terça-feira, 15 de outubro de 2024

O poderoso chefão

É mais proveitoso para o detentor do poder se suas vítimas são inimigos; de qualquer modo, os amigos produzem resultado semelhante. Em nome de virtudes varonis, exigirá o mais difícil, o impossível, de seus súditos. Não lhe importa que estes sucumbam na execução da tarefa. É capaz de convencê-los de que é uma honra fazê-lo por ele. Através de rapinagens, cujo produto permite-lhes de início desfrutar, ele os ata a si. Servir-se-á então da voz de comando, a qual foi como que talhada para seus objetivos (não podemos, contudo, encetar aqui uma discussão detalhada dessa voz de comando, que é de extrema importância). É assim que, se entende do que faz, fará deles massas belicosas, incutindo-lhes ideias sobre a existência de tantos inimigos perigosos que, por fim, seus seguidores não poderão mais abandonar a massa de guerra que compõem.


Mas a real intenção de um verdadeiro detentor do poder é tão grotesca quanto inacreditável: ele quer ser o único. Quer sobreviver a todos, para que ninguém sobreviva a ele. Quer furtar-se à morte a todo custo; assim, não deve haver ninguém, absolutamente ninguém, que possa matá-lo. Jamais se sentirá seguro enquanto homens, quaisquer que sejam, continuarem existindo. Mesmo seu corpo de guarda, que o protege dos inimigos, pode voltar-se contra ele. Não é difícil provar que sempre teme secretamente aqueles a quem dá ordens. Sempre o assalta, também, o medo dos que lhe estão mais próximos.

Elias Canetti, "A consciência das palavras"

Emissões de metano da carne e lacticínios rivaliza com 100 maiores empresas de combustíveis fósseis

Um novo relatório publicado pelo Greenpeace Nórdico estimou que as emissões de metano de 29 empresas do setor da carne e lacticínios rivalizam com as das 100 maiores empresas mundiais do setor dos combustíveis fósseis para a emissão do gás. E aponta que mudanças sistemáticas na produção e no consumo em países de renda média e alta poderiam proporcionar um efeito de arrefecimento significativo até 2050, com alguns resultados positivos já em 2030.

Em contrapartida, se não for regulamentado, a projeção é que o setor de produção de carne e lacticínios, sozinho, aqueça o mundo em mais 0,32°C até 2050. As novas projeções baseiam-se no cenário da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) para uma trajetória de manutenção do ritmo atual de produção até 2050.

Atualmente, os cinco maiores emissores de metano do setor da carne e lacticínios são JBS, Marfrig, Minerva, Cargill e Dairy Farmers da América, segundo o relatório. As emissões dessas empresas superam as emissões combinadas de metano dos grandes gigantes dos combustíveis fósseis como a ExxonMobil, Shell, Total Energies, Chevron e BP.


A produção global de carne e lacticínios é impulsionada por uma série de grandes empresas e segue crescendo como se não existisse amanhã. No Brasil, pastagens ocupam cerca de  90% da área desmatada na Amazônia até 2023, segundo o Mapbiomas, e o relatório do Greenpeace Nórdico mostrou como as emissões de metano da pecuária rivalizam com as da indústria de combustíveis fósseis (para metano).

Segundo o relatório, a JBS, o maior produtor de carne do mundo, e conhecida por seu péssimo histórico de envolvimento com o desmatamento, é responsável por mais emissões de metano do que a ExxonMobil e Shell juntas. De fato, a empresa ocuparia o 5º lugar em comparação com as maiores empresas emissoras de metano no setor de fósseis.

Mudanças na forma e intensidade da produção de carne e laticínios é um passo crucial para mitigar as emissões de metano e desacelerar o aquecimento global – e a maneira mais eficaz de fazer isso é fazer a transição para um sistema de produção de alimentos que seja muito mais justo para nós, os animais e o planeta. 

Portanto, precisamos cortar o metano tanto das grandes empresas de criação de animais, como das grandes empresas petrolíferas. Embora a diminuição das emissões de metano possa reduzir o ritmo do aquecimento global, segue sendo essencial eliminar gradualmente a emissão de CO2 , produzido em grande parte devido ao uso de combustíveis fósseis. Só assim poderemos para lidar com o caos climático e estabilizar o clima. 

O agronegócio, que inclui a indústria de carnes e laticínios, vem deixando um rasto de destruição em todo o planeta, contribuindo fortemente para a crise climática, sendo as emissões de metano uma parte significativa do problema. Na questão do clima, o setor agropecuário precisa ser visto também como parte do problema, e ser chamado a reduzir drasticamente suas emissões. 

Neste sentido, governos ao redor do mundo (incluindo o Brasil) devem: a) atuar a partir de leis e metas oficiais para reduzir as emissões da agropecuária, incluindo o gás metano; b)obrigar as empresas a reportar publicamente sobre suas emissões; c) introduzir políticas para reduzir o consumo exagerado de proteína animal incentivando dietas mais sustentáveis, d) fomentar uma transição ecológica justa, e dentre as ações, deve estar o redirecionamento de fundos.

A dança da chuva

Era uma vez um nativo, à bordo do seu carrinho, às margens da estrada Manaus-Manacapuru, vendo um esquadrão de bombeiros assistindo, todos perplexos, à floresta amazônica começar a pegar fogo… sozinha! “Combustão espontânea?”, gritou um bombeiro. “Isso só acontece em filmes!”, disse outro. Mas ali estava ela, a floresta um dia chamada de úmida, agora se incendiando do nada. Os bombeiros, impotentes, sugeriram ligar para as universidades. “Precisamos da ajuda científica in-ter-na-ci-o-nal!” Um pesquisador respondeu: “Se tivermos mais dois verões assim, nem restará floresta para nós estudarmos!” O esquadrão, atônito, concordou. Restava apenas torcer, orar e fazer a Dança da Chuva, dos índios americanos….

E não me venham com a velha lenga-lenga de que o caboclo está tocando fogo para plantar ou fazer campo pra gado.

A floresta, antes conhecida por sua umidade constante e por abrigar uma biodiversidade incomparável, agora está se tornando mais seca a cada ano, com temperaturas mais altas e uma redução alarmante nos índices de chuva. As árvores, que antes eram um dos maiores sumidouros de carbono do planeta, estão agora vulneráveis a incêndios frequentes, muitas vezes iniciados por atividades humanas, mas que, dadas as condições atuais, parecem surgir de forma quase mágica. A “combustão espontânea” da floresta, embora seja um termo figurado, representa bem o que muitos cientistas têm alertado: a Amazônia pode estar caminhando para um ponto de não retorno.


O esquadrão de bombeiros à beira da estrada, atônito, representa a nossa impotência diante desse cenário. Eles estão ali, mas não sabem como agir. Afinal, como combater um incêndio que parece brotar da própria terra? No fundo, eles sabem que a solução não está apenas na água e nas mangueiras, mas nas mãos dos cientistas e na colaboração internacional para entender e mitigar as causas desse desastre ambiental.

A situação atual da Amazônia requer ação imediata e uma mobilização massiva da comunidade científica internacional. É imperativo colocar os institutos de pesquisa para trabalhar. Precisamos de soluções baseadas em ciência e tecnologia, e isso só será possível com a união de universidades e centros de pesquisa do Brasil e do mundo. Instituições com grande poder de pesquisa, como as universidades federais e estaduais do país, além de centros internacionais de excelência, devem ser envolvidas nesse esforço.

Os cientistas precisam investigar as mudanças climáticas que estão intensificando a seca na Amazônia e aumentar o monitoramento sobre o uso da terra. O desmatamento desenfreado, a conversão de áreas florestais em pastagens e a extração ilegal de madeira são fatores que tornam a floresta ainda mais vulnerável ao fogo. A presença de grandes áreas desmatadas cria uma espécie de “efeito dominó”, onde incêndios florestais se espalham com maior facilidade, devastando o que resta de mata nativa. E, no ritmo em que estamos, a Amazônia pode não resistir a mais dez verões severos como os que temos enfrentado. No Amazonas, o programa “COMPANHEIROS DAS AMÉRICAS”, em que o Amazonas é o estado irmão do Tennessee, as duas universidades estaduais poderiam começar uma colaboração, pois o know-how do estado americano, em barragens e plantações de várzeas, é um dos maiores do mundo.

Além da questão climática, há também a falta de fiscalização e políticas públicas efetivas que inibam a destruição da floresta. Sem controle, os incêndios — espontâneos ou não — continuarão a se proliferar. Um ponto crucial é a necessidade de criar mecanismos eficazes de prevenção de incêndios e educação ambiental para as populações locais e os produtores rurais.

As universidades brasileiras, com sua vasta capacidade de pesquisa, são um ativo inestimável nesse processo. Contudo, precisamos também de ajuda externa. As parcerias com universidades estrangeiras, especialmente aquelas especializadas em clima e biomas tropicais, podem trazer novas tecnologias e abordagens inovadoras para salvar a floresta. A cooperação internacional é essencial, porque a Amazônia não é só brasileira — ela é patrimônio da humanidade.

