sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Pobreza atinge metade das crianças e adolescentes no Brasil

Mais da metade das crianças e adolescentes brasileiras vivem em situação de pobreza multidimensional, segundo o estudo Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil lançado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) nesta quinta-feira.

De acordo com o Unicef, 28,8 milhões de crianças e adolescentes até 17 anos viviam nesta situação em 2023, o equivalente a 55,9% do total. O número, porém, é menor do que o observado em anos anteriores. Em 2017, a pobreza atingia 34,3 milhões de crianças e adolescentes, mais de 6 em cada 10.

A pobreza multidimensional extrema também caiu, de 13 milhões (23,8%) de pessoas, em 2017, para 9,8 milhões (18,8%), em 2023.

A análise considera não apenas a renda das famílias, mas também o nível de educação, acesso à informação, água, saneamento, moradia, proteção contra o trabalho infantil e segurança alimentar.

"A pobreza infantil é multidimensional porque vai além da renda. Ela é resultado da relação entre privações, exclusões e vulnerabilidades que comprometem o bem-estar de meninas e meninos", diz Liliana Chopitea, chefe de Políticas Sociais do Unicef no Brasil, em nota publicada no site da instituição.

"Os resultados deste estudo mostram que o Brasil conseguiu avançar nas diversas dimensões avaliadas, reduzindo a pobreza multidimensional e impactando positivamente meninas e meninos em todo o país", conclui.

Segundo o estudo, que se baseia na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a redução dos indicadores de pobreza foi impulsionada principalmente pela ampliação de programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial, instituído em resposta à crise provocada pela pandemia e, a partir de 2022.

Segundo a pesquisa, cerca de 17,9 milhões de famílias eram beneficiárias dos programas no primeiro trimestre de 2022. Esse número aumentou para aproximadamente 21,6 milhões de famílias no primeiro trimestre de 2023.

Em termos absolutos, o estudo mostra que, em 2019, 750 mil crianças e adolescentes saíram da pobreza devido aos programas de transferência de renda. Em 2022, esse número saltou para 2,9 milhões, até crescer mais uma vez para 4 milhões, em 2023.

Com isso, a dimensão renda foi uma das que apresentaram a redução mais significativa de famílias em situação de vulnerabilidade no período analisado. Em 2017, por exemplo, uma a cada quatro crianças e adolescentes de até 17 anos vivia abaixo da linha da pobreza monetária (25,4%), cuja renda familiar era inferior a R$ 355 mensais por pessoa. Em 2023, esse percentual caiu para 19,14%, o que equivale a aproximadamente uma em cada cinco crianças e adolescentes.

O percentual de crianças sem acesso à informação também teve uma mudança drástica no período analisado, caindo de 17,5% para 3,5% no período analisado.

Na dimensão água, o recuo foi de 6,8% para 5,4%. No caso do saneamento o percentual caiu de 42,3% para 38%.

Já em relação a moradia, os valores oscilaram de 13,2% para 11,2% crianças sem condições adequadas de habitação em seis anos.

A insegurança alimentar também teve redução de 50,5% em 2018 para 36,9%, em 2023.

Com relação ao percentual de crianças e adolescentes em trabalho infantil, houve estabilidade, de 3,5% para 3,4%, o que ainda significa que 1,7 milhão de meninos e meninas estão nesta situação.

A organização destaca o impacto negativo da pandemia da covid-19 nesse período. Em 2023, cerca de 30% das crianças entre sete e oito anos de idade não estavam alfabetizadas, em comparação a 14% em 2019, por exemplo.

Apesar das reduções, o país apresenta ainda diversas desigualdades. A pobreza multidimensional entre crianças e adolescentes negros permanece, segundo o estudo, mais alta em comparação com brancos. Enquanto, entre meninas e meninos brancos, 45,2% estão em pobreza multidimensional, entre negros o percentual é de 63,6%.

Há também diferenças geográficas. Dados da pesquisa mostram que a maior parte das crianças e adolescentes que residem em áreas rurais enfrentam privações de direitos. Esse percentual passou de 96,3% em 2017 para 95,3%, em 2023. No caso de áreas urbanas a privação recuou de 55,3% para 48,5%.

A privação ao saneamento básico é o maior destaque, chegando a quase 92% das crianças e adolescentes de áreas rurais, enquanto nas áreas urbanas é de 28%.

"A pobreza afeta mais as crianças e adolescentes justamente porque estão em um momento de desenvolvimento. Qualquer direito que não seja garantido na idade certa pode ter consequências a médio e longo prazo para o desenvolvimento das crianças, e a longo prazo também para a economia de um país", diz Chopitea.
Deutsche Welle

Brasil: um farol para a humanidade na era Trump?

Nos próximos dias Donald Trump assumirá a presidência dos Estados Unidos. O mundo está apreensivo com essa sua volta. O temor não se deve unicamente pelo que aconteceu em seu primeiro mandato (2016/2020), mas principalmente pelas ameaças que ele tem feito nos últimos meses. Entre elas as mais impactantes estão a retirada de seu país do Acordo de Paris para redução das emissões de CO2, o aumento do protecionismo e favorecimento para as empresas norte-americanas dentro dos Estados Unidos, o fim dos controles sobre discursos de ódio e fake news nas redes sociais, a ameaça de invasão da Groenlândia e Panamá e a anexação do Canada.

Os métodos de Trump se caracterizam pela truculência e talvez o mais emblemático seja o que aconteceu em 6 de janeiro de 2021, quando uma turba de mais de 1500 militantes, apoiadores do então presidente, invadiu o Capitólio – o parlamento dos Estados Unidos – para contestar o resultado das eleições do final de 2020, que deu a vitória para Joe Biden. A justiça norte-americana não conseguiu condenar Trump pelo ato, mas condenou sim os invasores, sendo que a maioria destes foi presa. No entanto Trump já anunciou que um de seus primeiros atos como presidente será o de conceder indulto para todos aqueles invasores que ainda estão presos.


Há muito de bravata, mas o fato é que não podemos esperar cenários de paz e tranquilidade pelos próximos anos principalmente porque, ao contrário de seu primeiro mandato, desta vez Trump terá maioria tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.

O presidente eleito dos EUA em entrevista coletiva recente deixou bem clara a sua insatisfação com o Brasil e manifestou seu desejo em aumentar os impostos sobre os produtos brasileiros vendidos ao seu país. Além disso em dezembro 2023, também Elon Musk, que foi o principal contribuidor da campanha eleitoral de Trump e que irá ocupar um cargo importante em seu governo, teve entreveros com o governo brasileiro e com o STF.

Mas o principal sinal de que nossa vida na era Trump não será fácil foi dada pelo discurso de Mark Zuckerberg no último dia 8. Zuckerberg, que é o CEO da Meta, afirmou que sua empresa não mais fará checagem de fatos em relação ao que é publicado em suas redes sociais, ou seja, Facebook e WhatsApp. Ele segue Elon Musk que, nos Estados Unidos já faz o mesmo com sua rede social, a X, antigo Twitter. Ambos, estão apenas seguindo Donald Trump que há tempos vem dizendo que não vai admitir o que ele chama de “censura nas redes sociais”.

