações que cheiram a covardia e hipocrisia.
O primeiro-ministro da Austrália, Anthony Albanese, reagiu à última rodada de destruição com uma declaração repetindo a linha oficial de pedir um cessar-fogo e continuar trabalhando em direção a uma solução de dois estados. Está completamente fora de sintonia com a realidade. Israel não respeita cessar-fogo e a solução de "dois estados" está abandonada na poeira com todas as outras "soluções".
Em uma época de genocídio, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, foi ainda mais longe e orgulhosamente se autodenominou sionista.
Agora, o Iêmen e o Irã estão na tábua de corte com o cutelo em riste acima deles. Trump ameaçou Ansarallah (os Houthis) com "aniquilação completa" e alertou o Irã sobre "consequências terríveis" se continuar a apoiá-los. O Iêmen do Norte sobreviveu ao ataque genocida da Arábia Saudita e agora está ameaçado com outro.
Os presidentes dos EUA vêm ameaçando o Irã desde 1979, então Trump está apenas mais perto da linha vermelha de um ataque total. Como qualquer um com um mínimo de massa cerebral sabe, o Irã não é o problema. O problema é Israel. Se os EUA estão se preparando para um ataque ao Irã, é por causa de Israel e nada mais, mas provavelmente vai levar o rescaldo de uma guerra devastadora para os EUA perceberem isso.
“De agora em diante, cada bala disparada pelos Houthis será considerada como disparada por armas e liderança iranianas”, disse Trump. “O Irã será responsabilizado por isso e terá que enfrentar as consequências, que serão muito terríveis.” Ele também deu a Israel o “direito” de tomar medidas independentes contra o Irã. Na verdade, Israel nunca atacaria o Irã sem planejamento, consentimento e envolvimento dos EUA, como todas as guerras de Israel, com a única exceção do ataque ao Egito em 1956. Mesmo que lançasse um ataque supostamente independente, sabe que os EUA teriam que apoiá-lo de qualquer maneira.
Há um amplo consenso entre as agências de inteligência dos EUA de que Israel atacará o Irã este ano, possivelmente já em maio, como sugerido pelo Washington Post . Os alvos seriam instalações nucleares, defesas aéreas, locais de mísseis balísticos e possivelmente campos de petróleo. Tal ataque seria extremamente complexo e além da capacidade de Israel de realizar sozinho.
Por exemplo, as plantas de centrífuga Fordow e Natanz estão enterradas até 100 metros de profundidade sob concreto e rocha. A única maneira de chegar até elas seria através do uso da bomba 'Massive Ordnance Penetrator' GBU-57A/B, de fabricação norte-americana, que pesa 13,2 toneladas e só poderia ser transportada por um bombardeiro B2 Spirit dos EUA.
Se a primeira bomba não tiver sucesso, várias bombas seriam lançadas, cada uma delas enterrando-se mais fundo do que a anterior. Se bombardeios repetitivos não funcionarem, ainda há mais uma opção. Israel considera o Irã (ou escolhe considerá-lo) como uma ameaça existencial que justificaria o uso de armas nucleares.
Algumas das bombas MOP podem já ter sido lançadas como um teste em locais subterrâneos no Iêmen do Norte, onde o terreno montanhoso é semelhante à localização dos locais de Fordow e Natanz no Irã. No início de março de 2025, os EUA e Israel também enviaram uma mensagem clara ao Irã ao organizar um exercício aéreo conjunto envolvendo caças F15 e F35, aeronaves de reabastecimento e bombardeiros B52.
Como o extermínio se tornou comum em Israel, a vida humana seria a menor das suas preocupações. O bombardeio de instalações nucleares envenenaria a atmosfera sobre todos os vizinhos do Irã, dependendo de para onde o vento estivesse soprando.
O primeiro-ministro do Catar disse recentemente que se a usina nuclear costeira do Irã em Busheir fosse bombardeada, o mar seria contaminado e o Catar – que depende da dessalinização – ficaria sem água em três dias. “Sem água, sem peixes – sem vida”, ele disse.
O historiador Benny Morris acredita que se Israel não puder destruir as usinas nucleares do Irã com armas convencionais, “então pode não ter outra opção senão recorrer às suas capacidades não convencionais”. Se o fizesse, haveria “entendimento significativo” entre “espectadores internacionais”.
Outros também têm falado sobre escolher a opção nuclear. Yair Katz, o chefe do conselho de trabalhadores da Indústria Aeroespacial de Israel, disse em junho de 2024 que "se o Irã, a Síria, o Líbano e o Iêmen decidirem acertar as contas com Israel, Tel Aviv tem a capacidade de usar armas do juízo final e destruir todos de uma vez por todas". Em novembro de 2023, o 'Ministro do Patrimônio' Amichai Eliyahu disse que lançar uma bomba nuclear em Gaza estava entre as "possibilidades".
Os sinais verdes de Trump abrem caminho para a guerra contra o Irã que Netanyahu deseja há muito tempo.
De forma alguma pode ser descartado que tal criminoso não usaria armas nucleares. Acredita-se que Israel tenha até 400 delas, variando de bombas de nêutrons e bombas táticas e estratégicas até bombas de mala.
Datando da década de 1950, tanto os EUA – por meio do programa "átomos pela paz" do presidente Eisenhower – quanto a França ajudaram Israel a desenvolver uma capacidade nuclear. Após a guerra de Suez de 1956, a França deu a Israel um pequeno reator, como compensação por ter sido forçado a deixar o Sinai pelo presidente Eisenhower enquanto ainda estava sendo ameaçado de extermínio por estados árabes, de acordo com Israel.
A França então forneceu a Israel o reator de Dimona e tudo o que era necessário para produzir armas nucleares, independentemente de essa ser sua intenção. Cerca de US$ 40 milhões dos US$ 100 milhões — mais de um bilhão de dólares hoje — necessários para pagar a França foram levantados por meio de um apelo de arrecadação de fundos nos EUA.
Israel enganou repetidamente os EUA sobre o verdadeiro propósito de Dimona, mas as agências de inteligência gradualmente descobriram o que estava acontecendo.
A oportunidade de bloquear o desenvolvimento de armas nucleares de Israel surgiu no final da década de 1960, quando a adesão ao TNP era a contrapartida pelo fornecimento de aviões e tanques dos EUA que Israel queria.
Entretanto, na Casa Branca, Lyndon Johnson garantiu ao embaixador israelense, Yitzhak Rabin, que não se preocuparia com a pressão do Departamento de Estado porque Israel obteria os aviões e tanques sem ter que assinar o TNP.
Sabendo disso, Rabin se comportou com arrogância consumada. Quando autoridades do Departamento de Estado insistiram que Israel assinasse o TNP, desse uma garantia de que não desenvolveria armas nucleares e permitisse que inspetores dos EUA entrassem em Dimona, ele retrucou: “Vocês estão apenas vendendo armas. Como vocês acham que têm o direito de pedir todas essas coisas?”
Os EUA sabiam com quase 100 por cento de certeza antes da guerra de 1967 que Israel havia desenvolvido uma arma nuclear. A política de "opacidade" de não saber se ele desenvolveu ou não era uma mentira.
Assim encorajado, Israel sabia que no futuro só teria que pedir para obter o que queria, fossem as bombas agora fornecidas para destruir Gaza e o Líbano ou a guerra contra o Irã em algum momento deste ano. Como Israel sempre obtém o que quer, parece haver pouca chance agora de que tal guerra possa ser evitada.
Embora sacrossantos sob a lei internacional, todos os hospitais e clínicas de Gaza foram parcial ou totalmente destruídos desde outubro de 2023. A destruição inclui o centro de fertilidade Basma IVF e os 4.000 embriões armazenados lá, portanto, os palestinos foram mortos antes mesmo de nascer.
Israel acaba de destruir o Hospital da Amizade Turco-Palestina, especializado em oncologia. Ele foi minado de ponta a ponta e explodido enquanto os soldados que cometeram esse novo crime de guerra ficaram parados e assistiram.
Dias depois, a unidade de emergência do Complexo Médico Nasser foi alvo de um ataque com mísseis que matou cinco pessoas e feriu outras.
Israel começou a bombardear o hospital Nasser no final de 2023, matando ou ferindo pacientes e funcionários. De fevereiro a abril de 2024, o hospital foi sitiado, com atiradores atirando no hospital e em qualquer pessoa nas proximidades. A ONU o descreveu como "um lugar de morte". Depois que as forças de ocupação se retiraram, 300 corpos foram descobertos de uma vala comum.