Se não agirmos agora, a floresta amazônica pode se transformar, em poucos anos, de um santuário exuberante em um deserto carbonizado. A situação pode até parecer absurda, como um esquadrão de bombeiros assistindo impotente à “combustão espontânea” da floresta, mas não podemos subestimar os sinais de alerta que a natureza nos envia. Se continuarmos negligenciando a Amazônia, ela realmente poderá começar a “pegar fogo do nada”, e nesse momento, não haverá: nem curupira, nem bombeiro, nem mangueira, nem ciência capaz de reverter o estrago.

A floresta, esse bebê abandonado, precisa de cuidados urgentes, e nós, como sociedade, devemos nos unir para impedir que o futuro da Amazônia seja um triste conto de cinzas.

Guerras sem paz

1.O Irão não sabe quando será atacado por Israel, em resposta aos 200 mísseis que lançou no início de Outubro e que poderiam ter causado milhares de mortos, não fosse a Cúpula de Ferro israelita. Uma coisa Teerão sabe: os americanos vão enviar uma bateria de mísseis antibalísticos THAAD, e, para abreviar razões, seguirão com cerca de uma centena de soldados americanos para operar o sistema. Por aqui já se adivinha que o ataque estará para breve. O sistema THAAD é composto por várias partes, incluindo um lançador, interceptores (mísseis), radar e uma unidade de controlo de combate. A bateria tem 6 lançadores, o que significa que 48 mísseis estão disponíveis para cada interceptação, e uma equipa muito experiente consegue recarregar em 30 minutos. Acrescentada mais esta camada defensiva à Cúpula, só falta a ordem final do primeiro-ministro israelita. Aqui há várias guerras.


2. A 21 dias das eleições presidenciais americanas, mantém-se tudo em aberto. Kamala continua com vantagem na intenção de voto a nível nacional, mas Trump está a consolidar a primeira posição em estados decisivos para o Colégio Eleitoral. Ao dia de hoje, Trump está em melhor situação do que estava em 2016 e em 2020. O ex-presidente foi à Califórnia fazer um comício gigante, só para irritar Kamala no seu próprio estado, tradicionalmente democrata. Há preocupação pelo mundo fora: um presidente em último mandato pode fazer (quase) tudo o que lhe passa pela cabeça, e a de Trump está em permanente curto-circuito. Se é que existe. Se é que tem alguma coisa lá dentro. Aqui não há paz.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


Mas, afinal, quem é que são as “pessoas”?

“Quando quero saber o que as pessoas pensam, peço à minha mãe para ir ao café”, dizia-me há dias alguém que circula pelos corredores do poder. Neste focus group improvisado, a mãe vai lançando temas, ao ritmo a que se sorvem as bicas e se trincam os folhados. E o filho, feliz, lá vai percebendo que os comentadores da bolha valorizam o que lá no café não vale nada e fica, assim, com a certeza de que, apesar de todas as críticas televisionadas, a popularidade do Governo está em altas.


Há muitas pessoas. Há “as pessoas lá em casa”. As “pessoas” em quem o Governo pensa. As “pessoas” a que a oposição quer dar resposta. As “pessoas” esquecidas pelo poder. As “pessoas” que reclamam menos impostos. As “pessoas” que querem melhores serviços públicos. As “pessoas” que trabalham. As “pessoas” de bem. As “pessoas” fora da bolha.

As “pessoas” são o novo país real. São uma entidade abstrata cuja invocação cria um lugar de autoridade. “Eu sei o que as pessoas lá em casa estão a pensar”. “As pessoas não querem isso”. “As pessoas gostam disto”. Não é preciso dizer mais nada. O autor da frase transforma-se em oráculo, ungido com o poder de falar em nome das “pessoas”.

Sim, porque “é preciso pensar nas pessoas”. Quais pessoas? Ninguém sabe. Mas também ninguém sabe bem o que é o “país real”, a não ser que é um sítio que fica muito longe de Lisboa, aonde nunca ninguém vai e que políticos, comentadores e jornalistas nunca visitaram. A não ser, claro, que o invoquem. Nesse caso, são eles os iluminados com a verdade de terem visto o “país real”, que falam aos que nunca vislumbraram tal lugar e vivem em cenários de papelão, onde nunca nenhuma “pessoa” habitou.

Mas quem são, afinal, as “pessoas”? Não se exasperem. As “pessoas” podem ser qualquer um. Ou será que não? Normalmente, as “pessoas” são quem nós queremos que elas sejam. São as que nos dão jeito para defender o argumento que trazíamos na algibeira, as que estão alinhadas com os nossos pensamentos e propósitos.

E, claro, as “pessoas” fazem-nos parecer humanos e reais. Porque, no fundo, toda a gente sabe que políticos, comentadores e jornalistas não são humanos nem reais. Vivem na bolha. E cá fora estão as “pessoas”. Reconhecer isso é da mais profunda humanidade e sapiência.

Mas, claro, nem todos os humanos são “pessoas”. Ou, pelo menos, há alguns que são mais “pessoas” do que os outros. Há os ilegais e as “pessoas” de bem. Há os que servem de escudo humano aos terroristas e as “pessoas” que são vítimas. Há os que vivem em tendas e as “pessoas” que têm direito a viver em ruas limpas.

É que as “pessoas” não são o povo. O povo desapareceu dos discursos. Era muito coletivo e abstrato. E tinha o cheiro a bafio das coisas que já não se usam nem parecem modernas. O povo cheirava a povo. As “pessoas” são assépticas, modernas, prontas a viver num mundo novo. E não vão nas carneiradas das manifestações, porque as “pessoas” sabem que têm de fazer tudo por si.

As “pessoas” são empreendedoras e percebem que quando alguma coisa corre mal, a culpa também é delas, que não se esforçaram nem tiveram civismo. Ou, então, é do Estado, que falha tanto e ninguém sabe ao certo o que é, mas seguramente não são as “pessoas”. Ou talvez sejam outras “pessoas”, aquelas que vivem à conta e se encostam, mas essas não são as “pessoas” que interessam. Essas não são as “pessoas” que aparecem nos discursos dos políticos, dos comentadores e dos jornalistas.

Tantas “pessoas” e ninguém.

Civilização Ocidental

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
Escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

Agostinho Neto

Godot virá

Ao contrário do personagem maior da obra de Samuel Beckett, o aguardado ataque de retaliação israelense contra o Irã não se fará esperar nem ficará em suspenso. Dele tivemos notícia ominosa nesta semana.

— O ataque será letal, preciso e particularmente surpreendente — informou o ministro da Defesa, Yoav Gallant, a integrantes do Serviço de Inteligência Militar do seu país. E acrescentou, sem avançar em demasia no arrosto:

— Eles [os iranianos] só compreenderão o que houve quando já tiver acontecido.

Para quem, semanas atrás, conseguiu fazer explodir milhares de pagers e celulares em mãos do até então formidável inimigo Hezbollah, deve ser tentador surfar na superioridade militar. Difícil é conseguir desescalar.


Por ora, além de prosseguir no sangramento de Gaza, Israel intensifica seus bombardeios com invasão terrestre no Líbano, abusa da força contra palestinos na Cisjordânia, alcança inimigos no Iêmen, Síria, Iraque e prepara sua resposta-surpresa aos quase 200 mísseis iranianos disparados contra seu território. Também as relações do governo de Israel com a paquidérmica ONU atingem pontos de fervura. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu simplesmente ignora as resoluções da entidade, que qualifica de “pântano de bile antissemita”. Outro dia, seu chanceler, Israel Katz, de modos e pavio curtos, declarou persona non grata o próprio António Guterres, secretário-geral da organização. Na semana passada, um tanque israelense em território libanês atingiu uma torre de observação da Unifil, sigla da força de paz internacional naquela fronteira encrencada, fazendo quatro feridos.

A Unifil tem um contingente de 10 mil “capacetes azuis” de 50 nacionalidades de integrantes da ONU. Nunca conseguiu impedir o enraizamento militar do Hezbollah no sul do Líbano — nem tentou. Por suspeitar que a milícia xiita tem usado essa proximidade como escudo, Israel chegou a emitir uma quase ordem para que a missão de paz se afastasse de algumas posições. Pedido negado. No dia seguinte, o porta-voz das Forças de Defesa de Israel (FDI), general Daniel Hagari, fez uma transmissão em inglês do interior de uma casa que disse situada na região conflagrada. Do vilarejo, veem-se apenas escombros, e o imóvel em questão está em ruínas.

— Venham comigo — convida Hagari, passando a circular pelo que resta amontoado: coletes, capacetes, granadas, rifles de precisão, de mira telescópica com visão noturna, explosivos. — Tudo empilhado para a grande invasão... um massacre em grande escala maior do que o 7 de Outubro.

O general encerra a transmissão afirmando que cada casa da região é uma base do Hezbollah e que haverão de ser eliminadas.

— Esta é uma invasão limitada e dirigida à parte norte de Israel, ok? — conclui.