A mudança da postura de Zuckerberg é puramente oportunista e busca a simpatia de Trump, pois em 2018 quando houve uma suspeita de movimentação irregular nas redes sociais às vésperas da eleição para Presidente da República em nosso país, ele próprio colocou a direção do WhatsApp à disposição do STF para que se investigasse o que poderia estar ocorrendo para explicar os milhões de mensagens de ódio contra um dos candidatos.

Nós, brasileiros, também não podemos esquecer que os atentados contra as instituições de nosso país no dia 8 de janeiro de 2023 só aconteceram porque foram insuflados através das redes sociais. E estas agora vêm nos dizer que não deve haver nenhum controle sobre o que publicam! O ministro Alexandre de Moraes diz e reitera que os atentados não teriam ocorrido sem o apoio e suporte dado pelas redes sociais.

Em suma, tempos difíceis se afiguram. Nas questões ambientais, será lamentável a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, mas nós, no Brasil, estamos fazendo a lição de casa combatendo o desmatamento e usando cada vez mais fontes renováveis para gerar nossa energia. Nas questões econômicas temos aliados importantes como a China e parceiros comerciais em todos os continentes.

Nas questões do fluxo livre de informações, somos um exemplo de um país que pelo menos já tem uma boa proposta de regulamentação das redes para impedir disseminação de notícias falsas e discursos de ódio sendo discutida no Congresso, além de que poderemos contar com o apoio e a aliança da Comunidade Europeia. Ou seja, os tempos serão difíceis, mas temos instrumentos e meios para enfrentá-los.

Os invasores não entrarão em nossa casa


Os invasores não entrarão em nossa casa,
Eles não mexerão em nossas roupas velhas,
Eles não quebrarão o porta-retratos da minha mãe,
Eles não rasgarão nosso Alcorão, nossa Bíblia,
Nem derramarão nosso óleo sobre nossa farinha.
Não, os invasores não entrarão em nossa casa.

Naquela noite, vi meu avô,
Suas mãos acariciando gentilmente a terra
Ao redor de uma pequena oliveira.
Ele prometeu que seu óleo iluminaria o céu da Palestina
Por mil anos.
“Os invasores entraram em nossa casa?”
Ele perguntou.
Eu disse: Não.

Mas naquela manhã, os invasores chegaram —
Um vento frio e cortante.
Suas peles traziam as marcas de tribos distantes,
Suas línguas falavam palavras que eu não conseguia entender.
Eu me movi para frente, apenas um ou dois passos,
E gritei para eles:
"Vocês não entrarão em nossa casa."

Mas eles não se viraram.
Seus olhos, como sombras,
Suas palavras, como ventos inquietos.
Eles passaram por mim,
Mas minha voz permaneceu,
Gritando nas paredes,
Gritando na terra:
Os invasores não entrarão em nossa casa.

Quando os invasores partiram,
A casa estava envolta em fumaça.
O túmulo do meu avô profanado,
Suas pedras sagradas profanadas com palavras estrangeiras.
O corpo da minha mãe estava despedaçado,
Fragmentado em mil pedaços.
Minhas memórias, e todos aqueles que as fizeram,
Pereceram.

Mas a oliveira permaneceu.
Ela cresceu mais forte,
Suas raízes alcançando mais fundo na terra.
Seu óleo iluminou o céu—
Por mil anos.
Ramzy Baroud

O que Jair Bolsonaro e Alice Weidel têm em comum?

Talvez acalme algumas cidadãs e cidadãos mais exaltados eu lembrar que Elon Musk não está se imiscuindo apenas na política do Brasil. Ele não bate de frente só com o juiz Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes ou com o presidente Lula, mas também com políticos britânicos e alemães.

Durante 75 minutos, ele conversou online e ao vivo com Alice Weidel, candidata da Alternativa para a Alemanha (AfD) à chefia do governo alemão. Antes, Musk afirmara repetidamente que esse partido, o mais à direita no espectro político nacional, era o único capaz de salvar o país.

A Alemanha escolherá em 23 de fevereiro seu novo governo, e a AfD ocupa o segundo lugar nas intenções de voto, com 22%. O fato de o americano, dono da plataforma X, estar fazendo propaganda eleitoral de graça para a sigla talvez seja uma infração das leis alemãs. No momento, o caso está sendo examinado.

Mas a conversa foi bem decepcionante. Musk não tem a menor ideia da política alemã, e Weidel mal conseguia controlar os risinhos, tamanha a alegria pelo golpe de publicidade que estava dando. De qualquer modo, a questão não eram conteúdos, mas sim provocar, e mostrar que a AfD é parte de uma rede mundial composta tanto por políticos muito de direita como de multibilionários com marcas globais.
 
No núcleo mais central do "clube" organizado por Musk está não só o presidente americano eleito, Donald Trump, como Javier Milei, o mandatário da Argentina, que não se encaixa em nenhuma categoria.

Quem também gostaria de integrar o clubinho é o clã Bolsonaro, que vem tentando desesperadamente provar que Jair Messias foi convidado de fato para a posse de Trump (e por isso quer que Moraes lhe devolva o passaporte).

Ou seja, são indivíduos que afirmam: A) pertencer à ala anti-establishment e B) ser tratados de modo desleal pela imprensa ou pela Justiça. E, no caso, a alegação de Trump ou Musk de serem anti-establishment soa tão bizarra quanto a de Bolsonaro sobre eleições presidenciais manipuladas.

O ex-presidente brasileiro e seu clã venceram tantas disputas eleitorais nos últimos 35 anos que atualmente a família e seu círculo de amizades se tornaram políticos de carreira e pesam no bolso dos contribuintes. Menos anti-establishment, impossível.

Também Weidel apresenta estranhas contradições: os alemães são "escravos" dos Estados Unidos, afirmava ela apenas dois dias antes da videochamada com Musk – o qual, afinal, também é cidadão americano. Além disso, teria provocado "dor física" na ultradireitista ver quão injustamente a mídia e a política da Alemanha trataram Trump, o amigo de Musk. Mais autoescravização voluntária em relação a americanos como Musk e Trump, não é possível.

Alice Weidel e os Bolsonaros vão, sem dúvida, se entender bem nesse clube. Ambos acreditam, por exemplo, que Adolf Hitler era, na verdade, de esquerda, até mesmo comunista.

Tempos estranhos, estes, e desconfio que as mídias sociais sejam também culpadas por eles estarem cada vez mais estranhos. Quem berra alto e se declara vítima ganha simpatias e eleições. Isso vale tanto para a esquerda como para a direita, por todo lado os ânimos estão exaltados, no momento.