Em março de 2025, violando o cessar-fogo, Israel retomou seus ataques a Gaza, assassinando mais de 600 pessoas em uma semana, incluindo centenas de crianças. A destruição de mais um hospital, bem como o ataque a outro, é um aviso prévio de que um estado que comete tais crimes depois de mais de 18 meses já gastos massacrando civis é capaz de qualquer coisa.
No entanto, enquanto as pessoas do mundo estão horrorizadas com o que estão vendo, seus governos não estão. Não é apenas o genocídio. Israel, totalmente apoiado pelo governo dos EUA, está destruindo o direito internacional. Os últimos 2000 anos de desenvolvimento de códigos de comportamento civilizado por estados parecem uma perda de tempo.
Somente outros governos podem impedir isso, mas eles estão escolhendo não impedir. Alguns estão ajudando e encorajando isso, fornecendo armas a Israel para que ele possa continuar matando, mantendo relações diplomáticas e comerciais com esse estado criminoso e emitindo declarações que cheiram a covardia e hipocrisia.
O primeiro-ministro da Austrália, Anthony Albanese, reagiu à última rodada de destruição com uma declaração repetindo a linha oficial de pedir um cessar-fogo e continuar trabalhando em direção a uma solução de dois estados. Está completamente fora de sintonia com a realidade. Israel não respeita cessar-fogo e a solução de "dois estados" está abandonada na poeira com todas as outras "soluções".
Em uma época de genocídio, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, foi ainda mais longe e orgulhosamente se autodenominou sionista.
Agora, o Iêmen e o Irã estão na tábua de corte com o cutelo em riste acima deles. Trump ameaçou Ansarallah (os Houthis) com "aniquilação completa" e alertou o Irã sobre "consequências terríveis" se continuar a apoiá-los. O Iêmen do Norte sobreviveu ao ataque genocida da Arábia Saudita e agora está ameaçado com outro.
Os presidentes dos EUA vêm ameaçando o Irã desde 1979, então Trump está apenas mais perto da linha vermelha de um ataque total. Como qualquer um com um mínimo de massa cerebral sabe, o Irã não é o problema. O problema é Israel. Se os EUA estão se preparando para um ataque ao Irã, é por causa de Israel e nada mais, mas provavelmente vai levar o rescaldo de uma guerra devastadora para os EUA perceberem isso.
“De agora em diante, cada bala disparada pelos Houthis será considerada como disparada por armas e liderança iranianas”, disse Trump. “O Irã será responsabilizado por isso e terá que enfrentar as consequências, que serão muito terríveis.” Ele também deu a Israel o “direito” de tomar medidas independentes contra o Irã. Na verdade, Israel nunca atacaria o Irã sem planejamento, consentimento e envolvimento dos EUA, como todas as guerras de Israel, com a única exceção do ataque ao Egito em 1956. Mesmo que lançasse um ataque supostamente independente, sabe que os EUA teriam que apoiá-lo de qualquer maneira.
Há um amplo consenso entre as agências de inteligência dos EUA de que Israel atacará o Irã este ano, possivelmente já em maio, como sugerido pelo Washington Post . Os alvos seriam instalações nucleares, defesas aéreas, locais de mísseis balísticos e possivelmente campos de petróleo. Tal ataque seria extremamente complexo e além da capacidade de Israel de realizar sozinho.
Por exemplo, as plantas de centrífuga Fordow e Natanz estão enterradas até 100 metros de profundidade sob concreto e rocha. A única maneira de chegar até elas seria através do uso da bomba 'Massive Ordnance Penetrator' GBU-57A/B, de fabricação norte-americana, que pesa 13,2 toneladas e só poderia ser transportada por um bombardeiro B2 Spirit dos EUA.
Se a primeira bomba não tiver sucesso, várias bombas seriam lançadas, cada uma delas enterrando-se mais fundo do que a anterior. Se bombardeios repetitivos não funcionarem, ainda há mais uma opção. Israel considera o Irã (ou escolhe considerá-lo) como uma ameaça existencial que justificaria o uso de armas nucleares.
Algumas das bombas MOP podem já ter sido lançadas como um teste em locais subterrâneos no Iêmen do Norte, onde o terreno montanhoso é semelhante à localização dos locais de Fordow e Natanz no Irã. No início de março de 2025, os EUA e Israel também enviaram uma mensagem clara ao Irã ao organizar um exercício aéreo conjunto envolvendo caças F15 e F35, aeronaves de reabastecimento e bombardeiros B52.
Como o extermínio se tornou comum em Israel, a vida humana seria a menor das suas preocupações. O bombardeio de instalações nucleares envenenaria a atmosfera sobre todos os vizinhos do Irã, dependendo de para onde o vento estivesse soprando.
O primeiro-ministro do Catar disse recentemente que se a usina nuclear costeira do Irã em Busheir fosse bombardeada, o mar seria contaminado e o Catar – que depende da dessalinização – ficaria sem água em três dias. “Sem água, sem peixes – sem vida”, ele disse.
O historiador Benny Morris acredita que se Israel não puder destruir as usinas nucleares do Irã com armas convencionais, “então pode não ter outra opção senão recorrer às suas capacidades não convencionais”. Se o fizesse, haveria “entendimento significativo” entre “espectadores internacionais”.
Outros também têm falado sobre escolher a opção nuclear. Yair Katz, o chefe do conselho de trabalhadores da Indústria Aeroespacial de Israel, disse em junho de 2024 que "se o Irã, a Síria, o Líbano e o Iêmen decidirem acertar as contas com Israel, Tel Aviv tem a capacidade de usar armas do juízo final e destruir todos de uma vez por todas". Em novembro de 2023, o 'Ministro do Patrimônio' Amichai Eliyahu disse que lançar uma bomba nuclear em Gaza estava entre as "possibilidades".
Os sinais verdes de Trump abrem caminho para a guerra contra o Irã que Netanyahu deseja há muito tempo.
De forma alguma pode ser descartado que tal criminoso não usaria armas nucleares. Acredita-se que Israel tenha até 400 delas, variando de bombas de nêutrons e bombas táticas e estratégicas até bombas de mala.
Datando da década de 1950, tanto os EUA – por meio do programa "átomos pela paz" do presidente Eisenhower – quanto a França ajudaram Israel a desenvolver uma capacidade nuclear. Após a guerra de Suez de 1956, a França deu a Israel um pequeno reator, como compensação por ter sido forçado a deixar o Sinai pelo presidente Eisenhower enquanto ainda estava sendo ameaçado de extermínio por estados árabes, de acordo com Israel.
A França então forneceu a Israel o reator de Dimona e tudo o que era necessário para produzir armas nucleares, independentemente de essa ser sua intenção. Cerca de US$ 40 milhões dos US$ 100 milhões — mais de um bilhão de dólares hoje — necessários para pagar a França foram levantados por meio de um apelo de arrecadação de fundos nos EUA.
Israel enganou repetidamente os EUA sobre o verdadeiro propósito de Dimona, mas as agências de inteligência gradualmente descobriram o que estava acontecendo.
A oportunidade de bloquear o desenvolvimento de armas nucleares de Israel surgiu no final da década de 1960, quando a adesão ao TNP era a contrapartida pelo fornecimento de aviões e tanques dos EUA que Israel queria.
Entretanto, na Casa Branca, Lyndon Johnson garantiu ao embaixador israelense, Yitzhak Rabin, que não se preocuparia com a pressão do Departamento de Estado porque Israel obteria os aviões e tanques sem ter que assinar o TNP.
Sabendo disso, Rabin se comportou com arrogância consumada. Quando autoridades do Departamento de Estado insistiram que Israel assinasse o TNP, desse uma garantia de que não desenvolveria armas nucleares e permitisse que inspetores dos EUA entrassem em Dimona, ele retrucou: “Vocês estão apenas vendendo armas. Como vocês acham que têm o direito de pedir todas essas coisas?”
Os EUA sabiam com quase 100 por cento de certeza antes da guerra de 1967 que Israel havia desenvolvido uma arma nuclear. A política de "opacidade" de não saber se ele desenvolveu ou não era uma mentira.
Assim encorajado, Israel sabia que no futuro só teria que pedir para obter o que queria, fossem as bombas agora fornecidas para destruir Gaza e o Líbano ou a guerra contra o Irã em algum momento deste ano. Como Israel sempre obtém o que quer, parece haver pouca chance agora de que tal guerra possa ser evitada.
O bastão passa de mão
Jair Bolsonaro chegando na terça-feira empertigado ao Supremo Tribunal Federal para assistir ao início da definição de seu destino lembrava um pouco o Fernando Collor que, em 1992, deixava o Palácio do Planalto de nariz em pé rumo ao ostracismo.