Não ok. Um quarto do território do Líbano já foi submetido a ordens de evacuação por parte das FDI, com o deslocamento forçado da população em mais de cem vilas do sul e alguns subúrbios da capital densamente habitados por xiitas. Numa mensagem de vídeo dirigida a seus vizinhos bombardeados, o próprio Netanyahu lhes oferece o que seria uma escolha: “A oportunidade de salvar o Líbano antes que ele caia no abismo de uma longa guerra, que resultará em destruição e sofrimento semelhante ao que vemos em Gaza”. Por meio de seu comunicado, o primeiro-ministro garante que o Hezbollah já está enfraquecido e que, além de matar o líder máximo Hassan Nasrallah, também seu substituto e o substituto do substituto foram eliminados, cabendo portanto à população erradicar esse braço armado do Irã. Ou então, Gaza.

Gaza 1 — Na semana passada, o bombardeio de uma escola em Deir al Balah apinhada de deslocados gerou imagens ainda não vistas mesmo para quem acompanha diariamente a desumanização no enclave. Nacos, muitos nacos de carne humana e pedaços de gente sendo recolhidos por mãos aflitas, jogados num grande lençol que foi se enchendo de matéria humana ainda mole. Ao final, o grande lençol também foi levado para o hospital Al-Aqsa, com os feridos e mortos ainda inteiros.

Gaza 2 — Também na semana passada, três hospitais ainda funcionando parcialmente no setor norte de Gaza receberam prazo de 24 horas para a evacuação total de equipes médicas e pacientes. O diretor de uma das unidades, o Kamal Adwan Hospital — único da região com UTI pediátrica —, lançou um apelo ao mundo, por meio da rede noticiosa ABC News, para evitar o fechamento da unidade:

— Estes civis são inocentes, são mulheres, crianças — argumenta em árabe, enquanto mostra pacientes atrelados aos aparelhos que lhes dão vida.

Entre eles, um bebê, várias crianças entubadas, os corpos com estilhaços. É preciso contar, diz o doutor Husam Abu Safiyeh.

Sim, é preciso. É o que fazemos aqui.

A nossa degradação moral face à impunidade da guerra de Israel

Moral e política são maus parceiros. A chamada realpolitik é exatamente a expressão que traduz esse divórcio. Ou seja, uma política feita em função, acima de tudo, de um conjunto de interesses, sejam nacionais, sejam de segurança, sejam de puro exercício de poder, em causa própria ou numa causa coletiva e que, na sua execução, passa por cima de qualquer consideração moral, ou de direito internacional, que pretenda impor limites à ação política pela regulação livremente acordada, considera-se “realista”. Ou seja, tudo se pode fazer em função de um objetivo, sem qualquer espécie de constrangimento.

Nações democráticas e ditaduras atuam em função dessa realpolitik de uma forma muito semelhante, nenhuma está inocente da prática de atos que violam qualquer restrição moral e o direito internacional. No entanto, há diferenças de dimensão, dado que as democracias respondem perante as suas opiniões públicas traduzidas no voto, e as ditaduras e os ditadores não têm de dar nenhuma explicação a ninguém.

Isto significa que, mesmo sem garantia de eficácia, uma ideia moral do que se pode ou não fazer, sejam quais forem as circunstâncias, e a aceitação do primado do direito, é sempre relevante nas democracias. Mais, é uma parte constitutiva das democracias a ideia de que, para além da hipocrisia, haja coisas que não se podem fazer e que devem ser condenadas sem “mas” e punidas sem hesitação. Sancionadas duramente e os seus responsáveis punidos como criminosos que são.


É o caso da atual guerra regional que Israel conduz no Médio Oriente. Há muito que não é uma guerra de resposta ao massacre do Hamas que fez agora um ano, nunca foi uma guerra existencial pela defesa do Estado de Israel – legítima, caso fosse –, porque quem escreve estas linhas considera inaceitável a turma do “desde o rio até ao mar”. É uma guerra que aceita que, para matar um militante do Hamas ou do Hezbollah, se podem matar cem velhos, mulheres e crianças, com total indiferença, que considera normal destruir a precária infraestrutura de Gaza, casas, hospitais, escolas, tudo, sem a menor hesitação, que enuncia claros objetivos de alargamento territorial.

E não me venham com a história de que o fato de dois grupos terroristas se esconderem num escudo de civis, e usarem escolas, hospitais, instalações da ONU – coisa que eles fazem – justifica o que Israel faz. Israel tem recursos e meios para chegar aos seus objetivos militares e tempo para o conseguir sem este massacre quotidiano. Não, não é a razão militar que justifica o que está a ser feito, é considerar que ser palestino é ser terrorista, é atribuir uma culpa coletiva às populações de Gaza e do sul do Líbano que, quando inclui as mulheres, as crianças e os velhos, é moralmente obscena. E é, pela simultaneidade do que está a acontecer com os colonatos e as violências incentivadas pelo atual Governo de extrema-direita, uma guerra por território e uma limpeza étnica.

Israel é uma democracia, que beneficiava de uma simpatia em muitas democracias, mesmo sem que essa simpatia tivesse que ver com importantes comunidades judaicas, como nos EUA. Tinha simpatia muito para além do sionismo, à esquerda por exemplo, pela sua origem em certas experiências socializantes, como os kibutz. E tinha simpatia porque os seus adversários ou eram ditaduras árabes ou grupos terroristas capazes das maiores atrocidades. Israel estava no pior sítio do mundo para ser uma democracia e, mesmo quando havia preocupação pelo destino imerecido e violento dos palestinianos, a ideia de que tinha todo o direito de se defender dos seus péssimos vizinhos era muito consensual.

Hoje, tudo isto mudou e são evidentes os estragos que Netanyahu e o seu Governo fizeram ao prestígio de Israel, atuando de forma criminosa, palavra que resume tudo. E começo pelo prestígio, porque ele existiu em muita gente que era amiga de Israel e para quem a acusação, hoje vulgar, de ser antissemitas é insultuosa. Essa parte da opinião pública protegia e apoiava Israel junto dos governos das democracias. Isso acabou hoje.

Do mesmo modo, o tratamento criminoso, volto à mesma palavra, dos palestinianos deu uma nova visibilidade à sua causa, criou uma grande solidariedade e deu alento à reivindicação dos dois estados e a uma maior condenação das ações dos colonos israelitas. Aqui também há um ponto sem retorno.

Dito tudo isto, é inadmissível a complacência que a União Europeia e o Governo português têm mostrado face a esta guerra. Lestos, e bem, em condenar e sancionar a Rússia pela invasão da Ucrânia, nem de perto nem de longe responderam às violências israelitas, nem às sistemáticas violações do direito internacional, nem sequer se mexeram muito para defender a ONU e António Guterres, ambos alvos de Israel, que ataca tudo à sua frente no terreno e na diplomacia, que não merece esse nome.

Há que compreender que esta hesitação miserável da Europa (Portugal incluído), que nem sequer tem grande papel como realpolitik, a não ser nalguns países por medo eleitoral, significa uma abjeção moral e uma cumplicidade inaceitável. Degrada-nos como país e como pessoas pela imoralidade.

domingo, 13 de outubro de 2024

Era uma vez o Líbano

Devastaçãso em aldeias libanesas - Avi Scharf


A vida posta em risco na roleta

Bastou a Alexei Ivanovitch jogar uma única vez para que o vício se instalasse (Dostoeivsky, em "O Jogador"), com todas as consequências de destruição e ruína. Para o adicto, o fundamento do jogo não é ficar milionário, mas substituir o tempo real por uma mitologia que absorve a angústia do tempo e da morte. A compulsão decorre de uma seriação detentora do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida e finitude. O motor neurótico do sistema, verdadeira raiz da paixão, é ganhar e perder sem fim, satisfação e decepção, até que o jogador se autodestrua.


Nessa época de intenso pessimismo político, moral e cultural, é também essa a lógica da religião da matéria oferecida como consolação às massas pelos cultos da prosperidade. Aposta-se que um investimento monetário em Deus retornará multiplicado. E o crupiê pastoral adverte que é a primeira coisa a fazer com o salário, pois "Deus não gosta de restos".

Na roleta financeira, os lances são altíssimos, claro, para quem pode. Mas é idêntica a pulsão: o corpo-imagem do sujeito, fabricado pelas novas tecnologias da comunicação, é instado a experimentar o gozo imediato do risco.

Agora soou um alarme: os populares jogos de apostas online, conhecidos como bets, são suspeitos de afetar negativamente o bem-estar da população e a economia nacional. "Ludópata" é a designação científica para o viciado, cujo tratamento ainda não encontra lugar em clínicas médicas.

A questão não é, porém, terapêutica. Sob o capitalismo algorítmico, toda estrutura social passa a funcionar como cassino. O projeto neoliberal consiste no desmantelamento do estado de bem-estar social e na definição do indivíduo como criador único de si mesmo, livre para a obtenção de riquezas. Cada um rodando em torno de si próprio, como uma roleta.

Esse giro, se excessivo, beira a catástrofe. O nazifascismo foi um giro alucinado e maquinal ao redor dos próprios princípios, sem admitir relações nem limite externo, ou seja, a essência mesma da loucura. O fenômeno ressurge como forma soft de poder, em que se imbricam a razão econômica, a digital e a biológica, para acabar com a distinção entre homem e máquina, entre espírito e matéria. O culto da prosperidade é aspecto popular dessa despercebida religião inespiritual, que absorve crentes e ateus.