Aqui na minha casa decidimos desconectar as redes sociais imediatamente. Vai fazer bem para a nossa saúde mental. E, de qualquer modo, dinheiro para um Tesla, a gente não tem mesmo.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Precisamos formar novas frentes para isolar o fascismo

Impressiona a naturalidade com que as sociedades das grandes economias do mundo recebem o que pode ser o fim das democracias gestadas nas revoluções Francesa e Americana. A postura fracassada do “apaziguamento” do Acordo de Munique, como filosofia diplomática na década de 1930, desarmou os espíritos para a resistência ao nazismo, tornando os povos dóceis ao pragmatismo e à traição. A docilidade leniente custou milhões de mortos no Holocausto, nos campos de batalha do mundo inteiro, nas cidades incendiadas da União Soviética e de toda a Europa.

Umberto Eco, em 1998, viu a emergência de um novo projeto fascista, presente nas fragmentações da pós-modernidade, que poderia transferir para os Estados dos países ricos o monopólio político das redes, para a construção de um novo mundo. Este não seria mais uma comunidade de vizinhanças contraditórias, mas uma totalidade — esta sim — do globalismo perfeito. Por meio dela, o modo de vida, a cultura e a política seriam uniformizados pela mentira, construções falsas da “verdade” perfeita e inquestionável.


A articulação do Estado americano com Mark Zuckerberg e Elon Musk — depois das ameaças diretas à soberania do Canadá, Groenlândia, Panamá e México — é a formação de uma Internacional Protofascista que — na recusa da modernidade e no culto da “ação pela ação” — é acompanhada de uma concepção de mundo em que a vida não é uma luta por viver, mas pelo autoaniquilamento humano.

Esse novo Estado “globalista” visa a reorganizar o pacto imperial-colonial num outro nível: com a posse dos territórios por meio do controle político da opinião, com o uso apenas subsidiário da força militar externa. Um sistema apoiado no servilismo manipulado, que se torna voluntário, dos mais explorados, dos aniquilados pela miséria, dos infelizes e sociopatas, bem como de todos os que não foram integrados à vida comum da “normalidade” capitalista. Do ventre das crises do capitalismo nasce o fascismo, não o socialismo da reforma ou da revolução.

Estaremos num momento “decisivo” para o futuro da Humanidade? Desde a adolescência ouvimos essas sentenças. Por isso, nos acostumamos a recusá-las. Pode ser dito, todavia, que, se não for um momento decisivo, é o momento final de um ciclo, no qual o próprio termo “decisivo” perde o seu sentido. Um novo período, no qual a História fará de nós o que ainda não sabemos, mas que será bem pior do que o ciclo do moderno que ora se encerra. A rebeldia do espírito humano poderá vencer?

Dois exemplos a serem recordados para enfrentar essa ameaça. Primeira rebeldia: a de George Steiner, quando lembra o livro de Primo Levi, em que ele destaca o valor necessário “para desejar sobreviver a Auschwitz”, por meio da recordação da escuta do Canto de Ulisses, na “Divina Comédia” de Dante. Segunda: lembrando Aleksander Wat, pensando que poderia suportar o seu recolhimento pelo stalinismo à prisão de Lubianka, quando numa manhã, no princípio da primavera, ouviu à distância um fragmento da “Paixão segundo São Mateus”, de Bach. Duas rebeldias da consciência contra situações aparentemente sem saída.

No outro lado da História, o sentido do humano na modernidade não difere do que John Reed viu na Revolução Russa, para situar-se nos seus acontecimentos épicos:

— De um lado, um punhado de operários e soldados de armas na mão, representando a insurreição vitoriosa, serenos, mas com um aspecto miserável. Do outro lado, uma multidão furiosa, formada pela mesma espécie de indivíduos, que se aglomeravam ao meio-dia nas esquinas da Quinta Avenida, de Nova York, rindo, injuriando, vociferando: “Traidores! Provocadores!”.

O potencial da Revolução iniciava também os movimentos para devorar seus filhos.

As duas placas tectônicas dos últimos três séculos — Iluminismo e Revolução Russa — são agora substituídas por outros cataclismos. As ideias de luta contra os fascismos, bloqueadas pelos algoritmos da dominação, que geram enxames informais do irracionalismo edificado de fora da vida social, por emoções fugazes aceleradas pelo ódio. Vencer significa construir um povo universal, consciente dos perigos da transição climática, das desigualdades sociais e das guerras surdas ou estrondosas a que os países mais ricos submetem o gênero humano. Internamente, isso significa formar novas frentes políticas para isolar o fascismo e os apóstolos de qualquer ditadura civil ou militar.

O que virá com Donald Trump

Os professores estrangeiros contratados por Harvard receberam carta da administração sugerindo que, se tivessem passado os feriados de fim do ano no exterior, tratassem de voltar antes de 20 de janeiro. A influente universidade, considerada a melhor do mundo, teme as medidas anti-imigração prometidas por Donald Trump que, nessa data, assumirá a Casa Branca.

Nos Estados Unidos — e não só ali —, os especialistas especulam como será o segundo mandato que as urnas entregaram ao republicano. Em especial, o que se pergunta é se ele terá musculatura política suficiente para levar a cabo suas extremadas promessas de campanha depois de uma acachapante vitória eleitoral que lhe deu de uma só tacada a Presidência e o controle das duas Casas Legislativas.

Some-se a isso uma Suprema Corte de maioria reacionária para justificar os prognósticos de que muitos dos freios e contrapesos institucionais à concentração de poder no governo federal —típicos da democracia legada pelos pais fundadores— bastem para limitar os impulsos autocráticos desse vocacionado manda-chuva.

A questão não interessa apenas aos yankees, nem se limita à profundidade das mudanças previsíveis nas instituições domésticas e nas políticas públicas, com a passagem do governo federal dos democratas para os republicanos convertidos ao radicalismo de direita.

O cientista político europeu Ivan Krastev entrevistado no podcast "The Good Fight" (A Boa Briga) por Yascha Mounk, seu colega igualmente respeitado, argumentou que a volta ao governo do populista de extrema direita marca um ponto de virada e o início de um novo ciclo político: a Era Trump. Trata-se de mutação nas políticas domésticas e na atuação internacional de Washington, tão profunda e notável como as que caracterizaram a Era Roosevelt ou a Era Reagan, e cujas marcas se prolongaram muito além dos mandatos do democrata (1933-1945) e do republicano (1981-1989).

No plano externo, para além das bravatas e da retórica intimidatória do futuro presidente — ao ver de muitos, bizarra estratégia a fim de extrair benefícios de aliados ou adversários —, cabe perguntar quais poderão ser os efeitos de uma postura mais agressiva e isolacionista e menos comprometida com soluções multilaterais, para a chamada ordem internacional liberal. Esta diz respeito aos arranjos formais e informais que surgiram ao final da Segunda Guerra, organizando as relações entre Estados do ponto de vista dos fluxos econômicos e da segurança, e de acordo com princípios que privilegiavam a negociação em vez da força bruta.

Seus pilares, como se sabe, foram as instituições de Bretton Woods —FMI; Banco Mundial; GATT, que mais tarde daria origem à OMC (Organização Mundial do Comércio); e a constelação de organizações e regimes que formaram o sistema ONU. Com o tempo, outros organismos a ele se juntaram.