Não é de uma hora para outra que se vai da luz à sombra. No caso do ex-presidente, contudo, começam a ser notados os sinais de que pode até não querer "passar o bastão" em vida física, mas na política o cajado já lhe foge às mãos.
Quanto mais se firma a evidência de uma condenação que lhe acrescente anos de inelegibilidade aos oito aplicados pela Justiça Eleitoral e à perda dos direitos políticos, maior é a desenvoltura dos seus ainda aliados no engajamento da substituição.
O STF mal iniciara o julgamento da tentativa de golpe de Estado e atos correlatos quando três fidelíssimos integrantes do entorno do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) admitiram concorrer ao Palácio dos Bandeirantes em 2026.
No espaço de dois dias, Gilberto Kassab (PSD), secretário de Governo, o prefeito paulistano, Ricardo Nunes (MDB), e o presidente da Assembleia Legislativa, André do Prado (PL), apresentaram suas credenciais. Claro, "caso" Tarcísio desista da reeleição e decida disputar a Presidência.
A julgar pela inflexão da carruagem, parece que pode mesmo vir a ser o caso.
Réu cujas ações serão esmiuçadas nos próximos meses, Bolsonaro não tem o mesmo valor, de resto em via de desidratação desde o fim da Presidência. Ao fim da fase em que as peças eleitorais se mexem e iniciado o período em que se encaixam, daqui a mais ou menos um ano, valerá ainda menos, ante a condenação quase certa.
E não adianta pensar na repetição da estratégia de Lula em 2018. Por vários motivos: Bolsonaro não tem o mesmo capital político do petista, não domina sozinho o campo da direita emergente nem conta com a contrapartida da lealdade porque não soube dedicá-la a vários dos seus, jogados ao mar ao menor sinal de aproximação dos tubarões.
Dora Kramer
Não é de uma hora para outra que se vai da luz à sombra. No caso do ex-presidente, contudo, começam a ser notados os sinais de que pode até não querer "passar o bastão" em vida física, mas na política o cajado já lhe foge às mãos.
Quanto mais se firma a evidência de uma condenação que lhe acrescente anos de inelegibilidade aos oito aplicados pela Justiça Eleitoral e à perda dos direitos políticos, maior é a desenvoltura dos seus ainda aliados no engajamento da substituição.
O STF mal iniciara o julgamento da tentativa de golpe de Estado e atos correlatos quando três fidelíssimos integrantes do entorno do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) admitiram concorrer ao Palácio dos Bandeirantes em 2026.
No espaço de dois dias, Gilberto Kassab (PSD), secretário de Governo, o prefeito paulistano, Ricardo Nunes (MDB), e o presidente da Assembleia Legislativa, André do Prado (PL), apresentaram suas credenciais. Claro, "caso" Tarcísio desista da reeleição e decida disputar a Presidência.
A julgar pela inflexão da carruagem, parece que pode mesmo vir a ser o caso.
Réu cujas ações serão esmiuçadas nos próximos meses, Bolsonaro não tem o mesmo valor, de resto em via de desidratação desde o fim da Presidência. Ao fim da fase em que as peças eleitorais se mexem e iniciado o período em que se encaixam, daqui a mais ou menos um ano, valerá ainda menos, ante a condenação quase certa.
E não adianta pensar na repetição da estratégia de Lula em 2018. Por vários motivos: Bolsonaro não tem o mesmo capital político do petista, não domina sozinho o campo da direita emergente nem conta com a contrapartida da lealdade porque não soube dedicá-la a vários dos seus, jogados ao mar ao menor sinal de aproximação dos tubarões.
Dora Kramer
O que os media (ainda) têm para oferecer
No dia em que foi publicado o decreto-lei do Governo que “aprova o programa de oferta de assinaturas digitais de publicações periódicas a jovens entre os 15 e os 18 anos”, o projeto de cidadania digital YouNDgital revelou os dados de um inquérito feito a 1362 jovens residentes em Portugal sobre o modo como encaram as notícias.
A maioria dos inquiridos considera que as notícias são “tendenciosas” e “aborrecidas”, em especial quando se referem a temas como a política — os preferidos são desporto, tecnologia, entretenimento e saúde. Foram ouvidos jovens entre os 15 e os 24 anos (um pouco além da idade abrangida pelas assinaturas grátis de jornais).
O estudo divide os participantes em quatro categorias reveladoras: “exploradores digitais centrados no lazer”; “exploradores digitais de temas variados”; “as notícias não são a minha praia” e “vislumbre dos media à antiga”.
A conclusão mais óbvia e transversal é esta: grande parte dos inquiridos de qualquer um dos grupos considera que as notícias existem para entreter e não cumprem a sua missão — são “aborrecidas”. Pior, “têm um impacto negativo” na sua vida e no estado de espírito. Acresce que são consideradas “tendenciosas”, o que muito naturalmente decorre do fato de serem fabricadas por youtubers, instagrammers e outros influenciadores digitais que nada devem ao rigor ou à objetividade.
Se a função das notícias, à semelhança das redes sociais que mais sucesso fazem entre os jovens, fosse exclusivamente entreter ou divertir — em vez de informar, ensinar, alimentar o pensamento, antecipar tendências, ajudar a formar opiniões e contextualizar —, seria justo dizer que são apenas “aborrecidas”. Mas essa não é a sua única função, e os jornais também têm outros formatos menos sisudos e estão em esforço constante (nem sempre bem-sucedido) para falar linguagens inovadoras e surpreendentes, responder aos desafios dos leitores e captar novos públicos.
Os resultados do estudo revelam hábitos de consumo que estão a mudar há vários anos e aos quais “os media à antiga” não têm conseguido dar uma resposta adequada e satisfatória. Mas também há uma notícia moderadamente positiva que é, em simultâneo, uma prova de confiança: quando se trata de recolher informações para fazer os trabalhos da escola ou conversar, os jovens procuram a informação na comunicação social tradicional, como a rádio ou os jornais. Procuram um selo de qualidade. É isso que os media (ainda) têm para oferecer, e não é pouco.
Sónia Sapage
A maioria dos inquiridos considera que as notícias são “tendenciosas” e “aborrecidas”, em especial quando se referem a temas como a política — os preferidos são desporto, tecnologia, entretenimento e saúde. Foram ouvidos jovens entre os 15 e os 24 anos (um pouco além da idade abrangida pelas assinaturas grátis de jornais).
O estudo divide os participantes em quatro categorias reveladoras: “exploradores digitais centrados no lazer”; “exploradores digitais de temas variados”; “as notícias não são a minha praia” e “vislumbre dos media à antiga”.
A conclusão mais óbvia e transversal é esta: grande parte dos inquiridos de qualquer um dos grupos considera que as notícias existem para entreter e não cumprem a sua missão — são “aborrecidas”. Pior, “têm um impacto negativo” na sua vida e no estado de espírito. Acresce que são consideradas “tendenciosas”, o que muito naturalmente decorre do fato de serem fabricadas por youtubers, instagrammers e outros influenciadores digitais que nada devem ao rigor ou à objetividade.
Se a função das notícias, à semelhança das redes sociais que mais sucesso fazem entre os jovens, fosse exclusivamente entreter ou divertir — em vez de informar, ensinar, alimentar o pensamento, antecipar tendências, ajudar a formar opiniões e contextualizar —, seria justo dizer que são apenas “aborrecidas”. Mas essa não é a sua única função, e os jornais também têm outros formatos menos sisudos e estão em esforço constante (nem sempre bem-sucedido) para falar linguagens inovadoras e surpreendentes, responder aos desafios dos leitores e captar novos públicos.
Os resultados do estudo revelam hábitos de consumo que estão a mudar há vários anos e aos quais “os media à antiga” não têm conseguido dar uma resposta adequada e satisfatória. Mas também há uma notícia moderadamente positiva que é, em simultâneo, uma prova de confiança: quando se trata de recolher informações para fazer os trabalhos da escola ou conversar, os jovens procuram a informação na comunicação social tradicional, como a rádio ou os jornais. Procuram um selo de qualidade. É isso que os media (ainda) têm para oferecer, e não é pouco.