Jogos de azar, sempre houve. O que agora acontece é a perfeita adequação entre risco e uma ordem social voltada para a construção do sujeito como empreendedor individual, descomprometido com o comum. Mas o capital disponível contempla só as classes abastadas. Nas subalternas, a carência é consolada pela retórica da prosperidade, que não aponta para trabalho produtivo, e sim para o imaginário da riqueza aleatória.

Aposta-se em tudo: na sobrevivência pessoal, no templo e agora nas bets, o novo cassino online, que o governo se empenha em legalizar, interessado apenas em arrecadar. A Fazenda criou até mesmo uma Secretaria Geral de Apostas e Prêmios. Bet é nada menos que o crack virtual, obscenamente oferecido a crianças, que se tornam crupiês mirins. Fala-se em ludopatia epidêmica, mas se esconde a fonte verdadeira da compulsão. A hipocrisia é oficial.

O homem, a guerra, o desastre e o infortúnio

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego coletivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em ação. Da paz se diz que é podre, porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inatividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.


Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de fato é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados.”
Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente IV"

Day after?

Alguém viu "o dia seguinte" ultimamente? Nos estúdios de televisão, eles disseram que era a única coisa que impedia a vitória, mas desapareceu. Sem deixar rastros. O governo não está pedindo a ajuda do público em sua caçada por ele. 

O povo de Hitler

Não é porque a historiografia trata de eventos que já aconteceram e por definição não podem mais ser alterados que ela não avança. O acesso a mais fontes, mudanças em perspectivas teóricas, além do desenvolvimento de novas tecnologias, permitem quando não recomendam a reinterpretação de fatos pregressos.

Em "Hitler´s People" (o povo de Hitler), Richard Evans tenta responder àquelas questões que jamais vão embora. Como os alemães, um dos povos mais instruídos da Europa, puderam apoiar Hitler? Por que persistiram por tanto tempo nesse apoio?


Evans toma como modelo obras consagradas sobre o nazismo, como as de Joachim Fest e Ian Kershaw, e se beneficia da abertura, nos anos 90, de arquivos soviéticos que lançaram novas luzes sobre velhas figuras. Esse material não provoca nenhuma reviravolta interpretativa, mas fornece detalhes importantes.

Evans tenta responder às questões seminais traçando perfis das figuras que tornaram o nazismo possível. E o faz em camadas. Começa com Hitler, continua com os paladinos (Göring, Goebbels, Röhm, Himmler, Von Ribbentrop, Rosenberg e Speer), passa a uma espécie de segundo escalão, no qual se destacam personagens como Heydrich, Streicher e Von Pappen, e conclui com o que chama de "instrumentos", pessoas que não tinham envolvimento profundo com a cúpula nazista, mas trabalharam a favor dessa ideologia, como a cineasta Leni Riefenstahl e o general Von Leeb.

O resultado são quase 600 páginas muito bem escritas e altamente informativas. Ficamos sabendo não apenas o que os biografados fizeram nos anos sombrios do nazismo mas também como, em alguns casos, operaram paras se livrar das responsabilidades. Speer, por exemplo, teve sucesso em fazer uma espécie de lavagem de seu passado nazista.

Evans também se beneficia do afastamento temporal. Para os contemporâneos do nazismo e as primeiras gerações posteriores a ele era importante, por exemplo, tentar pintar Hitler como uma figura que de alguma forma não pertencia à humanidade. Hoje sabemos melhor do que humanos são capazes.

Com cesáreas sem anestesia e recém-nascidos subnutridos, palestinas pagam alto preço

"Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma 'voz masculina'", reflete a Nobel de Literatura Svetlana Alexijevich nas primeiras páginas de um dos seus mais famosos livros, "A guerra não tem rosto de mulher", escrito a partir de relatos femininos da Segunda Guerra Mundial. Embora décadas separem os dois acontecimentos, grande parte do que vem a público sobre o conflito na Faixa de Gaza, que completa um ano nesta segunda-feira, também são informações sem gênero. Um relatório da organização internacional ActionAid, porém, revelou as consequências ocultas da ofensiva israelense na vida das palestinas — de cesáreas sem anestesia devido ao colapso no sistema de saúde, a um ambiente de completa insegurança dentro de abrigos superlotados e bebês que já nascem subnutridos na esteira da subnutrição de suas mães.



Cerca de 42 mil pessoas foram mortas durante os confrontos na Faixa de Gaza no último ano, entre elas mais de 11 mil mulheres. De acordo com estimativas das Nações Unidas, 37 mães são mortas diariamente no enclave, e até 25 mil menores perderam ao menos um dos pais.

Além das vítimas fatais e dos milhares de feridos, a guerra provocou uma profunda crise de deslocamento para os cerca de 2 milhões de sobreviventes — muitos, obrigados a migrar de abrigo mais de uma vez. Os constantes deslocamentos têm um peso ainda maior sobre as mulheres, que relataram uma enorme perda de privacidade e segurança, sendo vítimas de assédio e abuso em acampamentos superlotados, aponta o relatório "Agentes de mudança: O papel das organizações lideradas por mulheres da Palestina na crise", da ActionAid.

— No passado, as paredes eram nossa proteção. Hoje, é apenas um pedaço de náilon — relatou uma palestina ouvida pela organização.


De acordo com o documento, divulgado em primeira mão no Brasil pelo O GLOBO, 39% das palestinas sofreram ao menos uma forma de violência doméstica após a guerra, com 14% relatando terem sido vítimas de agressões físicas e 18%, de abuso financeiro. Segundo a ActionAid, conflitos como Gaza são propícios para "ameaças crescentes de estupro, feminicídio, casamento forçado, exploração e desapropriação da vida, do corpo e do território das mulheres".

O ambiente de instabilidade causado pelos deslocamentos frequentes tem incentivado homens a impor o casamento forçado às meninas de suas famílias como um "mecanismo de sobrevivência" em meio à falta de alimentos, fechamento de escolas e o temor de que sejam vítimas de violência sexual nos abrigos.

— Casamento precoce! Nenhuma lógica está ajudando as pessoas [a entenderem], não conseguimos alertá-las para que não façam isso. Os homens pensam em proteger suas meninas por meio do casamento. Mesmo que ela tenha sido abusada sexualmente quando casada, é melhor do que quando não está casada — relatou Buthaina, diretora da Wefaq Association for Women and Childcare, ONG palestina que apoia mulheres em Gaza.

Mesmo diante dessas condições, elas têm assumido jornadas dobradas de trabalho em campos de deslocados, que vão desde a funções fisicamente desgastantes, como carregar enormes baldes de água e cozinhar em fogueiras abertas, até se encarregarem de responsabilidades adicionais de cuidado. Em meio à escassez de alimentos, depoimentos do relatório destacam que muitas têm optado por comer por último e em menor quantidade para garantir que toda a família esteja alimentada.

— A pior coisa que as mulheres fazem é se colocarem em último lugar em tudo, as últimas da lista, despriorizando a si mesmas e cuidando dos outros — comenta Hala, membro da Alianza por la Solidaridad, organização humanitária espanhola parceira da ActionAid.

Na Cisjordânia, que viu uma escalada das tensões após a eclosão da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, a situação também é dramática. Segundo o documento, palestinas sofrem com a violência tanto de soldados israelenses quanto de colonos, que muitas vezes demolem arbitrariamente residências na região. Em um dos depoimentos coletados pela organização, uma ativista de Hebron disse que viu uma vizinha ser “levada para dentro de uma sala [por soldados israelenses], todas as suas roupas [foram] tiradas e [eles] deixaram [um] cachorro atacá-la na frente do marido e dos filhos”.

— É terrível que essa guerra tenha continuado por tanto tempo sem um cessar-fogo. Estamos extremamente preocupados com as mulheres e meninas com quem trabalhamos em Gaza, bem como na Cisjordânia, que está se tornando mais perigosa e volátil a cada dia — conta ao GLOBO Riham Jafari, coordenadora de Advocacy e Comunicações da ActionAid Palestina.

A destruição quase total do sistema de saúde em Gaza também representa um duro golpe às palestinas. Segundo a ONU, há cerca de 155 mil mulheres grávidas ou amamentando no enclave. Embora estimativas apontem que 183 mulheres deem à luz todos os dias, com um bebê nascendo a cada dez minutos, apenas dois dos 12 hospitais parcialmente em funcionamento hoje têm uma maternidade — antes do conflito, 36 estavam operando. Nesse cenário, as mulheres são forçadas a parir sem os cuidados devidos, incluindo cesarianas e operações de emergência "sem esterilização, anestesia ou analgésicos".

Por outro lado, a escassez de alimentos e a falta de atendimento pré-natal elevou o número de abortos espontâneos, partos prematuros e complicações. De acordo com Adnan Radi, consultor e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital al-Awda, há bebês já nascendo com desnutrição:

— A fome afeta negativamente muitas mulheres grávidas, e as crianças ficam desnutridas desde o nascimento.