Esse conjunto de regras, nem sempre equilibrado, nem consistentemente liberal, é produto do Ocidente democrático e teve nos Estados Unidos um fiador — embora às vezes reticente ou oportunista transgressor de suas normas. Difícil, porém, imaginar seu futuro se, na Era Trump, a América se dedicar a sabotá-lo.

Ordem à desordem...

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.


O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente” — ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para por ordem à desordem.
Machado de Assis, "Relíquias da Casa Velha"

O poder pelo poder

Que cansaço. Em 2025, Donald Trump, às vésperas do segundo mandato, lembra o Jair Bolsonaro de 2019, que, por sua vez, era a versão jeca do Trump de 2017. Mesmas mentiras, mesmas ameaças, mesmas frases para espantar, mesmas bazófias para otários. Uma coisa é a campanha que engabela os pascácios, outra é transportá-la para a administração. Talvez seja esta a estratégia: enquanto os factoides são discutidos com indignação, as medidas realmente importantes de seu projeto político vão sendo tomadas sem serem percebidas.


Para garantir o ingresso na Casa Branca pela primeira vez, Trump prometeu deportar 11 milhões de imigrantes, construir um muro gigante entre os EUA e o México (pago pelos mexicanos), barrar a entrada de muçulmanos, acabar com "essa bobagem" de aquecimento global, investir no tratamento de saúde mental para evitar assassinatos em massa, reprimir os movimentos negros ("causa de problemas") e declarar aos 35 anos o limite de "vida útil" para as mulheres —depois disso, deviam "sair de cena".

Desta vez, ameaça (de novo) "deportar em massa imigrantes ilegais" (o que ele sabe que não é possível), terminar o muro (do qual só construiu uma fração), taxar os produtos estrangeiros, leia-se chineses, sem excluir os brasileiros, e "perfurar, perfurar, perfurar", inclusive o Ártico, embora este já passe por um estado crítico de degelo. Tudo de novo, daí o cansaço. As novidades são o perdão para os 1.500 criminosos que invadiram o Capitólio no 6/1/2021 e a anexação do Canadá aos EUA e a tomada pela força da Groenlândia e do Canal do Panamá. Grande parte disso é conversa fiada, jogo de cena.

É possível que seus auxiliares, todos com interesse pessoal em questões essenciais, cumpram suas ameaças e passem a boiada. Mas certo mesmo é que, além de seu controle já assegurado da Suprema Corte, Trump irá tentar se reforçar na costura jurídica de instituições que lhe possibilitem eternizar-se no poder.

O poder pelo poder sem saber muito bem o que fazer com ele não é uma fantasia. É um desvio frequente na política. E não é um privilégio da extrema direita.

Brasil poderia melhorar a destinação do seu lixo

Um quilo de lixo por dia. Isso é o que cada brasileiro em média descarta de itens variados como alimentos, plástico, papelão, vidro, metais, roupas e calçados e equipamentos eletrônicos.

É muito lixo. Em 2023, seria o suficiente para encher dois mil estádios do Maracanã, segundo cálculo da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).

Naquele ano, o Brasil gerou no total 81 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU). E apenas parte disso é coletada e vai parar no destino adequado.

Segundo um relatório da Abrema, o país coletou naquele ano 75,6 milhões de toneladas de RSU, das quais 69,3 milhões foram encaminhadas para disposição final, ou seja, 86% do total de lixo produzido.

Do montante encaminhado para disposição final, apenas 58,5% acabaram em aterros sanitários legalizados – um número considerado baixo por especialistas. Os outros 41,5% foram parar em lixões, aterros irregulares, terrenos baldios, ruas, valas, córregos e rios, segundo o levantamento.


A taxa de reciclagem é baixa. Do total de RSU produzido, 8,3%, ou 6,7 milhões de toneladas de material reciclável como papel, plástico, alumínio e vidros, foram enviadas pela coleta pública ou por catadores para o reaproveitamento.
Disparidades regionais

A região Sudeste é a campeã na geração de resíduos, com 452 kg por habitante ao ano, o que equivale a 1,237 kg por habitante por dia. A região é responsável por gerar 39,9 milhões de toneladas anuais, ou metade do total nacional.Na outra ponta, está a região Sul, com 284 kg anuais por habitante, ou 0,779 kg diários. Os dados estão no Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, da Abrema.

Quando o assunto é coleta, as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste estão acima da média nacional, com 97,2%, 98,8% e 95,2% dos resíduos coletados, respectivamente. Já as regiões Norte e Nordeste coletaram aproximadamente 83% do lixo produzido, sendo o restante descartado a céu aberto, como em lixões, terrenos baldios e áreas públicas.

"Se compararmos a situação do Brasil com a da União Europeia ou dos Estados Unidos, por exemplo, a geração de RSU é moderada. O problema não é só consumir demais ou de menos, mas sim a responsabilidade com a qual lidamos com aquilo que é consumido, ou seja, a destinação que damos a esses resíduos", pontua Karin Brüning, cientista e ambientalista que atua no ramo de educação ambiental.

Atualmente o Brasil é o quarto maior produtor de lixo plástico do mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China e Índia.

Um dos lixões irregulares que acabam servindo de depósito a céu aberto é o do município de Envira, no estado do Amazonas, próximo da divisa com o Acre. O lixão existe há 10 anos e ameaça a terra indígena Cacau do Tarauacá, onde moram 320 indígenas do povo Kulina.

"A presença de lixões irregulares e a baixa taxa de reciclagem são pontos que precisamos melhorar através de campanhas com a população e incentivo público para os municípios investirem na coleta seletiva e na manutenção de aterros sanitários legalizados", diz Pedro Maranhão, presidente da Abrema.

Especialistas apontam que uma união de esforços da população e do governo poderiam solucionar o problema. Mas para isso é necessário que se priorize políticas de redução, reutilização e reciclagem para enfrentar o problema da geração de resíduos sólidos urbanos.

"Um ponto importante é incentivar a coleta seletiva. Criar ecopontos, carros de coleta seletiva e medidas educacionais para a população. Todo esse subsídio de informação, de oferecer facilidades para a separação e direcionamento correto do lixo, faz com que se abram caminhos logísticos para que a sociedade possa direcionar o seu lixo e automaticamente aumentar a reciclagem", diz o biólogo Bruno Reis, especialista em licenciamento ambiental.

Já os resíduos orgânicos, que compõem quase a metade dos resíduos sólidos urbanos, podem ser reciclados por meio da compostagem ou biodigestão, o que poderia produzir biometano ou biogás e reduzir significativamente as emissões de gases de efeito estufa.

Atualmente, menos de 0,2% desses materiais são transformados em gás natural através da decomposição dos resíduos orgânicos depositados nos aterros sanitários brasileiros. Esse gás passa por uma purificação e então dá origem ao biometano.

Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), apontam que o Brasil tem seis plantas de produção de biometano localizadas em aterros sanitários, número considerado baixo pelos especialistas ouvidos pela reportagem. Essas plantas ficam três em São Paulo, duas no Rio de Janeiro e uma em Fortaleza.