Sónia Sapage
Os metecos e os mercadores de sono
O Miguel é meu amigo de Facebook. Significa isso que nos cruzámos uma vez há muito tempo num ginásio que ambos frequentávamos e ficámos ligados nessa rede. Sei muito pouco do Miguel, mas volta e meia vou lendo posts nos quais vai pedindo ajuda na sua procura por um sítio onde morar. Nem digo casa, porque normalmente ele procura um quarto que possa pagar. Sei muito pouco do Miguel, mas sei que é português, que trabalha como auxiliar num hospital e divide a vida com uma namorada e um cão, coisa que dificulta a sua busca por um lugar onde viver. No último post do Miguel que li, ele conta como vive numa casa sem condições nenhumas, onde paga 500 euros por um quarto. Está farto da falta de higiene do senhorio e faz um relato bastante gráfico das condições insalubres em que vive, apelando aos que o leem que lhe digam se conhecem um lugar para onde se possa mudar com a companheira e o cão.
A página de Facebook do Miguel está cheia de vídeos contra a cultura woke, posts sobre como a comunidade indiana está a invadir o centro de Lisboa, publicações que questionam a forma como nos últimos anos se começaram a validar vários géneros na cultura ocidental. O Miguel está zangado. E, pelo que é possível perceber pelo que publica nesta rede social, o que o indigna é a forma como outros vivem e a ideia de que a cultura e os valores que lhe serviram de referência são postos em causa. Não julgo o Miguel. Acho mesmo que nos devemos deter um pouco no seu ponto de vista, sem o julgar, procurando entender como um trabalhador no fundo da pirâmide social vê como ameaça outros trabalhadores que estão em condições tão más ou piores do que as suas.
A ideia de “nós e os outros” está presente em quase todas as formulações políticas. É uma forma de entender o mundo, que nos posiciona, que define os terrenos aliados e os inimigos. Não é estranho que seja assim. Há uma tendência humana para entender a conquista de direitos como uma disputa. Para que o nosso território aumente, outro tem de encolher. O que é interessante é que tendamos a identificar como inimigos usurpadores dos nossos direitos seres humanos que estão muito mais frágeis do que nós.
No dia em que vi o post do Miguel sobre as condições degradantes em que é obrigado a viver, foi notícia uma antiga escola em Massamá, que passou a ser arrendada como habitação. Apesar de não ter as mínimas condições de salubridade, nela estavam a viver 13 crianças e 38 adultos, que pagavam entre 250 a 500 euros por aquele teto. As notícias davam conta de que eram todas imigrantes, mas todas (e friso este todas) estavam legais no nosso país.
O preço absurdo que pagam estas pessoas (algumas delas mulheres que acabaram de ser mães) reflete a situação de desespero e o poder que tem quem pode mercadejar e explorar a necessidade que estes imigrantes, mas também pessoas como o Miguel, têm de encontrar um teto. É o mercado a funcionar.
E não se pense que são casos isolados. Veja-se a notícia dada este mês pela SIC que conta como um bispo evangélico cobra quase 400 euros para arrendar quartos improvisados numa garagem no Seixal. Dias mais tarde, a mesma estação encontrou um armazém com dois andares, em Setúbal, onde vivem cerca de 50 pessoas, incluindo pelo menos um bebé.
Na mesma semana, chamou-me a atenção um comunicado da PSP de Viseu que dava conta de uma operação de fiscalização na qual foi detetada “uma zona de dormitório em aparente inconformidade com as normas de construção vigentes”. Chamou-me a atenção o nome que os agentes deram à operação: “Operação Metecos”.
Para os menos versados na Antiguidade Clássica, o comunicado terminava com uma nota elucidativa. “Metecos deriva da palavra original em Grego, que se referia aos estrangeiros residentes nas Polis Grega de Atenas, para exercerem vários ofícios”. Esta é só uma forma erudita e rebuscada de a PSP nos explicar que a operação se destinava a detetar imigrantes ilegais. Não foi bem-sucedida, a avaliar pelo comunicado, que conta que foi feita a “identificação de 30 cidadãos estrangeiros e consequente verificação da legalidade da sua permanência em território nacional”. Estavam todos legais e as condições insalubres em que vivem também não são crime. Mas deviam ser.
Em França, é crime explorar a fragilidade de quem procura um teto, arrendando espaços que não reúnem condições de habitabilidade. Estes criminosos têm até um nome poético. São os “marchands de sommeil”, os mercadores de sono. E o Código Penal francês prevê até sete anos de prisão e multas que podem chegar aos 200 mil euros para aqueles que “abusam diretamente, ou através de um intermediário, da situação de vulnerabilidade ou de dependência, aparente ou conhecida, em que alguém se encontra, para vender, arrendar ou pôr à disposição, com a intenção de conseguir um lucro anormal, um imóvel, um quarto ou outro espaço (…) em condições incompatíveis com a dignidade humana”. A pena pode subir para os 10 anos caso estejam em causa grupos de pessoas ou menores.
A vantagem de ter uma lei como esta não é só (embora também seja) punir os exploradores que lucram com o desespero dos outros. É que o Miguel perceba contra quem deve dirigir a sua justa raiva. E que a polícia passe a perseguir não os Metecos, mas quem os explora.
A página de Facebook do Miguel está cheia de vídeos contra a cultura woke, posts sobre como a comunidade indiana está a invadir o centro de Lisboa, publicações que questionam a forma como nos últimos anos se começaram a validar vários géneros na cultura ocidental. O Miguel está zangado. E, pelo que é possível perceber pelo que publica nesta rede social, o que o indigna é a forma como outros vivem e a ideia de que a cultura e os valores que lhe serviram de referência são postos em causa. Não julgo o Miguel. Acho mesmo que nos devemos deter um pouco no seu ponto de vista, sem o julgar, procurando entender como um trabalhador no fundo da pirâmide social vê como ameaça outros trabalhadores que estão em condições tão más ou piores do que as suas.
A ideia de “nós e os outros” está presente em quase todas as formulações políticas. É uma forma de entender o mundo, que nos posiciona, que define os terrenos aliados e os inimigos. Não é estranho que seja assim. Há uma tendência humana para entender a conquista de direitos como uma disputa. Para que o nosso território aumente, outro tem de encolher. O que é interessante é que tendamos a identificar como inimigos usurpadores dos nossos direitos seres humanos que estão muito mais frágeis do que nós.
No dia em que vi o post do Miguel sobre as condições degradantes em que é obrigado a viver, foi notícia uma antiga escola em Massamá, que passou a ser arrendada como habitação. Apesar de não ter as mínimas condições de salubridade, nela estavam a viver 13 crianças e 38 adultos, que pagavam entre 250 a 500 euros por aquele teto. As notícias davam conta de que eram todas imigrantes, mas todas (e friso este todas) estavam legais no nosso país.
O preço absurdo que pagam estas pessoas (algumas delas mulheres que acabaram de ser mães) reflete a situação de desespero e o poder que tem quem pode mercadejar e explorar a necessidade que estes imigrantes, mas também pessoas como o Miguel, têm de encontrar um teto. É o mercado a funcionar.
E não se pense que são casos isolados. Veja-se a notícia dada este mês pela SIC que conta como um bispo evangélico cobra quase 400 euros para arrendar quartos improvisados numa garagem no Seixal. Dias mais tarde, a mesma estação encontrou um armazém com dois andares, em Setúbal, onde vivem cerca de 50 pessoas, incluindo pelo menos um bebé.
Na mesma semana, chamou-me a atenção um comunicado da PSP de Viseu que dava conta de uma operação de fiscalização na qual foi detetada “uma zona de dormitório em aparente inconformidade com as normas de construção vigentes”. Chamou-me a atenção o nome que os agentes deram à operação: “Operação Metecos”.
Para os menos versados na Antiguidade Clássica, o comunicado terminava com uma nota elucidativa. “Metecos deriva da palavra original em Grego, que se referia aos estrangeiros residentes nas Polis Grega de Atenas, para exercerem vários ofícios”. Esta é só uma forma erudita e rebuscada de a PSP nos explicar que a operação se destinava a detetar imigrantes ilegais. Não foi bem-sucedida, a avaliar pelo comunicado, que conta que foi feita a “identificação de 30 cidadãos estrangeiros e consequente verificação da legalidade da sua permanência em território nacional”. Estavam todos legais e as condições insalubres em que vivem também não são crime. Mas deviam ser.
Em França, é crime explorar a fragilidade de quem procura um teto, arrendando espaços que não reúnem condições de habitabilidade. Estes criminosos têm até um nome poético. São os “marchands de sommeil”, os mercadores de sono. E o Código Penal francês prevê até sete anos de prisão e multas que podem chegar aos 200 mil euros para aqueles que “abusam diretamente, ou através de um intermediário, da situação de vulnerabilidade ou de dependência, aparente ou conhecida, em que alguém se encontra, para vender, arrendar ou pôr à disposição, com a intenção de conseguir um lucro anormal, um imóvel, um quarto ou outro espaço (…) em condições incompatíveis com a dignidade humana”. A pena pode subir para os 10 anos caso estejam em causa grupos de pessoas ou menores.