Sem o fornecimento suficiente de contraceptivos, o risco de gravidez indesejada também aumentou, segundo a ActionAid. Mesmo outros métodos além dos preservativos e das pílulas, como o DIU, são difíceis de serem adotados.

— A inserção de um DIU não é possível devido à falta de esterilização dos materiais necessários para o médico inseri-lo. A esterilização e a limpeza são limitadas e indisponíveis, levando à disseminação de infecções — pontua Feryal Thabet, gerente de um centro de saúde para mulheres.

Outra face da crise sanitária no enclave são as condições de higiene às quais as mulheres estão submetidas nos abrigos. Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), 690 mil mulheres e meninas menstruam em Gaza. A falta de acesso a absorventes e produtos de limpeza, porém, tem sido uma preocupação. Segundo especialistas da ONU, aquelas que conseguem acesso a pílulas anticoncepcionais têm feito uso contínuo para evitar menstruar em condições anti-higiênicas. Outras precisam enfrentar banheiros compartilhados com centenas de pessoas.

— No momento, a falta de produtos de higiene é um grande problema. Nossos parceiros estão distribuindo kits de higiene repletos de itens essenciais, como sabonete, shampoo e produtos para menstruação — contou Jafari à reportagem, explicando que também são distribuídos alimentos e roupas, transferências em dinheiro para mulheres comprarem diretamente o que precisam.

Por outro lado, sem um cessar-fogo no horizonte para o conflito que já dura 365 dias, as consequências podem ser ainda maiores para elas.

— No curto prazo, estamos extremamente preocupados com a chegada do inverno [verão no Hemisfério Sul]. Mulheres e meninas já estão gravemente debilitadas pela desnutrição e não têm roupas quentes nem abrigo adequado contra a chuva e o frio que se aproximam, o que as deixará mais suscetíveis a doenças e enfermidades — destacada Jafari. — Em longo prazo, as meninas de Gaza perderam um ano inteiro de educação, e toda a população sofreu um trauma profundo. Isso terá consequências graves para o futuro delas.

Por isso, pontua a coordenadora, "suas vozes e perspectivas não podem ser deixadas de lado" no dia seguinte do conflito:

— Chegou a hora de as partes interessadas locais e internacionais valorizarem a contribuição essencial das mulheres, aumentando o financiamento para organizações lideradas por mulheres e garantindo que elas tenham um lugar à mesa quando decisões cruciais sobre a Palestina e seu futuro estiverem sendo tomadas.

Após a avalanche da direita, qual país verás?

Que país pode existir enquanto fronteira e laboratório de práticas financeiras e comerciais ultraliberais? Um país mistificado, em transe resultante da última e da próxima guerra santa por inventar. Autorizados pelo espírito de salve-se quem puder e como puder, entram em cena os falsos vingadores, vangloriando-se de pilhar o que já foi previamente estigmatizado e vulnerabilizado: os biomas, as periferias, os povos e seus imaginários entrelaçados.

Em um país convertido em plataforma de superacumulação de capitais errantes, o esvaziamento último é o de sentido e o de destino. A orfandade multitudinária resultante encontra alívio nos braços de pastores, mitos, capitães e delegados, terceirizando sua autoimagem para aqueles que os retêm, seletivamente, em meio à dissipação. É por isso que os candidatos a próceres da extrema direita se apresentam como exterminadores de alteridades, de gênero, raça e comportamento, dos bandidos, imigrantes, comunistas e demais rótulos demonizáveis.

De um lado, hordas de mercenários armados, material e digitalmente, à disposição para manter a exceção permanente, ou seja, o poder de fato. De outro, uma legião de parlamentares e gestores sempre a postos para privatizar bens públicos e para tornar a legislação cúmplice ou leniente com o crime financeiro-empresarial organizado. Por sobre este bloco, como abóboda, se espraiam religiões verticalistas e salvacionistas, em consonância com think thanks neoconservadores e neonazistas, oferecendo paraísos de segurança e de consumo para os “escolhidos”.


Em tempos de guerra social total e assimétrica, ficam suspensos os limites protetivos do mundo do trabalho, dos territórios e do imaginário social. A liberdade de acelerar e atropelar o que estiver na frente do caminho é o âmago programático deste bloco representado por títeres como Trump, Marianne Le Pan, Netanyahu, Milei, entre outros na esfera internacional. No Brasil, Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Marçal e congêneres repetem o mesmo lema como num jogral. Não casualmente, o crescimento de lideranças políticas com esse perfil é acompanhado pelo crescimento das bolsas e movimentos especulativos determinados: quanto maior o solavanco na contratualidade anterior, maiores são lucros extraordinários realizados em detrimento do futuro de coletividades e de patrimônios comuns.

Investidores especializados na incorporação de ativos estatais exigem padrão SABESP de privatização, sem freios nem contrapartidas. Os superávits primários dilatados que a dupla Palloci e Meireles ofereciam entre 2003 e 2015, como prova de fidelidade aos mercados, depois de Temer e Bolsonaro foram automatizados como piso regulamentar. No novíssimo velho Comitê de Política Monetária do Banco Central, a definição dos juros passa a ser feita de forma assumida para manter e ampliar as margens de ganhos financeiros com serviços e títulos da dívida pública. É o fim da política monetária como instrumento anticíclico, que forneça a liquidez necessária para garantir soberania econômica em tempos de crise. A política de juros no Brasil é movida pelo medo de contrariar interesses particularistas: quanto mais emprego e renda gerados, mais restritiva deve ser a política monetária para neutralizar eventuais dinamismos que escapem à lógica do rentismo. Cara e coroa da mesma moeda: juros preventivos e guerras preventivas contra as retomadas de território e de crescimento autossustentado.

Austericídio é pouco para caracterizar este descomunal butim de recursos públicos repartidos entre conglomerados financeiros por meio da multiplicação de mecanismos artificiais de endividamento do Estado e da sociedade. Enquanto se refestelam com os despojos dos fundos públicos e dos bens ambientais da nação, os grandes conglomerados financeiros e seus corvos midiáticos arrotam denúncias de gastança, corrupção e má gestão do Estado. Subsídio é o que se condena nos setores ainda não financeirizados completamente. Para bancos e fundos de investimento, há sempre almoço (banquete) grátis sem que haja contrapartidas em termos de emprego, inovação e qualificação. Não há sistema financeiro no mundo mais subsidiado e protegido que aquele que opera no Brasil. Um grande paraíso financeiro como este requer um Banco Central que seja olhos e ouvidos dos reis-investidores. É o que se quer manter com sua autonomia plena, iniciada com Guedes e Campos Neto, e mantida, com reverência servil, por Haddad e Galípolo.

Conglomerados de commodities agrícolas e minerais desfrutam a mesma condição paradisíaca, blindados e protegidos de todos os lados. O território nacional adquire a forma de uma gigantesca incubadora de novas plantations e províncias minerárias. Estes empreendimentos estão autorizados a promover desastres em série, devidamente precificados, para que prossigam expandindo seu raio de atuação. Os setores exportadores, valendo-se do barateamento de trabalhadores, comunidades e biomas, se tornam os “setores-líderes” do país.

O crime, em larga escala, contra povos, a natureza e a economia popular, compensa. E continuará a compensar, a depender das vozes tonitruantes que fazem calar sistemas de justiça, órgãos de fiscalização e controle. Despachantes parlamentares se apressam em aprovar legislações antiambientais e antissociais que criminalizam sujeitos coletivos que se coloquem na contramão desta corrida desenfreada. Passada a boiada, fecha-se a porteira e nela se enfileiram os fuzis. Nem Deus, nem pátria: “segurança jurídica” da propriedade acima de tudo.

Sem margem ou horizonte para firmar ou revisar acordos interclassistas, pactos sociais ad hoc que sejam, resta o estouro do alarme e o comportamento de manada. A pauta particular dos grandes proprietários – a segurança do patrimônio – vira pauta de todos que aspiram à única condição considerada digna. Melhoria e direitos não “engajam” mais, privilégio é o que se almeja, ou se é VIP ou não se é nada. Modalidades de serviços e de tratamento (pretensamente VIP) são oferecidas aos sedentos por reconhecimento e por olhares de inveja prometidos nas telinhas. Por isso a extrema direita é pop.

O culto ao Todo Poderoso se desdobra no culto à concentração infinita. Fechados os caminhos para um padrão universal de tratamento ao longo dos anos 90, apesar das melhores intenções e cartas de direitos, legadas de décadas e séculos anteriores, adeuses são dados sem que se perceba. É “Adeus Rosseau” e não apenas “Adeus Lênin”. Não é só o socialismo que fica para trás, mas também todas as promessas da modernidade e de democracia liberal. Os ricos e pobres não se encontrarão nem se aproximarão, ninguém mais ousa vislumbrar o cenário de uma grande classe média em expansão a partir da “equalização das oportunidades”. Morte ao meio, ao meio real e almejável por todos.