"Precisamos pensar em outras fontes de combustíveis que não sejam o fóssil, uma alternativa viável é justamente investir na produção de biometano a partir dos resíduos sólidos orgânicos. A sua extração é mais econômica e contribui para a descarbonização", acrescenta Maranhão.

Ainda segundo Maranhão, com o melhor aproveitamento da estrutura já existente, incluindo a operação de outras sete plantas que estão em processo de autorização, o Brasil teria capacidade para suprir cerca de 5% da atual demanda nacional por gás natural.

Hoje essa demanda é estimada em 58,4 milhões de Nm³/dia pelo Ministério de Minas e Energia (MME). Esse mercado é formado por diferentes setores econômicos, como industrial, automotivo, residencial, comercial, geração elétrica, por exemplo.

"Para isso, todas as cidades com mais de 320 mil habitantes precisam destinar seus resíduos para aterros sanitários com planta de biometano. Mas para chegarmos a esse patamar é necessário maior investimento na logística desse material", diz.

A produção de biometano funciona assim: após coletado, os resíduos sólidos são encaminhados para a triagem onde os materiais recicláveis como vidro e plástico são separados dos materiais orgânicos.

A parte orgânica então vai para o aterro onde é encapsulada. Os resíduos são enterrados e começam a se decompor, liberando o biogás. Uma tubulação capta esse gás e o encaminha para filtros. Parte do biogás vai para a produção de energia elétrica e outra parte é purificada e transformada em biometano.

Para a outra parte dos resíduos, aquela que é reciclável, investir em cooperativas, formalizar e remunerar os serviços prestados pelos catadores é essencial para estimular a reciclagem. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que os catadores são responsáveis por coletar quase 90% de todos os materiais recicláveis no Brasil.

"Reciclar faz com que eu traga de volta esses materiais à cadeia produtiva, reduzindo a necessidade de extração de muitos desses produtos da natureza, como o papel por exemplo. Também reduz a necessidade de criação de novos aterros. Lembrando que está cada vez mais difícil encontrar espaços para isso", explica Carlos Alberto Moraes, membro do Comitê Gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil.

Fora esses aspectos, a conscientização da população sobre consumo consciente e destinação adequada de resíduos deve ser intensificada desde a infância, seja por aulas na escola ou através de campanhas que estimulem o reaproveitamento.

"Por exemplo, as pessoas podem dar preferência para materiais ou objetos que podem ser utilizados várias vezes, como usar ecobags ao invés de sacolinha de plástico. Ou então, preferir o uso de copos que não sejam descartáveis e assim reduzir ao máximo o descarte e aumentar o reaproveitamento de materiais. Mas essa mudança de hábitos é algo que deve ser condicionado desde a infância", acrescenta Brüning.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei nº 12.305/2010, estabelece diretrizes para o manejo adequado de resíduos sólidos no Brasil e promove a responsabilidade compartilhada entre governos, empresas e população.

A PNRS prevê ações como a destinação correta dos mais diversos tipos de materiais, coleta seletiva, reciclagem e compostagem de resíduos orgânicos. Além disso, ela prioriza a não geração de lixo e a redução de desperdícios, com o objetivo de reduzir os impactos ambientais, proteger os recursos naturais e fomentar uma economia sustentável.

Apesar de mais de uma década desde sua criação, muitos dos objetivos da PNRS ainda não foram alcançados, como a erradicação de lixões, que deveriam ter sido encerrados até agosto de 2024. A estimativa da Abrema aponta que ainda existem três mil lixões no país.

As maiores dificuldades dos municípios para extinção dos lixões e implantação de aterros sanitários estão relacionadas a carências dos municípios, principalmente de quadros técnicos especializados na área de meio ambiente, para desenvolver projetos e acompanhar a implementação das políticas ambientais, bem como a ausência de taxas e tarifas para custear as despesas de implantação, operação e manutenção dos serviços de coleta e destinação de resíduos.

"É imprescindível que ocorra o fortalecimento institucional dos municípios para gerir os sistemas de resíduos sólidos, como a instituição de taxa de resíduos sólidos e a elaboração de planos de resíduos, bem como o agrupamento de municípios em consórcios para ganho de escala e rateio de custos de infraestrutura e gestão (aterros sanitários, caminhões de coleta, equipe técnica, unidades de tratamento, entre outros)", disse o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, em nota enviada à DW. E acrescentou que vem oferecendo apoio aos municípios por meio de programas de apoio e incentivo à reciclagem.

"O governo federal tem apoiado municípios e consórcios públicos em projetos para desvio de resíduos dos lixões por meio da reciclagem, criando as condições adequadas para que se promova a erradicação com a inclusão socioprodutiva dos catadores de materiais recicláveis", acrescenta a nota.

Paralelamente a isso, em dezembro, o plenário do Senado aprovou um projeto de lei que proíbe a importação de resíduos sólidos, como papel, plástico, vidro e metal pelo Brasil. A proposta altera a PNRS e aguarda sanção presidencial. Entre 2012 e 2021, a importação de resíduos sólidos pelo país mais que dobrou, saltando de 4,12 mil toneladas para 8,62 mil toneladas, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Emendas dominam a política com mais de R$ 80 mi por dia

Em 1º de fevereiro o comando do Congresso será trocado e muito provavelmente Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) vão assumir as cadeiras de presidente da Câmara e do Senado, respectivamente.

Toda renovação pressupõe alguma esperança de mudança, mas sempre há exceções.

Motta deve ser o mais jovem presidente da Câmara da história —ele tem 35 anos—, mas já está em seu quarto mandato na Câmara e chega ao cargo pelas mãos de Arthur Lira (PP-AL), o atual ocupante do posto. Alcolumbre volta ao cargo que ocupou de 2019 a 2021 e após emplacar em seu lugar o hoje presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).


Retomando ao segundo parágrafo desse texto, então, nada indica sinais de renovação. Isso apesar de haver um modelo que exigira uma ampla rediscussão de seu formato e volume. As conhecidas emendas parlamentares.

Reportagem de Mateus Vargas mostrou que de 2020 a 2024 os 594 deputados federais e senadores destinaram 150 bilhões de verbas federais para obras e investimentos em seus redutos eleitorais. Isso representa uma média de mais de R$ 80 milhões por dia, todos os dias. Úteis, sábados, domingos, dias santos, feriados.

Os valores se quadruplicaram em relação a igual período anterior, o que transformou a maior parte dos parlamentares em vereadores de luxo cujos mandatos são consumidos em sua quase totalidade na gerência da bolada com ministérios, prefeituras e lobistas.

As emendas assumiram nos últimos anos o protagonismo do dia a dia do Congresso.

É impressionante que o modelo tenha atingido essa magnitude, consumindo cerca de 20% das despesas discricionárias do governo federal. Mais impressionante é a transparência ausente ou precária, além das incontáveis suspeitas de corrupção.