A vantagem de ter uma lei como esta não é só (embora também seja) punir os exploradores que lucram com o desespero dos outros. É que o Miguel perceba contra quem deve dirigir a sua justa raiva. E que a polícia passe a perseguir não os Metecos, mas quem os explora.
quinta-feira, 27 de março de 2025
Trump: demolidor e despertador
Nenhum chefe de governo ameaçou a humanidade de forma tão catastrófica quanto Trump. Os presidentes de países com potencial nuclear representavam ameaça, mas não chegaram a promover hecatombe. Truman usou bombas nucleares assassinando centenas de milhares de civis, em duas cidades. Ao negar os riscos da catástrofe ecológica em marcha, incentivar a produção de petróleo, abandonar o Acordo de Paris e a participação na COP30, Trump pratica a demolição: mudanças climáticas, elevação no nível do mar, desaparecimento de cidades e países, desestruturação da agricultura, extinção em massa de vida e a depredação da civilização. Mas desperta a opinião pública para a realidade da crise mundial.
Quase todos os presidentes praticam em silêncio o que Trump esbraveja. O negacionista americano propaga a mensagem "perfurem, perfurem e extraiam o petróleo onde quiserem". Enquanto o governo do Brasil, que diz ser defensor do meio ambiente, perfura e produz petróleo por sua empresa Petrobras. Os gestos explícitos de Trump têm o valor de desnudar o comportamento de outros presidentes que o criticam, mas fazem o mesmo para atender aos interesses dos eleitores. Trump escancara o desafio de escolher entre as necessidades da humanidade para o futuro e os interesses do eleitorado no presente: a escolha entre decisões que elevarão o nível do mar em todo o planeta ou que elevarão os preços da gasolina na próxima semana, no posto da esquina. Trump é um demolidor da natureza, mas é também o despertador para a percepção da encruzilhada: continuar a marcha do crescimento destruidor do equilíbrio ecológico ou reorientar o processo civilizatório na direção de um desenvolvimento sustentável com a natureza e solidário entre os seres humanos.
A eleição de Trump com voto da maioria dos americanos para depredar a natureza e ameaçar o futuro da humanidade desperta para a contradição entre a democracia e o humanismo. Com seu discurso ambíguo, Obama ofuscava o divórcio entre humanismo e democracia ao dizer que "não há presidente do mundo", cada um deve atender aos interesses de seus eleitores, mas assinar o Acordo de Paris para atender aos interesses da humanidade. Os gestos de Trump mostram os limites da democracia nacional em tempos de integração planetária. Representam a solução populista de curto prazo para atender ao eleitor local de hoje, mas abandonam a preocupação de longo prazo da humanidade.
Ao usar tarifas de importação como armas de guerra comercial para beneficiar a economia americana, Trump, sem querer, mostra que a humanidade terá de reduzir seu nível de consumo. Mostra os limites da globalização das cadeias industriais que, ao comprar alimentos no Brasil, no outro lado do planeta, a China faz a comida mais barata para os chineses, mas ao custo ecológico dos gastos em energia para o transporte de carnes. A produção de automóveis usando cadeia de produção internacional reduz o custo de produção e amplia o consumo, mas com elevados custos ecológicos, tanto ao produzir quanto ao usar o número crescente de automóveis a preços baixos. Esse processo funcionou bem, até que os limites da crise social devido ao desemprego local levassem o eleitor a preferir o nacionalismo de Trump.
Outro despertar graças ao Trump é o incômodo mundial ao perceber-se que os eleitores americanos decidem os destinos da humanidade fechando serviços de saúde na África ou elevando o nível do mar no planeta inteiro. Suas medidas são criticadas porque desequilibram o comércio internacional, as cadeias de produção e o nível dos preços, mas servem para mostrar que o mundo deixou de ser a soma dos países e, agora, cada país passou a ser um pedaço do mundo. A resistência a Trump mostra os limites do poder do nacionalismo isolacionista, mesmo no mais poderoso e rico país.
Ao assumir o ódio aos imigrantes, ele reconhece sem ambiguidade a divisão entre os seres humanos privilegiados e as massas de pobres do mundo. Desperta para o comportamento da população de classe média e rica que age da mesma forma, barrando seus "instrangeiros", imigrantes do próprio país, com muros de condomínios, com o mesmo propósito do muro entre EUA e México — barrados por catracas, impedindo acesso a boas escolas, bons hospitais. Trump é um esbravejador que assume sua maldade e desperta a consciência daqueles que silenciosamente se comportam da mesma forma: depredando a natureza pelo excesso de consumo, barrando os pobres e vendo o mundo como a soma de países e não cada país como um pedaço do mundo.
Quase todos os presidentes praticam em silêncio o que Trump esbraveja. O negacionista americano propaga a mensagem "perfurem, perfurem e extraiam o petróleo onde quiserem". Enquanto o governo do Brasil, que diz ser defensor do meio ambiente, perfura e produz petróleo por sua empresa Petrobras. Os gestos explícitos de Trump têm o valor de desnudar o comportamento de outros presidentes que o criticam, mas fazem o mesmo para atender aos interesses dos eleitores. Trump escancara o desafio de escolher entre as necessidades da humanidade para o futuro e os interesses do eleitorado no presente: a escolha entre decisões que elevarão o nível do mar em todo o planeta ou que elevarão os preços da gasolina na próxima semana, no posto da esquina. Trump é um demolidor da natureza, mas é também o despertador para a percepção da encruzilhada: continuar a marcha do crescimento destruidor do equilíbrio ecológico ou reorientar o processo civilizatório na direção de um desenvolvimento sustentável com a natureza e solidário entre os seres humanos.
A eleição de Trump com voto da maioria dos americanos para depredar a natureza e ameaçar o futuro da humanidade desperta para a contradição entre a democracia e o humanismo. Com seu discurso ambíguo, Obama ofuscava o divórcio entre humanismo e democracia ao dizer que "não há presidente do mundo", cada um deve atender aos interesses de seus eleitores, mas assinar o Acordo de Paris para atender aos interesses da humanidade. Os gestos de Trump mostram os limites da democracia nacional em tempos de integração planetária. Representam a solução populista de curto prazo para atender ao eleitor local de hoje, mas abandonam a preocupação de longo prazo da humanidade.
Ao usar tarifas de importação como armas de guerra comercial para beneficiar a economia americana, Trump, sem querer, mostra que a humanidade terá de reduzir seu nível de consumo. Mostra os limites da globalização das cadeias industriais que, ao comprar alimentos no Brasil, no outro lado do planeta, a China faz a comida mais barata para os chineses, mas ao custo ecológico dos gastos em energia para o transporte de carnes. A produção de automóveis usando cadeia de produção internacional reduz o custo de produção e amplia o consumo, mas com elevados custos ecológicos, tanto ao produzir quanto ao usar o número crescente de automóveis a preços baixos. Esse processo funcionou bem, até que os limites da crise social devido ao desemprego local levassem o eleitor a preferir o nacionalismo de Trump.
Outro despertar graças ao Trump é o incômodo mundial ao perceber-se que os eleitores americanos decidem os destinos da humanidade fechando serviços de saúde na África ou elevando o nível do mar no planeta inteiro. Suas medidas são criticadas porque desequilibram o comércio internacional, as cadeias de produção e o nível dos preços, mas servem para mostrar que o mundo deixou de ser a soma dos países e, agora, cada país passou a ser um pedaço do mundo. A resistência a Trump mostra os limites do poder do nacionalismo isolacionista, mesmo no mais poderoso e rico país.
Ao assumir o ódio aos imigrantes, ele reconhece sem ambiguidade a divisão entre os seres humanos privilegiados e as massas de pobres do mundo. Desperta para o comportamento da população de classe média e rica que age da mesma forma, barrando seus "instrangeiros", imigrantes do próprio país, com muros de condomínios, com o mesmo propósito do muro entre EUA e México — barrados por catracas, impedindo acesso a boas escolas, bons hospitais. Trump é um esbravejador que assume sua maldade e desperta a consciência daqueles que silenciosamente se comportam da mesma forma: depredando a natureza pelo excesso de consumo, barrando os pobres e vendo o mundo como a soma de países e não cada país como um pedaço do mundo.