Qualquer política social ou instrumento de regulação pública para fazer prevalecer interesses difusos e intergeracionais é pichada imediatamente como “socialista”. No capitalismo financeirizado não cabem mais dádivas aos debaixo. A disfunção, a fraqueza ou pobreza torna-se instantaneamente sinal de “não merecimento”. Meritocracia dos vencedores, eugenia econômica, aporofobia, supremacismo, nenhuma classificação consegue captar a sordidez da fórmula.

As políticas ultraliberais e as culturas narcísicas em circulação implodiram as pontes de ligação e os canais de interação social. Se é livre a defesa e ostentação da fortuna, é porque a igualdade perdeu importância como princípio legitimatório. Do alto descem os sinais de asco e repugnância contra os descartáveis, aqueles que não deveriam existir. Pragmaticamente, os que podem se salvar mandam para o inferno os que não podem.

No imaginário generalizado, fabricado com terror, sequestro e bombas, o inimigo é aquele que interrompe ou ameaça interromper sua ascensão. São taxados de corruptos, ditadores e bandidos todos que pleiteiem ou justifiquem a adoção de mecanismos redistributivos da renda. As bandeiras de Israel nas manifestações bolsonaristas são didáticas, expondo os cruzamentos de estratégias fundamentalistas. Inimigo no vórtex, todas as armas e métodos são abençoados. Grande Israel, senha da grandeza de todas as ordens, para os “escolhidos”. Todo poder e toda a glória para os “filhos diletos”.

No caso brasileiro, o que une todas as direitas é a demonização das práticas políticas dedicadas a desconcentrar saber, poder e renda. O PT, a esquerda e a bandeira vermelha, são alvos mais manejáveis, mas é a luta social e o conjunto de memórias de resistência da classe trabalhadora e das comunidades o que se quer erradicar.

No andar de cima, no campo da regulação das finanças, do agronegócio e da indústria extrativa, há cada vez mais autorregulação inter-monopolística. E o que sobra no andar de baixo? Ficamos com a disputa pela intermediação do que sobra da dívida, do que sobra de poder regulatório? A disputa possível não estaria em espaços de poder oclusos e paralelos, construídos por décadas de mobilização social?

Enfrentamos nas últimas décadas uma sequência de contrarreformas que tratou de restaurar e depois exponenciar graus e ritmos de acumulação de capital. Seu itinerário é a destruição dos referenciais coletivos de organização e das garantias objetivas e subjetivas dos direitos sociais e políticos da classe trabalhadora. Cortes profundos na carne com a imposição de bloqueios políticos e institucionais de tudo o que possa ser democratizado e socializado no país.

Nesse cenário, é indispensável resgatar a memória das lutas, memória do processo, não apenas do resultado. Não cabe qualquer saudosismo acerca das chances e espaços anteriormente alcançados. A visão estática e legalista dos direitos, típica da filosofia política liberal, se podia fazer algum sentido em períodos de relativa estabilidade econômico-política, não tem mais lugar no bojo das convulsões estruturais do capitalismo e de avanço subsequente de formas políticas autoritárias e neofascistas.

O lamento da perda deve ser passagem para a evocação. Para encontrar atalhos e saídas, será preciso criar as condições objetivas e subjetivas para que os dominantes temam novamente os dominados e admitam a definição de limites e freios à sua sanha expansionista. É preciso dimensionar o tamanho dos estragos e a profundidade das ofensivas promovidas nestes anos. Ao mesmo tempo, é preciso medir o poder social que ainda detemos e resguardamos e a partir daí conjecturar como viabilizar as contraofensivas necessárias.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


Tecno-Apocalipse: a era das Redes Sociais

Em 1959, Günther Anders fez um discurso na Freie Universität Berlin que foi posteriormente publicado como “Teses para a Era Atômica”, no qual ele analisou o impacto apocalíptico da bomba nuclear na política. As reflexões abaixo, inspiradas por esse texto, abordam algumas das consequências da ascensão das plataformas sociais desde 2008 no mesmo âmbito. Enquanto as plataformas de trabalho são amplamente analisadas e criticadas pela precarização do trabalho que produzem, as plataformas sociais permanecem, apesar do reconhecimento generalizado de seus efeitos nocivos para a sociedade, o grande consenso do realismo capitalista atual, para usar a expressão de Mark Fisher. O objetivo aqui não é comparar as redes sociais ou as plataformas com a bomba atômica de forma literal, mas reconhecer seu efeito profundo e, até agora, irreversível na política.

Essas teses, embora teóricas, provêm de uma realidade muito empírica e fatual. Quando Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 no Brasil com uma campanha de mídia social muito bem-sucedida, e os escândalos da Cambridge Analytica vieram à tona, o Brasil tornou-se um case de estudos global no que se refere à ascensão da extrema direita, um laboratório para o que chamo de “neofascismo de plataforma”, uma tendência imbutida nas novas tecnologias digitais e fomentada por nossas práticas cotidianas. Isso gerou uma espécie de apocalipse tecnológico, que, embora não seja advindo de uma bomba, pode, no entanto, produzir genocídios, como aconteceu no Brasil durante a pandemia da covid-19, em Mianmar em 2017 e na Índia sob o governo de Narendra Modi.


A crise de 2008 remodelou de vez nosso mundo digital, dando origem a uma nova era de capitalismo monopolista. Intelectuais como Yanis Varoufakis, Cédric Durand e Jodi Dean chegam até mesmo a apontar para uma mudança no nosso modo de produção atual (isto é, uma mudança na organização social e econômica) do capitalismo para o “tecnofeudalismo”. A digitalização e a plataformização não são apenas um novo “modelo de negócios”, como pregam o Vale do Silício e suas variantes ao redor do mundo, mas sim um novo cercamento dos mercados (até mesmo o mercado de trabalho), de modo que a privatização desses mercados aniquila o princípio de competição inerente a eles. Mas não são apenas os mercados que são cercados, mas também nossas formas primárias de sociabilidade, cultura, educação, comunicação, e, mais importante, a política. A nova infraestrutura digital tornou-se a principal forma de organização política da direita. Desde o boom das redes sociais, governos de direita se proliferaram em todo o mundo em uma escala nunca vista antes. Esse aparato não apenas conectou grupos que antes eram apenas marginais, mas constitui a base de uma direita internacional globalizada neofascista. Mesmo defendendo o nacionalismo na maioria dos países, eles compõem o movimento social mais importante (em termos eleitorais) sem fronteiras de nosso tempo. Altamente organizados pelas versões locais de um novo partido de massas digital que atua através de uma máquina de propaganda pervasiva e ostensiva, esse movimento lucra amplamente com a lógica algorítmica que compõe as redes sociais e transforma a linguagem política atual na linguagem da publicidade na qual se amparam essas plataformas. Como argumenta Cathy O’Neil, os algoritmos tornaram-se as novas armas de destruição em massa. Como a destruição de Hiroshima tornou-se algo que pode ocorrer em qualquer lugar do mundo após o advento da bomba atômica, o neofascismo político do Brasil, dos Estados Unidos e da Índia torna-se uma possibilidade muito provável para outras democracias no mundo após a ascensão das redes sociais. O neofascismo de plataforma é uma condição mundial.

As redes sociais não são um instrumento; são um conjunto de monopólios. Nunca na história, a proposta de Marshall McLuhan de que “o meio é a mensagem” foi tão verdadeira. Assim como a bomba atômica não é uma possibilidade de paz, mas sua própria impossibilidade, as redes sociais não são uma possibilidade de ampliar a democracia, mas um de seus principais fatores destrutivos. Os alegados efeitos progressistas que elas podem ter na política são de longe superados por sua capacidade de erosão democrática. As redes sociais não são apenas “tecnologia pura”. É uma tecnologia inserida dentro de uma lógica de plataforma que dita a forma da nossa sociabilidade atual, mesmo que sejamos levados a acreditar que produzimos seu conteúdo. Embora isso pareça absolutamente plausível, é enganoso dizer que as redes sociais existem em nossa situação política. Esta afirmação deve ser invertida para se tornar verdadeira, como diz Anders sobre a bomba atômica. Como a situação política hoje é altamente determinada e definida pela existência das redes sociais – que cercam a esfera pública e o debate político, nossas formas de interação e subjetivação, a forma como nos informamos (especialmente as gerações mais jovens, como vemos agora com a campanha bem-sucedida da AfD no Tik Tok), e a maneira como fazemos política – é preciso reconhecer que as ações e desenvolvimentos políticos de nossa era estão ocorrendo dentro de uma situação de redes sociais, de plataformas sociais, não o contrário. O problema não é apenas o Twitter ou Elon Musk, mas a situação em si. Apesar dos efeitos catastróficos que essas plataformas têm causado, há uma espécie de consenso tecnológico que impede qualquer tipo de crítica. Apesar de todas as posições neofascistas de Elon Musk, ninguém discute o boicote de uma rede como o X – o maior sucesso dessas empresas foi vender o seu negócio como liberdade de expressão. Não há acordo sequer sobre sua regulação em círculos de esquerda. Como argumentei aqui antes, o aparato de plataforma atual realizou o sonho erótico do anarcocapitalismo. Uma das principais características do capitalismo digital é eliminar a função mediadora do Estado e das instituições estatais em múltiplas esferas. As criptomoedas eliminam o papel das regulamentações financeiras estaduais, as plataformas de trabalho contornam as legislações trabalhistas e as redes sociais dispensam qualquer e todo controle democrático sobre o debate político. A chamada tecnologia mais avançada de nossa era não é nada mais que um Velho Oeste digital, um conto de Mahagonny, onde a política é feita pelos mais fortes, mais rápidos e mais poderosos, e onde os perdedores são mais uma vez os subalternos, os povos autóctones, a paisagem natural.