Motta e Alcolumbre não dão qualquer sinal de mudança e mesmo que tivessem tal disposição, seria improvável obterem algum apoio no "chão de fábrica".

Fevereiro, que poderia trazer ventos de mudança, tende a trazer os mesmos ventos de sempre —dessa vez, a renovada ameaça de retaliação ao governo, que na visão do mundo legislativo, está por trás das decisões trava-emendas do ministro do STF Flávio Dino

Abrindo as janelas de um novo tempo

Volto, depois de alguns dias de descanso, com muitas dúvidas e um pouco de esperança. Hora de grande reflexão: tenho cumprido o meu dever neste 2025 que ainda não mostrou a cara? Como viverá o planeta com um Donald Trump se fazendo de imperador, ameaçando anexar o Canadá, tornando-o o 52º Estado americano e, mais, querendo comprar a Groenlândia? Quem vai dirigir o país da maior democracia ocidental, a partir de 20 de janeiro próximo, é um bilionário que ameaça o planeta com ideias estapafúrdias. A Europa vai suportar isso? China e Rússia, o que farão para impedir essa ambição? As guerras entre Ucrânia e Rússia terão um fim? Israel continuará a reagir contra seus inimigos no Oriente Médio? A faixa de Gaza continuará a ser alvo de bombardeios? E os países da América Latina seguirão na curva da direita ou da esquerda?

As interrogações ganham volume. Tempos de turbulência, novos ciclos de medo e de paisagens mortuárias nos aguardam. A par das tensões que viveremos nesse segundo tempo do governo Lula III, quando o jogo da economia, apitado pelo árbitro Fernando Haddad, será disputado entre os times da gastança e da poupança. A vereda por onde devemos passar é estreita, daí o esforço para não sermos engolidos pela batalha que se travará na arena econômica. Os grupos internacionais já estão pulando fora do nosso chão, temerosos de verem seus volumosos investimentos escorregarem nas mãos inábeis dos nossos financistas.


Querem um conselho? Vamos a ele: não gastem mais do que devem poupar. Saibam administrar quando e como abrir o cofre. Sob a lembrança de que Sua Excelência, Luiz Inácio, prometeu, quando se assentou na cadeira central do Planalto pela terceira vez, realizar o melhor governo de toda a história republicana. Olhe o tempo, senhor presidente. A partida está no 52º minuto.

Mãos à obra. Ao lado da prudência na escolha de novos integrantes do seu Ministério, urge, presidente Lula da Silva, adotar a virtude da moderação, tão importante nesses tempos agressivos que estamos presenciando. Sabe-se que o senhor desconfia muito dos conselhos que chegam aos seus ouvidos. Mas abandone, paulatinamente, o tom palanqueiro e evite usar imagens que tendem a causar polêmica, como esta dos homens brasileiros que preferem amantes às esposas. Claro, sua intenção não foi a de enaltecer o adultério, mas a índole nacional levou o caso para o foro da fofoca. Não exagere, não rompa os limites de sua autoridade, desfrute livremente de sua linguagem, mas contente-se com o estritamente necessário, sem arroubos e extravagâncias que acabam roubando o estoque de bom senso. A intemperança, dizia Montaigne, é “a peste da volúpia”.

Evite, ainda, cair na sela da pavonice, muito comum nos tempos de desfiles canhestros para chamar a atenção de espectadores e ouvintes. Os idos de Luís XIV, que desfilava em Versailles em seu cavalo branco adornado de diamantes, já se foram. O Brasil de 2003 até que propiciava momentos de Estado-Espetáculo, onde o ator principal podia desfilar vaidades e virtudes. O senhor, afinal de contas, subiu ao cume da montanha, trilhando um tortuoso caminho, que começou na base da pirâmide. E os brasileiros ansiavam vê-lo como se comportaria no comando do transatlântico nacional.

Seu estilo de governar, de falar e se comportar foi bem observado pela plebe e pelas elites. Até 2011. Oito anos e oito dias. O Brasil de hoje é outro, mesmo continuando com as amarras do passado. Dessas observações, sai mais uma sugestão. Tenha cuidado com a imagem plástica que o “novo comunicador” do Lula III, Sidônio Palmeira, tentará construir. Publicizar em demasia um ente público, seja um indivíduo, seja uma organização, é construir um castelo na areia.

Atente, também, para o valor da humildade, que ganhou de André Comte-Sponville, filósofo francês, a definição: “a humildade é a virtude do homem que sabe não ser Deus”.

Tempos de dureza, de polarização intensa e continuada entre seus exércitos e os de seu opositor, um capitão que nunca foi bem-visto nas Forças Armadas, tempos de ódio, com a arena cheia de opostos se matando. É hora de criar um contraponto à desdita. Procure viver de modo mais leve, suave, evitando rompantes, atitudes tresloucadas, viagens longas. Cuide de sua saúde.

E não menospreze o vozeirão do imperador global, que já fez uma ameaça, mesmo leve, ao Brasil. O senhor Donald quer o trono do planeta. Seja justo. E o leme do Itamarati deve seguir os ajustes sob a égide do pragmatismo.

“Ainda estamos aqui”, disse o senhor, em sua fala por ocasião do evento que lembrou dois anos da barbárie que assolou os Três Poderes, em Brasília. Temos que comemorar com orgulho a espetacular performance de nossa atriz Fernanda Torres, no magistral filme de Walter Salles sobre a vida do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva. Esse filme é um pilar de conscientização para bloquear a tirania.

Viva!

Em suma, presidente Luiz Inácio Lula da Silva, busque se guiar pela deusa de olhos tapados, Têmis, aquela que o senhor avista de sua sala no terceiro andar do Palácio do Planalto, e que é desenhada com uma balança e dois pratos em equilíbrio, que apontam para o estado da ordem e da igualdade. Ao seu lado, o senhor tem uma conselheira. E parceira. A primeira-dama, Janja, é, pelo que se intui, uma luz que ilumina seus passos.

Não se deixe envolver pelas doses de ódio que continuam a emergir nas ondas de intensa polarização política. Nietzsche anunciava: “o que fazemos por amor se consuma além do bem e do mal”.

O Grande Ruído


Nada há de mais ruidoso - e que mais vivamente se saracoteie com um brilho de lantejoulas - do que a política.
Eça de Queirós

Eles continuam aqui

No evento para lembrar o 8 de janeiro, o presidente Lula disse "nós, democratas, ainda estamos aqui", mas depois de 40 anos de democracia, eles, os golpistas, também estão aqui: tanto militares que ameaçam de fora, quanto civis que enfraquecem a democracia por dentro. Apesar de nada ter a ver com os crimes do passado, a atual geração de militares ainda tem sintonia com aqueles que sequestraram Rubens Paiva. Mais ameaçador que isso, a maioria dos parlamentares não parece ter sintonia com os líderes que lutaram contra a ditadura desejando construir um futuro democrático para o país, os parlamentares de hoje apodrecem a democracia.