A autocracia é contagiosa
A democracia já estava em retrocesso no mundo há alguns anos, mas o processo acelerou-se com o regresso de Donald Trump ao poder, nos EUA. Ao escolher aliar-se com os autocratas e outros líderes que manifestam um cada vez maior desprezo pela democracia, o Presidente da nação mais poderosa do planeta acaba por usar o seu exemplo e influência como uma espécie de autorização para que outros sigam os seus passos. Sempre com o mesmo método: tomar o controlo das instituições independentes de referência, manipulação sistemática da opinião pública ‒ com recurso frequente à mentira ou a narrativas distorcidas ‒, desrespeito pelas leis, assalto ao poder judiciário, um ataque cerrado à imprensa livre e independente, cortes de apoio às universidades e instituições científicas e a criação de uma clique empresarial, com pulsões monopolistas, que beneficia da sua ligação ao poder.
O efeito de contágio é evidente, desde que Donald Trump anunciou ao mundo que, na sua administração, tudo o que esteja relacionado com os direitos humanos, os princípios do Estado de direito, e defesa da igualdade e da liberdade, deixou de ser prioritário para a política dos EUA. E, quando a manutenção do poder ou a conquista de maior domínio territorial ou económico é que passa a ser importante, não admira que outros autocratas se sintam encorajados a fazerem o que lhes apetece – sem receio, sequer, de receberem alguma reprimenda. Com Trump, a América deixou de usar a retórica de ser a líder do mundo livre e passou a assumir-se, de forma descarada, como instigadora do poder autocrático. Com um efeito de cascata evidente: os autocratas perdem ainda mais a vergonha e avançam contra os opositores sem receios.
Na União Europeia, tem sido evidente a forma como Viktor Orbán endurece agora as suas posições em relação ao conflito na Ucrânia, preferindo o alinhamento com Trump e Putin. O líder húngaro já não esconde o seu desacordo com as posições dos restantes europeus. E se no passado acabou por não usar o seu direito de veto, em troca de alguns milhões de euros de fundos estruturais, cresce agora a preocupação de que, num momento crítico, decida usar essa “arma” e paralisar decisões importantes, que só podem ser tomadas por unanimidade de todos os membros.
O exemplo autocrático de Trump tem servido de combustível para a corrida autoritária de Benjamin Netanyahu em Israel. Acossado, há muito, por problemas judiciais, o primeiro-ministro israelita decidiu agora radicalizar ainda mais as suas posições. E dispara para vários lados (muitas vezes, infelizmente, de forma mais literal): já não esconde os seus planos para a anexação de Gaza, ao arrepio de todo o direito internacional, e está em intensas movimentações para aniquilar a independência do poder judicial.
Na Turquia, outro homem-forte, Recep Tayyip Erdogan, aproveitou o atual caos internacional para procurar perpetuar o seu partido no poder. Depois de anos e anos a ganhar o controlo do Estado turco, dos tribunais às universidades, passando por uma revisão da Constituição e sucessivas purgas de opositores, Erdogan levou agora o descaramento até ao ponto mais alto: impedir, através de diversas artimanhas, que o presidente da Câmara de Istambul, e seu principal adversário, possa sequer apresentar-se às próximas eleições presidenciais.
Na Hungria, em Israel e na Turquia, milhares de pessoas têm saído para as ruas a manifestarem-se contra as derivas autoritárias. Mas os seus gritos e apelos são recebidos com cada vez maior indiferença num mundo em que, pela primeira vez em duas décadas, as autocracias são já mais numerosas do que as democracias (91 contra 88), segundo as contas do Instituto V-Dem. A parte do planeta que os deveria apoiar e defender, como a Europa, está apenas preocupada, neste momento, em ganhar tempo para se conseguir rearmar e à espera que Trump saia de cena daqui a quatro anos. O problema é se, entretanto, ficamos mesmo sem tempo para ainda conseguir salvar o que resta da democracia.
O grau de amadorismo e de irresponsabilidade em que mergulhou a administração Trump ficou bem ilustrado na maneira como, de forma inédita, um jornalista foi informado dos planos de guerra dos EUA no Iémen, ao ser adicionado a um chat na aplicação de mensagens Signal. O que este caso demonstra é que, se não podemos confiar na liderança de Trump, temos aqui um excelente motivo para confiarmos no jornalismo sério e ético: depois de confirmar que estava num grupo em que se partilhava informação secreta, relacionada com a segurança nacional, o próprio jornalista, Jeffrey Goldberg, editor da revista The Atlantic, tomou a decisão de sair da conversa. O jornalismo tem regras!
O efeito de contágio é evidente, desde que Donald Trump anunciou ao mundo que, na sua administração, tudo o que esteja relacionado com os direitos humanos, os princípios do Estado de direito, e defesa da igualdade e da liberdade, deixou de ser prioritário para a política dos EUA. E, quando a manutenção do poder ou a conquista de maior domínio territorial ou económico é que passa a ser importante, não admira que outros autocratas se sintam encorajados a fazerem o que lhes apetece – sem receio, sequer, de receberem alguma reprimenda. Com Trump, a América deixou de usar a retórica de ser a líder do mundo livre e passou a assumir-se, de forma descarada, como instigadora do poder autocrático. Com um efeito de cascata evidente: os autocratas perdem ainda mais a vergonha e avançam contra os opositores sem receios.
Na União Europeia, tem sido evidente a forma como Viktor Orbán endurece agora as suas posições em relação ao conflito na Ucrânia, preferindo o alinhamento com Trump e Putin. O líder húngaro já não esconde o seu desacordo com as posições dos restantes europeus. E se no passado acabou por não usar o seu direito de veto, em troca de alguns milhões de euros de fundos estruturais, cresce agora a preocupação de que, num momento crítico, decida usar essa “arma” e paralisar decisões importantes, que só podem ser tomadas por unanimidade de todos os membros.
O exemplo autocrático de Trump tem servido de combustível para a corrida autoritária de Benjamin Netanyahu em Israel. Acossado, há muito, por problemas judiciais, o primeiro-ministro israelita decidiu agora radicalizar ainda mais as suas posições. E dispara para vários lados (muitas vezes, infelizmente, de forma mais literal): já não esconde os seus planos para a anexação de Gaza, ao arrepio de todo o direito internacional, e está em intensas movimentações para aniquilar a independência do poder judicial.
Na Turquia, outro homem-forte, Recep Tayyip Erdogan, aproveitou o atual caos internacional para procurar perpetuar o seu partido no poder. Depois de anos e anos a ganhar o controlo do Estado turco, dos tribunais às universidades, passando por uma revisão da Constituição e sucessivas purgas de opositores, Erdogan levou agora o descaramento até ao ponto mais alto: impedir, através de diversas artimanhas, que o presidente da Câmara de Istambul, e seu principal adversário, possa sequer apresentar-se às próximas eleições presidenciais.
Na Hungria, em Israel e na Turquia, milhares de pessoas têm saído para as ruas a manifestarem-se contra as derivas autoritárias. Mas os seus gritos e apelos são recebidos com cada vez maior indiferença num mundo em que, pela primeira vez em duas décadas, as autocracias são já mais numerosas do que as democracias (91 contra 88), segundo as contas do Instituto V-Dem. A parte do planeta que os deveria apoiar e defender, como a Europa, está apenas preocupada, neste momento, em ganhar tempo para se conseguir rearmar e à espera que Trump saia de cena daqui a quatro anos. O problema é se, entretanto, ficamos mesmo sem tempo para ainda conseguir salvar o que resta da democracia.
O grau de amadorismo e de irresponsabilidade em que mergulhou a administração Trump ficou bem ilustrado na maneira como, de forma inédita, um jornalista foi informado dos planos de guerra dos EUA no Iémen, ao ser adicionado a um chat na aplicação de mensagens Signal. O que este caso demonstra é que, se não podemos confiar na liderança de Trump, temos aqui um excelente motivo para confiarmos no jornalismo sério e ético: depois de confirmar que estava num grupo em que se partilhava informação secreta, relacionada com a segurança nacional, o próprio jornalista, Jeffrey Goldberg, editor da revista The Atlantic, tomou a decisão de sair da conversa. O jornalismo tem regras!
Da Nakba a Gaza: 'Exterminem todos os brutos!'
Nos anos 1960, Bernard Lewis cunhou a frase "choque de civilizações". Algum tempo depois, Samuel Huntington a adotou. Era um argumento piegas. Governos "entravam em choque" por bens tangíveis, dinheiro, território, poder, dominação, controle, não algo tão vago quanto "civilização", mas era uma cláusula de escape conveniente para potências imperialistas predatórias empenhadas em colocar o mundo sob seu controle.