Embora propagandeiem que ultrapassam qualquer fronteira, as redes sociais produzem mais divisões sociais e políticas do que qualquer outra tecnologia anterior a elas, pois não são apenas uma tecnologia, mas um monopólio digitalmente controlado de nossas formas de política. Em suas “Teses,” Günther Anders afirmou que a bomba atômica de alguma forma desconectou a violência e o ódio, transformando a guerra em um assunto impessoal. Segundo ele, “como os alvos do ódio artificialmente fabricado e o alvo dos ataques militares serão totalmente diferentes, a mentalidade da guerra se tornará realmente esquizofrênica.” As redes sociais assumiram o papel de reorganizar o ódio (as comunidades incel, os movimentos digitais neofascistas, as organizações pró-armas e pró-guerra), reconectando as vítimas do ódio com o ataque militar ou paramilitar a elas. As campanhas digitais que incitam o genocídio na Palestina, são só um dos muitos exemplos disso. O ódio nas redes sociais é a face atual da era atômica. Sua lógica algorítmica se encaixa na dinâmica fascista de “in-groups e out-groups” como uma luva. Isso impede que a sociedade como um todo perceba que, com a bomba atômica e a crise climática, “qualquer distinção entre perto e longe, vizinhos e estrangeiros, tornou-se inválida” e que estamos vinculados não apenas nesta, mas também nas próximas gerações à ameaça de destruição na qual nossa existência está enquadrada.

De acordo com Anders, a possibilidade de acionar uma bomba e não assistir aos seus efeitos, a separação no tempo e no espaço de uma ação e suas consequências, é a versão hiper-pós-moderna do assassinato disfarçado de trabalho ou cumprimento do dever no fascismo. Por trás da ideia de “seguir ordens”, novamente, segundo Anders, esconde-se a isenção do trabalhador de responsabilidade por seus próprios atos, dos quais “simplesmente não pode ser culpado”. Clicar é como apertar o botão de uma bomba. Se o ambiente virtual pode de fato dar a sensação de participação política a pessoas de outra forma excluídas da política, ele também separa a ação e a sua consequência no espaço e no tempo. Apertar um botão e pressionar uma tecla são atividades semelhantes agravadas pelo fato de que, no segundo caso, o caráter virtual da ação faz parecer que suas consequências não são verdadeiras. Isso é válido tanto para o indivíduo isolado que repassa uma fake news, como para as fazendas de cliques usadas para disseminar notícias falsas e eleger governos de extrema direita, bem como para a formação de “in-groups” que atacam mulheres, pessoas racializadas, LGBTQIA+ e estrangeiros a ponto de provocar feminicídios, queercídios e até genocídios. O que antes significava ser politicamente crítico e envolvido, isto é, engajado, agora é uma expressão que designa nossa participação em um aparato que é político até o cerne, mas cuja política é coberta por um véu tecnológico. As redes sociais substituem a ação por um engajamento que impede qualquer ação real enquanto, ao mesmo tempo, produzem uma forma de política que parece desaparecer no espaço temporal que separa os cliques e as suas consequências finais. Como Anders afirmou sobre a bomba atômica, “esta, então, é nossa situação absurda: no exato momento em que nos tornamos capazes da ação mais monstruosa, a destruição do mundo, as ‘ações’ parecem ter desaparecido. Como a mera existência de nossos produtos já prova ser ação, a pergunta trivial de como devemos usar nossos produtos para ação é quase fraudulenta, pois a pergunta obscurece o fato de que os produtos, por sua mera existência, já agiram”. Em 2024, metade das interações na internet será por e com bots. Nosso futuro deve ser decidido por isso?

Enquanto a mudança climática reforça o Endzeit e faz de nosso presente a última era em muitos sentidos, o tempo que passamos rolando os feeds nos aprisiona na temporalidade vazia das plataformas das redes sociais, tornando-nos cada vez mais incapazes de perceber o que produzimos como sociedade, de ouvir o que Anders chamou de “a voz muda de nossos produtos.” A era da informação se torna a era da ignorância, e nossa situação como “utópicos invertidos”, isto é, incapazes de ver o que já fizemos, é combinada com a perda de nossa capacidade de imaginar o que poderíamos fazer. Para escapar desta situação, devemos primeiro nos perguntar, sem medo da resposta: existe alguma possibilidade de emancipação dentro deste aparato e situação? Ser antiapocalíptico, como afirmava Anders, é cultivar a capacidade de temer as consequências das nossas ações passadas e presentes para as gerações futuras. Conter o avanço desse aparato sobre a sociedade, especialmente no Brasil dos próximos anos, é uma tarefa mais que necessária para barrar a extrema direita que continua firme e forte nessas redes e para conceber uma política que seja algo mais que mercadoria e publicidade.

Por um jornalismo menos ofegante

A regra número um do jornalismo é simples: o jornalista não deve ser notícia! Sabemos que já a desrespeitámos algumas vezes, ao longo deste ano, aqui na VISÃO, mas o assunto é sério – tão sério que o primeiro-ministro falou sobre ele novamente esta terça-feira, 8, numa conferência dedicada ao futuro dos media.

Durante o evento, Luís Montenegro reforçou o papel fundamental do jornalismo para a manutenção da Democracia, e elencou uma série de medidas, que podem ser consultadas na página oficial do Governo, para tentar mitigar um problema que, assumiu novamente o governante, é estrutural. Montenegro lamentou que muitas vezes a comunicação social faça um “jornalismo ofegante”, no sentido de tentar ser mais rápido, ao invés de ter a tranquilidade e a calma necessárias para uma análise profunda da realidade. Não está errado, o chefe do Executivo. Mas a velocidade do mundo tem, inevitavelmente, contagiado os jornalistas, que cada vez chegam a menos pessoas, alimentam mais plataformas, recebem menos e trabalham mais. As empresas de media transformaram-se em máquinas que tentam fazer dinheiro num negócio que poucas vezes o conseguiu – perceber isso era meio caminho andado para abordar o assunto de outra forma.


Pensar em programas de literacia mediática para os alunos do Ensino Secundário parece visionário, mas na Finlândia esse cuidado é tido a partir do Ensino Básico – com crianças de telemóvel e ecrãs na mão desde que nascem, chegar ao Secundário sem saber distinguir a verdade da mentira é uma tragédia para a democracia. A proliferação de canais de informação nas redes sociais, sem fontes fidedignas e com a ajuda de algoritmos que disseminam mentiras como se fossem verdades absolutas, não vai abrandar. A única forma de garantir que a verdade continua a ser vista como tal é dando às pessoas ferramentas para identificar os factos não verificados. E as fontes falsas da informação que recebem.

No mesmo sentido, os incentivos à assinatura de jornais e revistas são de louvar, mas continuam a ser insuficientes: porque, se não há hábitos de consumo de informação desde cedo, eles não vão vingar no futuro. E não chegam para financiar empresas deficitárias (como é o caso da dona da VISÃO). Se os media são um pilar da Democracia, devem ser tratados como tal: com os apoios certos, universais e transversais. Devem ser alvo de políticas públicas sérias, com regulação apertada e com objetivos concretos. Com leis que incentivem o mecenato e o investimento num setor que, se é tão fundamental como se diz, não pode ser deixado ao abandono, nem tratado como outro qualquer.

Os governos têm sempre muito medo de que se diga que estão a interferir nos media. Como se os media não tivessem capacidade para controlar essa pressão – é esse o nosso trabalho. E como se alguns dos mais respeitados meios não fossem totalmente públicos: veja-se o exemplo da RTP, da BBC, da France TV…

Graças a esse medo, os sucessivos executivos nacionais deixaram os media definhar, apontando agora problemas estruturais que existem e foram identificados há anos, e para os quais foram devidamente alertados. É muito bom ver um Governo comprometido, finalmente, com medidas concretas. Mas temo que, se não houver rapidamente um esforço mais musculado, sobrem poucos meios para defender a Democracia daqui a muito pouco tempo.

Bolsonaro continua impune

O primeiro turno das eleições municipais confirmou que Bolsonaro sobrevive como ator influente e capaz de forjar eleitos pelo país. Não sabemos a exata medida dessa influência antes do resultado do segundo turno, mas a conclusão é incontornável.

Depois do mais radical período de delinquência governamental em muitas gerações, tudo que o sistema de Justiça brasileiro conseguiu realizar, em relação ao líder do movimento, foi declarar sua inelegibilidade por oito anos em razão de ataques à urna em reunião com embaixadores e do uso político das comemorações do Bicentenário. O TSE não se pronunciou sobre outros crimes eleitorais. O PGR nem sequer provocou o STF a julgar crimes comuns.