Ao assistir a Fernanda Torres recebendo o prêmio de melhor atriz do ano no Golden Globe, vi Eunice e milhares de outras mulheres que passaram pelo que ela sofreu: maridos, filhos, irmãos e amigos desaparecidos. Lembrei de Dilma Rousseff e Miriam Leitão e de centenas de mulheres que sofreram elas próprias prisão e tortura. Vi milhares de homens e mulheres que sofreram durante a brutalidade ditatorial. Lembrei também dos milhões que não perderam a vida, nem foram presos, mas atravessaram 21 anos da história sem participação democrática, sem ver o país caminhar na direção do desenvolvimento rico, justo, sustentável, distribuído, livre. Mas também lembrei que já temos duas vezes mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura e ainda não enfrentamos as questões fundamentais para a construção do Brasil que queremos e nosso potencial permite.

Não enfrentamos a questão militar: nossos soldados ainda aprendem que nada daquilo ocorreu, ou o que ocorreu teria sido necessário para salvar o país e que é sua obrigação patriótica, se necessário, recusar resultados das urnas de eleitores equivocados ao escolherem líderes políticos incompatíveis ou corruptos. Foi esse aprendizado que fez com que, por pouco, não tivéssemos tido em 2023 outro golpe, repetindo 1964. Mas a questão militar não é a única nem a mais forte ameaça à democracia: nossos políticos civis e partidos não estão sendo instrumento de consolidação da democracia.

Imaginei o que Rubens Paiva e todos os outros milhares de lutadores que deram a vida pensariam se assistissem como funciona hoje o democrático Congresso Nacional, sem tutela militar, mas usando dezenas de bilhões de reais do dinheiro público para atender a volúpia por voto ou mesmo por aumento da fortuna pessoal. O que pensariam ao ter dado a vida por uma democracia que, no lugar de eliminar, ampliou privilégios, mordomias, vantagens; aumentou a extensão, o tamanho e a tolerância com a corrupção, ao ponto de a honestidade passar a ser motivo de galhofa.

Foi importante acabar com a censura que impedia escrever e publicar livremente, mas, depois de quase meio século, a democracia não eliminou a mais absoluta forma de censura que pesa sobre os 10 milhões de brasileiros adultos analfabetos, incapazes até de reconhecer a própria bandeira; aumentamos o número de universitários, mas pouco fizemos para universalizar a educação de base, não construímos um sistema nacional de educação de base com a qualidade e equidade necessárias ao progresso econômico e à justiça social. Foi fundamental abrir as cadeias, mas, para justificar a democracia, é preciso também derrubar os muros dos condomínios. A partir de 1990, reduzimos a penúria com transferências de renda mínima e com o SUS, mas até hoje não definimos uma estratégia para quebrar a obscena concentração de renda e abolir a vergonha do quadro de pobreza. Em 1994, conseguimos construir uma moeda estável, mas até hoje não conseguimos equilibrar nossas contas públicas devido ao corporativismo, ao imediatismo, à demagogia, à irresponsabilidade e à falta de espírito patriótico.

Fernanda Torres e Walter Salles nos despertam para o que sofremos simbolizado no Rubens, o quanto lutamos simbolizado na Eunice e o quanto ainda estamos devendo a eles e a todos os outros que lutaram pela democracia. Eles nos fazem gritar que "ainda estamos aqui", mas não estamos dizendo "para que estamos aqui": porque, para consolidar a democracia política, é preciso consolidar a democracia social. Fernanda nos deslumbra e orgulha, mas também nos alerta e provoca. O presidente Lula deveria convidar os comandantes e cadetes das Forças Armadas para assistirem ao filme Ainda estou aqui no cinema do Palácio do Planalto para superarmos os traumas do passado, mas também convidar aos parlamentares para assistirem a filmes que mostram o Brasil que estamos construindo: sugiro Grande Sertão, de Guel Arraes.

Brasil precisa finalmente punir militares golpistas

"Não é maravilhoso que os jovens estejam finalmente descobrindo o que aconteceu na ditadura militar?": uma amiga me mandou essa mensagem comemorando o fato de que, nas redes e nas conversas, os jovens (e boa parte da sociedade brasileira) estão revoltados com os crimes praticados na ditadura militar, período horroroso da história que se seguiu ao golpe de 1964.

Isso acontece por causa do sucesso do filme "Ainda estou aqui", que conta a história da família do engenheiro e deputado federal Rubens Paiva, morto na tortura e "desaparecido" em 1971. O filme, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do engenheiro, e dirigido por Walter Salles, colocou o Brasil cara a cara com a ditadura. Que coisa boa ver todo mundo lembrando do passado e muitos jovens curiosos sobre essa "página infeliz da nossa história".

É extremamente necessário que estejamos olhando para a ditadura e conversando sobre isso. Em quase todas as entrevistas, Marcelo e seus familiares, assim como o elenco do filme, repetem: "É preciso lembrar para que não se repita".

É verdade. E isso nunca foi tão óbvio. O país não rememorou o suficiente, jamais puniu os militares e banalizou a ditadura. E por isso quase sofreu um golpe militar de novo. O plano golpista foi revelado semana passada pela Polícia Federal e mostra que um grupo que incluiria o ex-presidente Jair Bolsonaro teria planejado dar um golpe de Estado no Brasil em dezembro de 2022. Além de tomar o poder por meio da força e dos tanques, segundo o relatório da PF, eles pretendiam assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.

A Polícia Federal indiciou Bolsonaro e mais 36 pessoas por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito e formação de organização criminosa. Dos 37 indiciados, 25 são militares. Entre eles estão Augusto Heleno, general da reserva, que foi capitão na ditadura militar e ministro de Segurança Institucional do governo Bolsonaro, e Walter Braga Netto, também general da reserva e ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro. A mesma operação prendeu preventivamente cinco pessoas. Quatro delas eram militares.

Ou seja, no ano em que todos falam sobre ditadura, soubemos que escapamos por pouco de outro golpe militar ao estilo do de 1964.

Como chegamos a isso? Em parte, porque por muito tempo, os horrores da ditadura foram deixados embaixo do tapete e muitos absurdos foram banalizados. Os militares golpistas e os torturadores de Rubens Paiva (e de muitos outros brasileiros) foram anistiados em 1979 e até hoje seus familiares desfrutam de generosas pensões. Segundo levantamento do portal UOL, só os torturadores de Rubens Paiva ganham cerca de R$ 1,8 milhão por ano de pensão.

Além de não haver punição, os horrores foram totalmente banalizados.

Entre os bolsonaristas mais radicais, virou quase moda usar uma camiseta com o rosto e o nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da ditadura e ex-chefe do DOI-Codi, uma casa dos horrores. Em 2016, na noite do impeachment de Dilma Rousseff (a ex-presidente foi barbaramente torturada na ditadura), Jair Bolsonaro, então deputado federal, dedicou seu voto a "Carlos Alberto Ustra, o terror de Dilma Rousseff". Sim, ele glorificou um torturador e fez piada com a tortura de Dilma em pleno microfone, com transmissão em rede nacional. De novo. E nada aconteceu. Ficou por isso mesmo. Deu no que deu. O fã de torturador queria, segundo a PF, dar um golpe junto com os militares.