Em qualquer caso, o que era a civilização "ocidental" senão uma besta esquizoide com duas caras de Jano ouvindo Bach e Mozart enquanto escravizava milhões de pessoas ao redor do mundo, massacrando-as, tomando suas terras e saqueando seus recursos?
Esta é a face feia da civilização que estamos vendo de novo agora. Sentada de braços cruzados e falando sobre tudo, menos sobre o genocídio de Gaza.
A semente que as potências europeias plantaram na Palestina cresceu e se tornou o que está se configurando como a maior ameaça à paz mundial desde os nazistas. E isso não pode ser uma coincidência, dadas as afinidades ideológicas entre o nazismo e o sionismo, o racismo, a supremacia, o desprezo pelo direito internacional e o desprezo pela vida humana agora em plena exibição em Gaza e no Líbano.
Sem esquecer o equivalente ao lebensraum , expansionismo e maximalismo territorial para abrir caminho para que os colonos judeus substituíssem os “animais humanos” palestinos. Apenas um pequeno nível acima dos nazistas, que descreviam suas vítimas judias e outras como subumanas.
E uma ironia tão grotesca, nazistas descobrindo maneiras de se livrar dos judeus na década de 1930 e judeus descobrindo como se livrar dos palestinos em 2025. Eles são judeus, é claro, não apenas sionistas, mas judeus cruéis, assim como há muçulmanos, cristãos e ateus cruéis, para deixar isso claro. Eles são uma mancha na história judaica que nunca será removida e agora estão indelevelmente gravados nessa história.
Emigração e, finalmente, campos de concentração foram as escolhas tanto do governo nazista quanto do governo israelense, exceto que "emigração" é uma palavra muito branda para o que Israel tem em mente para os palestinos. Ninguém sabe o verdadeiro número de palestinos já massacrados, mas é claramente muito maior do que o número do Hamas, perto de 200.000, sugeriu o periódico médico Lancet , mas pode ser muito maior do que isso.
Os palestinos aproveitaram o cessar-fogo para desenterrar corpos das ruínas, mas não há cessar-fogo agora porque Netanyahu o quebrou. No momento em que escrevo, 9h38 da manhã de 18 de março, Israel tinha acabado de massacrar 235 palestinos em ataques com mísseis. Muitas delas crianças, é claro – é claro – visto que tantos milhares já foram assassinados.
Pais segurando os corpos de seus filhos dilacerados é uma visão agora familiar em Gaza. Antigamente, apenas uma dessas imagens teria sido manchete no mundo todo. Agora, há tantas delas que raramente aparecem nas notícias. É assim que o mundo ocidental, em particular, caiu.
Incapaz até agora de encontrar interessados para a 'transferência' populacional que Trump também quer, Israel está indo para o extermínio. A 'escolha' dada aos palestinos semanas atrás é sair ou ficar e morrer. Sair para onde? Não há para onde ir. Os palestinos em Gaza estão atingidos, presos, à mercê desses assassinos - e eles não têm misericórdia.
"Se você não morrer porque não há comida ou água, nós o mataremos." Essa é a mensagem transmitida. Um velho palestino, um jovem palestino, um palestino deficiente, um professor, um professor, um trabalhador, um músico, um fazendeiro, um jornalista, não faz diferença alguma. O exército mais moral de Israel no universo matará todos eles.
Não em suas casas, porque não há mais nenhuma, mas em seus campos, em suas tendas, em suas praias, nas ruas de suas cidades em ruínas, mortos por bombas, mísseis, drones e balas de atiradores, mortos pelo corte de todas as necessidades da vida, comida, água, remédios e eletricidade para aquecimento e cozinha.
É isso que está acontecendo agora. 'Exterminem todos os brutos', gritou Kurtz em Coração das Trevas e é isso que está acontecendo no campo de extermínio de Gaza, dessa vez comandado por judeus, uma verdade desagradável, mas ainda assim uma verdade. Claro, foi Kurtz, o agente da civilização, que foi o bruto.
Israel nunca deveria ter sido criado na terra de outra pessoa. É um estado usurpador e ladrão, um dos muitos na história, mas este é o século 21, não o 17 ou 18. Israel nunca demonstrou nenhum remorso e nem o mundo aprendeu a não repetir ou permitir que se repitam os horrores do passado. Existem poucos horrores do passado tão ruins quanto Gaza e talvez até nenhum.
Israel é a contradição do estado colonial estabelecido no final da história colonial-colonial. Foi criado pela ONU, a mãe que agora odeia porque continua tentando corrigir seu comportamento vil.
Está cheio de ódio. Veneno jorra de suas mídias sociais. Odeia a ONU. Seu delegado chefe rasgou a carta no pódio da Assembleia Geral. Ódio jorra de seu governo, seu parlamento, sua mídia, suas instituições religiosas, ódio não apenas dos palestinos ou dos árabes ou da ONU ou de qualquer um que não aprecie o genocídio, mas ódio uns pelos outros. Talvez seja isso que possa eventualmente levar esse empreendimento ao fim. Ele acabará se consumindo.
Seus acessos de raiva e indignação teatral são uma questão de registro, mas são tolerados todas as vezes. Os políticos correm assustados, nos EUA, no Reino Unido, na Austrália, no Canadá e dentro da UE. Eles não chamam genocídio de genocídio porque Israel e seus lobistas não vão gostar.
Eles não mencionam as 17.000 crianças massacradas porque Israel e seus lobistas não vão gostar. Eles são livres para criticar, desde que consultem Israel e seus lobistas primeiro. De qualquer forma, suas críticas são codificadas para que Israel entenda que "compartilhamos seus valores democráticos e estamos realmente do seu lado, não importa o que digamos". Eles devem continuar expressando apoio a uma solução de dois estados, sabendo que isso nunca vai acontecer. Israel sabe que eles sabem, então está tudo bem.
Eles expressam preocupação em Gaza, mas não raiva. Afinal, pessoas de pele morena foram genocidadas por pessoas de pele branca por centenas de anos. Está acontecendo de novo, mas realmente é bem normal , os brancos matando e os pardos e negros sendo mortos.
Seria totalmente anormal somente se essas peles fossem brancas. Alguém consegue imaginar mais de dois milhões de pessoas de pele branca, presas em um pequeno pedaço de terra, sem meios de escapar, sendo massacradas e mortas de fome por assassinos em massa sem que o "ocidente" intervenha imediatamente para impedir?
Isso traça um limite não apenas para a desumanidade racista de Israel, mas também para o racismo implícito na inação ocidental, ou melhor, na ação que permite que o genocídio continue à vista de todos há 18 meses.
Israel é totalmente apoiado pelos EUA, cujas instituições ele infiltrou completamente, e é totalmente apoiado por eles, não importa o que faça, recebe o que quiser. A combinação dos dois é uma ameaça permanente à paz global.
Israel não obedece a nenhuma lei além das suas. Ele suga seus "aliados" até secar e ao mesmo tempo os trai. Foi isso que as milícias sionistas fizeram com a Grã-Bretanha na década de 1940, quando a Grã-Bretanha não tinha mais nada a dar. Eles assassinaram seus policiais e seus altos funcionários.
Na década de 1960, pense no USS Liberty e no plutônio contrabandeado para fora dos EUA. Mais recentemente, pense em Rachel Corrie, James Miller, Tom Hurndall, ativistas e jornalistas, dos EUA e do Reino Unido, todos assassinados em Gaza. Pense no jovem turco-americano assassinado no Mavi Marmara , Furkan Dogan. Dezenas de outras histórias completam o quadro de um estado que nem mesmo respeita seus aliados, mas ainda é apoiado por eles dessa forma masoquista destrutiva.
Por suas ações, Netanyahu enfatizou que Israel não vai mudar. Para sobreviver, ele tem que continuar matando, assim como acreditava em 1948. Não apenas os palestinos, libaneses, sírios e iranianos, mas qualquer um que fique em seu caminho.
Se e quando, ambos prováveis, Israel for finalmente encurralado em um canto sem escapatória, a mensagem que ele tem passado por décadas é que ele tem as armas para derrubar todo mundo com ele, então não se surpreenda se isso acontecer. E quem lhe forneceu as armas e o conhecimento técnico para levar o mundo cada dia mais perto da beira deste precipício? Não há prêmios para a resposta certa.
11h59 da manhã agora e o Guardian relata mais de 320 'mortos' em Gaza. Assassinatos em massa, na verdade, e sem dúvida nas próximas horas o número aumentará. 14h08, mais de 400.