A falta de responsabilização justa e robusta de agentes que evisceraram as capacidades de o Estado executar políticas públicas e atentaram contra o regime democrático é convite a que essas práticas se repitam. O argumento é tão trivial quanto correto. Está em todas as cartilhas da resistência democrática contra a terceira onda global de autocratização da qual o Brasil não se apartou.

Não é surpresa que, por baixo do alarde sobre "punição exemplar" pelos crimes de 8 de janeiro, nessa simulação teatral de uma heroica "recivilização" dos radicalizados, o STF tem se esmerado mesmo é em punir peixes pequenos. A investigação de militares, políticos e empresários segue na gaveta.


Lambaris vão caindo na rede, tubarões continuam nadando. E o STF se orgulha da corajosa façanha. Não deixa de ser fiel à tradição do Judiciário brasileiro, para quem sempre foi mais fácil punir quem carece de força política, econômica e social; mais difícil punir quem frequenta as suas rodas de convívio real e simbólico, quem pode pagar o arsenal de chicanas advocatícias geradoras de atraso, prescrição e impunidade.

Importante entender que a anistia a Bolsonaro, pelo menos em parte, já aconteceu. O primeiro operador dessa anistia não declarada foi Augusto Aras, por meio de arquivamentos alegando de falta de provas (apesar dos quilos de provas produzidas pela CPI) ou a não tipicidade criminal da conduta (como a ideia de que presidente é agente político "sui generis" e não comete prevaricação).

Gonet, atual PGR, precisaria de vontade, coragem e criatividade jurídica para reabrir e questionar a "coisa julgada" do que Aras trancou. Mas há outra lista de acusações criminais que Aras não pôde arquivar. Envolve peculato, falsidade ideológica, atentado violento contra o Estado de Direito, tentativa de golpe de Estado, organização criminosa. Não é modesta a xepa do fim da feira criminal.

Alexandre de Moraes, em seus inquéritos, acumulou poder cautelar para interferir no extremismo político. E em práticas nem tão extremistas assim. Um poder excessivo, excepcional e perigoso, mas que não inclui o poder de denunciar criminalmente.

Para que o STF possa julgar Bolsonaro, Gonet precisa denunciar. Ele declarou, dia desses, que iria "deixar para depois da eleição". Diz não querer se meter na política. Se bobear, vai também esperar a eleição americana. Não percebeu que, ao desobedecer dever funcional de denunciar um investigado assim que as provas estejam maduras, interfere decisivamente na política e sonega do eleitor informação a que tem direito.

Conrado Hübner Mendes

A guerra


A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Apelo de Netanyahu ao povo libanês cai em ouvidos moucos em Beirute

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, apelou diretamente ao povo do Líbano em um vídeo publicado na terça-feira, dizendo-lhes para se voltarem contra o grupo xiita Hezbollah, apoiado pelo Irã, ou correrem o risco de uma destruição na mesma escala de Gaza.

“Cristãos, drusos, muçulmanos sunitas e xiitas, todos vocês estão sofrendo por causa da guerra fútil do Hezbollah contra Israel”, ele disse. “Levantem-se e tomem seu país de volta.”

Mas nos bairros xiitas, sunitas e cristãos de Beirute, na manhã de quarta-feira, o apelo de Netanyahu estava caindo em grande parte – se não totalmente – em ouvidos moucos.

“Sim, ouvimos o discurso, mas ninguém aqui escuta Netanyahu”, disse Yusuf Habbal, 31, enquanto cortava pedaços do doce tradicional libanês Kunafah em sua loja em Tariq El Jdideh, uma área sunita.

“Ninguém disse a Netanyahu para ocupar a Palestina, ninguém disse a ele para ocupar o Líbano. São os israelenses que estão conduzindo esse conflito.”

Bombardeio de Israel, sem aviso, no Centro de Beirute

Mas Habbal e seus companheiros sunitas “também não aceitam o que o Hezbollah está fazendo”, disse ele.

“Antes que Netanyahu falasse sobre o Hezbollah, nós éramos contra eles. O povo de Beirute sabe que o Hezbollah tem sua própria agenda. E agora eles estão nos levando para uma guerra que não queremos.”

“Ninguém aqui escuta Netanyahu”, diz Yusuf Habbal em sua loja em Beirute

O Hezbollah, que é uma força mais bem armada e poderosa no Líbano do que o próprio exército do país, começou a disparar foguetes contra o norte de Israel há um ano, em apoio ao Hamas, no dia seguinte ao brutal ataque de 7 de outubro.

Os foguetes do Hezbollah sinalizaram o início de uma nova fase de seu confronto com Israel. No mês passado, Israel intensificou esse conflito latente quando expandiu sua campanha de bombardeios no Líbano, incluindo Beirute, antes de lançar uma invasão terrestre no sul do país.

“Eles estão atacando muito perto de nós agora e é assustador”, disse Mohammed Khair, 43, enquanto cortava o cabelo em uma barbearia em Tariq El Jdideh.

“Ninguém aqui quer essa guerra, mas ninguém vai se voltar contra o Hezbollah por algo que Netanyahu disse em um vídeo”, disse ele.

Netanyahu estava “sempre falando com os palestinos, com os libaneses”, disse Tarraf Nasser, um aposentado de 76 anos que estava passando pela barbearia. “Ninguém escuta Netanyahu”, ele disse. “Ele não está realmente falando conosco.”

Fadi Ali Kiryani do lado de fora de sua loja em Beirute. "Nós sempre hastearemos a bandeira do Hezbollah", disse ele

Em Achrafieh, o principal bairro cristão de Beirute, havia uma sensação de futilidade quanto à capacidade do povo libanês de seguir os conselhos de Netanyahu, mesmo que quisessem.

Antoine, um aposentado católico de 75 anos, que pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome, estava fumando um cigarro do lado de fora do Brewholic Café do bairro.

“Benjamin Netanyahu é o primeiro-ministro de Israel, não do Líbano. Ele deveria cuidar do seu povo, não do nosso”, disse Antoine.

“Ao mesmo tempo, é verdade que temos que fazer algo para nos libertar da influência do Irã. Mas não temos armas e não temos políticos que possam ser verdadeiramente libaneses. Todos os nossos políticos são afiliados a outros estados ou grupos, principalmente o Irã."

Ninguém no Líbano teria conflito doméstico porque Netanyahu os instruiu, disse Antoine. “Faremos isso por conta própria.”

Do outro lado da rua, em sua sapataria, Maya Habib, 35, deu de ombros cansados ​​ao apelo em vídeo do primeiro-ministro israelense. “Todo mundo aqui sabe que Israel mente”, ela disse. “Mas ouça, talvez ele tenha razão. Ele avisou a todos – não nos ataquem, não cheguem perto de nós, e esta não será sua guerra. Agora é.”

Entre os cristãos de Achrafieh, “as pessoas estão prestando atenção” a Netanyahu, disse Habib. “Mas ninguém pode fazer nada de qualquer maneira”, ela disse, dando de ombros novamente. “Nós nem temos um presidente. Netanyahu está dizendo que todas as armas devem ir para o exército libanês, mas como?”

Ali Srour, 24, dono de uma joalheria. "Ninguém realmente se importa conosco", disse ele

O Hezbollah ainda pode contar com apoio firme nos bairros onde é a força dominante na vida política e social, e entre as comunidades xiitas de áreas mistas. Vários moradores xiitas do bairro Mar Elias disseram que estavam completamente atrás do grupo.

“Somos todos Hezbollah aqui, não importa o que o Hezbollah faça, nós os apoiaremos”, disse Fadi Ali Kiryani, um dono de loja de esquina de 52 anos. Como outras pessoas em Mar Elias, Kiryani disse que não estava preocupado com a ameaça de Netanyahu de que o Líbano sofreria a mesma destruição e sofrimento que Gaza.

“Mesmo que a situação aqui fique pior do que em Gaza, continuaremos a hastear a bandeira”, disse ele.

“Minha casa em Dahieh já foi destruída. Eu preferiria que minha casa desaparecesse do que o sapato no pé de um combatente do Hezbollah fosse danificado.”

Sentada atrás da mesa de sua loja de toalhas e roupas de cama de 40 anos, Fany Sharara, de 75 anos, disse que o Hezbollah era a única força que defendia o povo do Líbano.

“Nada que Netanyahu dissesse poderia mudar minha mente”, ela disse. “Ele é um criminoso, um assassino, ele não pode deixar uma criança viva.”

Israel tinha “toda a Europa e toda a América” do seu lado, Sharara acrescentou. “Estamos com o Hezbollah porque eles são os únicos nos defendendo. Não o governo libanês.”

Algumas portas abaixo, e alguns anos mais jovem, o dono de uma joalheria de 24 anos Ali Shoura estava simplesmente cansado de todos os envolvidos, ele disse. "Ninguém realmente se importa - os políticos, as pessoas no poder, o governo libanês, o Irã, Israel, a América, o Hezbollah também."

Ele balançou a cabeça. “É tudo só teatro”, ele disse. “E nós somos todos as vítimas.”