Em qualquer caso, o que era a civilização "ocidental" senão uma besta esquizoide com duas caras de Jano ouvindo Bach e Mozart enquanto escravizava milhões de pessoas ao redor do mundo, massacrando-as, tomando suas terras e saqueando seus recursos?
Esta é a face feia da civilização que estamos vendo de novo agora. Sentada de braços cruzados e falando sobre tudo, menos sobre o genocídio de Gaza.
A semente que as potências europeias plantaram na Palestina cresceu e se tornou o que está se configurando como a maior ameaça à paz mundial desde os nazistas. E isso não pode ser uma coincidência, dadas as afinidades ideológicas entre o nazismo e o sionismo, o racismo, a supremacia, o desprezo pelo direito internacional e o desprezo pela vida humana agora em plena exibição em Gaza e no Líbano.
Sem esquecer o equivalente ao lebensraum , expansionismo e maximalismo territorial para abrir caminho para que os colonos judeus substituíssem os “animais humanos” palestinos. Apenas um pequeno nível acima dos nazistas, que descreviam suas vítimas judias e outras como subumanas.
E uma ironia tão grotesca, nazistas descobrindo maneiras de se livrar dos judeus na década de 1930 e judeus descobrindo como se livrar dos palestinos em 2025. Eles são judeus, é claro, não apenas sionistas, mas judeus cruéis, assim como há muçulmanos, cristãos e ateus cruéis, para deixar isso claro. Eles são uma mancha na história judaica que nunca será removida e agora estão indelevelmente gravados nessa história.
Emigração e, finalmente, campos de concentração foram as escolhas tanto do governo nazista quanto do governo israelense, exceto que "emigração" é uma palavra muito branda para o que Israel tem em mente para os palestinos. Ninguém sabe o verdadeiro número de palestinos já massacrados, mas é claramente muito maior do que o número do Hamas, perto de 200.000, sugeriu o periódico médico Lancet , mas pode ser muito maior do que isso.
Os palestinos aproveitaram o cessar-fogo para desenterrar corpos das ruínas, mas não há cessar-fogo agora porque Netanyahu o quebrou. No momento em que escrevo, 9h38 da manhã de 18 de março, Israel tinha acabado de massacrar 235 palestinos em ataques com mísseis. Muitas delas crianças, é claro – é claro – visto que tantos milhares já foram assassinados.
Pais segurando os corpos de seus filhos dilacerados é uma visão agora familiar em Gaza. Antigamente, apenas uma dessas imagens teria sido manchete no mundo todo. Agora, há tantas delas que raramente aparecem nas notícias. É assim que o mundo ocidental, em particular, caiu.
Incapaz até agora de encontrar interessados para a 'transferência' populacional que Trump também quer, Israel está indo para o extermínio. A 'escolha' dada aos palestinos semanas atrás é sair ou ficar e morrer. Sair para onde? Não há para onde ir. Os palestinos em Gaza estão atingidos, presos, à mercê desses assassinos - e eles não têm misericórdia.
"Se você não morrer porque não há comida ou água, nós o mataremos." Essa é a mensagem transmitida. Um velho palestino, um jovem palestino, um palestino deficiente, um professor, um professor, um trabalhador, um músico, um fazendeiro, um jornalista, não faz diferença alguma. O exército mais moral de Israel no universo matará todos eles.
Não em suas casas, porque não há mais nenhuma, mas em seus campos, em suas tendas, em suas praias, nas ruas de suas cidades em ruínas, mortos por bombas, mísseis, drones e balas de atiradores, mortos pelo corte de todas as necessidades da vida, comida, água, remédios e eletricidade para aquecimento e cozinha.
É isso que está acontecendo agora. 'Exterminem todos os brutos', gritou Kurtz em Coração das Trevas e é isso que está acontecendo no campo de extermínio de Gaza, dessa vez comandado por judeus, uma verdade desagradável, mas ainda assim uma verdade. Claro, foi Kurtz, o agente da civilização, que foi o bruto.
Israel nunca deveria ter sido criado na terra de outra pessoa. É um estado usurpador e ladrão, um dos muitos na história, mas este é o século 21, não o 17 ou 18. Israel nunca demonstrou nenhum remorso e nem o mundo aprendeu a não repetir ou permitir que se repitam os horrores do passado. Existem poucos horrores do passado tão ruins quanto Gaza e talvez até nenhum.
Israel é a contradição do estado colonial estabelecido no final da história colonial-colonial. Foi criado pela ONU, a mãe que agora odeia porque continua tentando corrigir seu comportamento vil.
Está cheio de ódio. Veneno jorra de suas mídias sociais. Odeia a ONU. Seu delegado chefe rasgou a carta no pódio da Assembleia Geral. Ódio jorra de seu governo, seu parlamento, sua mídia, suas instituições religiosas, ódio não apenas dos palestinos ou dos árabes ou da ONU ou de qualquer um que não aprecie o genocídio, mas ódio uns pelos outros. Talvez seja isso que possa eventualmente levar esse empreendimento ao fim. Ele acabará se consumindo.
Seus acessos de raiva e indignação teatral são uma questão de registro, mas são tolerados todas as vezes. Os políticos correm assustados, nos EUA, no Reino Unido, na Austrália, no Canadá e dentro da UE. Eles não chamam genocídio de genocídio porque Israel e seus lobistas não vão gostar.
Eles não mencionam as 17.000 crianças massacradas porque Israel e seus lobistas não vão gostar. Eles são livres para criticar, desde que consultem Israel e seus lobistas primeiro. De qualquer forma, suas críticas são codificadas para que Israel entenda que "compartilhamos seus valores democráticos e estamos realmente do seu lado, não importa o que digamos". Eles devem continuar expressando apoio a uma solução de dois estados, sabendo que isso nunca vai acontecer. Israel sabe que eles sabem, então está tudo bem.
Eles expressam preocupação em Gaza, mas não raiva. Afinal, pessoas de pele morena foram genocidadas por pessoas de pele branca por centenas de anos. Está acontecendo de novo, mas realmente é bem normal , os brancos matando e os pardos e negros sendo mortos.
Seria totalmente anormal somente se essas peles fossem brancas. Alguém consegue imaginar mais de dois milhões de pessoas de pele branca, presas em um pequeno pedaço de terra, sem meios de escapar, sendo massacradas e mortas de fome por assassinos em massa sem que o "ocidente" intervenha imediatamente para impedir?
Isso traça um limite não apenas para a desumanidade racista de Israel, mas também para o racismo implícito na inação ocidental, ou melhor, na ação que permite que o genocídio continue à vista de todos há 18 meses.
Israel é totalmente apoiado pelos EUA, cujas instituições ele infiltrou completamente, e é totalmente apoiado por eles, não importa o que faça, recebe o que quiser. A combinação dos dois é uma ameaça permanente à paz global.
Israel não obedece a nenhuma lei além das suas. Ele suga seus "aliados" até secar e ao mesmo tempo os trai. Foi isso que as milícias sionistas fizeram com a Grã-Bretanha na década de 1940, quando a Grã-Bretanha não tinha mais nada a dar. Eles assassinaram seus policiais e seus altos funcionários.
Na década de 1960, pense no USS Liberty e no plutônio contrabandeado para fora dos EUA. Mais recentemente, pense em Rachel Corrie, James Miller, Tom Hurndall, ativistas e jornalistas, dos EUA e do Reino Unido, todos assassinados em Gaza. Pense no jovem turco-americano assassinado no Mavi Marmara , Furkan Dogan. Dezenas de outras histórias completam o quadro de um estado que nem mesmo respeita seus aliados, mas ainda é apoiado por eles dessa forma masoquista destrutiva.
Por suas ações, Netanyahu enfatizou que Israel não vai mudar. Para sobreviver, ele tem que continuar matando, assim como acreditava em 1948. Não apenas os palestinos, libaneses, sírios e iranianos, mas qualquer um que fique em seu caminho.
Se e quando, ambos prováveis, Israel for finalmente encurralado em um canto sem escapatória, a mensagem que ele tem passado por décadas é que ele tem as armas para derrubar todo mundo com ele, então não se surpreenda se isso acontecer. E quem lhe forneceu as armas e o conhecimento técnico para levar o mundo cada dia mais perto da beira deste precipício? Não há prêmios para a resposta certa.
11h59 da manhã agora e o Guardian relata mais de 320 'mortos' em Gaza. Assassinatos em massa, na verdade, e sem dúvida nas próximas horas o número aumentará. 14h08, mais de 400.
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