E agora? A única alternativa decente para que o país não se torne definitivamente um antro golpista é que todos os envolvidos nos planos antidemocráticos e terroristas paguem criminalmente pelos seus crimes, independentemente de patente, de cargo político que já ocuparam ou do número de seguidores que têm nas redes sociais.

Se isso não acontecer, ficaremos presos para sempre nesse ciclo do horror, onde os governos têm medo de punir os militares e "desagradar as tropas". Como disse Marcelo Rubens Paiva em entrevista para a DW, "nós sempre vivemos nessa espécie de chantagem dos militares contra nós, os civis, que deveriam ser quem manda naqueles que têm armas."

É verdade. Há anos e anos o país vive com medo dos militares e pisando em ovos para que eles "não se chateiem". O Brasil precisa, finalmente, quebrar esse ciclo abusivo. Chega de varrer os crimes dos militares para debaixo do tapete. É preciso lembrar e punir para que o horror não se repita para sempre.
Nina Lemos 

Vamos discutir o Brasil

“Tinha razão aquele velho brasileiro que, escandalizado com a futilidade dos nossos debates políticos, lembrava a conveniência de, ao lado do Congresso Nacional, organizar-se uma comissão permanente de brasileiros de boa vontade, sem outra preocupação que a prosperidade e a grandeza da Pátria, para o fim de estudar e resolver os grandes problemas políticos de nossa terra. O Congresso ficaria para as parolagens inúteis, para os bate-bocas apaixonados, para as exibições teatrais (...).” Nada mais atual do que o comentário publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 23 de novembro de 1935.



Nos dias que correm, a divisão e a polarização da sociedade brasileira dificultam e influenciam a discussão e o debate sobre os múltiplos aspectos das questões nacionais. O foco de debate reproduzido pela mídia tradicional e pela mídia social reflete aspectos importantes da economia, da política, das questões sociais, das questões identitárias, as reformas estruturais, a relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário, as questões ambientais e de mudança de clima, a violência e a corrupção. São raramente analisados os impactos relacionados com o cenário global (guerras, nacionalismo, protecionismo, geoeconomia e uso da força, inovação, inteligência artificial, entre outras) sobre a economia e a política nacionais.


Discute-se tudo, mas pouco ou quase nada sobre o Brasil. É quase inexistente hoje o pensamento sobre o Brasil como país, e não como palco de disputas ideológicas e partidárias. A ausência de lideranças no governo, no Legislativo, no Judiciário, na classe política, nos setores industriais e agrícolas contribui para a discussão fatiada, sem a preocupação mais geral de pensar o Brasil em primeiro lugar, em um mundo em grandes transformações, e sem reconhecer as mudanças ocorridas nas últimas décadas no País e no seu entorno geográfico (América Latina e do Sul), relevantes para uma análise objetiva. Está mudando a economia global, a ordem internacional, a geopolítica, o meio ambiente e a mudança de clima, a inovação tecnológica se acelerou e a inteligência artificial criou desafios na área civil e militar, a geoeconomia e a segurança nacional são as forças do momento. Qual o impacto dessas transformações sobre o Brasil? Quais as decisões estratégicas, internas e externas, que terão de ser adotadas para o Brasil responder a esses desafios?

Como tentar reduzir as vulnerabilidades e aproveitar as oportunidades que se oferecem na nova ordem econômica e mundial? Como enfrentar as novas e as tradicionais ameaças à soberania, ao desenvolvimento e à segurança do País?

A radicalização da política interna, na minha visão, torna difícil, neste momento, a discussão sobre um projeto para o Brasil. Na impossibilidade de se chegar a um acordo em torno de um projeto nacional por diferenças ideológicas e político-partidárias, torna-se necessário preencher essa grave lacuna do ponto de vista estratégico. Não existe nenhum documento oficial (e poucos de origem na academia) que pensem o Brasil no contexto global e que tenha sido discutido com a sociedade civil.

Chegou a hora de começar a discutir o Brasil e tentar colocar os interesses nacionais permanentes acima de visões setoriais, como fazem todos os principais países do mundo, com uma visão de médio e longo prazo. O documento Uma Estratégia para o Brasil – O Lugar do Brasil no Mundo, preparado pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), procura contribuir para um debate que está atrasado, mas que se faz necessário (interessenacional.com.br). Não se trata de um documento elaborado a partir das políticas do governo de turno nem com viés ideológico ou partidário. Necessariamente genérico, sempre com uma visão estratégica e não conjuntural, o trabalho trata dos objetivos nacionais, do lugar do Brasil no mundo, sinaliza as prioridades e vulnerabilidades de uma potência de médio porte emergente que tem um peso no cenário internacional como oitava economia global, com um território continental e mais de 210 milhões de habitantes. O documento vai além da Estratégia Nacional de Defesa e da Política Nacional de Defesa, produzidos pelo Ministério da Defesa, que refletem posições nacionais, mas de um ponto de vista setorial.

Durante o ano de 2025, serão promovidos encontros virtuais e presencias para discutir o trabalho e suscitar o debate sobre uma estratégia para o Brasil, do ponto de vista interno e externo, com uma visão de médio e longo prazo. Com isso, se pretende começar a focalizar o Brasil em primeiro lugar, em um novo mundo, em complemento ao debate interno conjuntural de todos os problemas políticos, econômicos e sociais nacionais.

O Irice, com o apoio do Portal Interesse Nacional, organizará uma série de encontros para sensibilizar a sociedade civil para esse debate. Serão buscadas parcerias com as Comissões de Relações Exteriores e de Defesa, da Câmara e do Senado, com os partidos políticos, com instituições civis e militares, públicas ou privadas, empresariais e acadêmicas, além de formadores de opinião na mídia social que possam se interessar.

Vamos discutir o Brasil acima de interesses ideológicos e partidários.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

'Nós morremos, para que eles possam viver'

Quantas horas você consegue sobreviver sob os escombros da sua própria casa? Duas, três ou até seis horas?

Aqui em Gaza, somos forçados a suportar uma maratona de ficarmos presos sob os escombros.

Lara, Yara e Naama suportaram períodos de tempo inimagináveis: seis, oito e dezesseis horas, respectivamente.

Merecemos ter o peso de nossas próprias casas nos esmagando, nos sufocando enquanto lutamos para sobreviver?

Essas horas são realmente nossas ou ainda estamos presos sob os escombros de nossas próprias vidas?

Em Gaza, quando uma casa é bombardeada, a defesa civil e os civis correm para salvar os sobreviventes.

No entanto, até mesmo a defesa civil foi alvo da ocupação israelense. Como isso foi permitido pelo direito internacional?

Aqueles que ainda estão vivos sob os escombros também não estão morrendo?

Nós nos sacrificamos mil vezes para que outros possam viver. Mas mesmo quando são resgatados, algo dentro deles morreu.


A família Zaqout no campo de Nuseirat foi alvo, e a família inteira ficou presa sob os escombros. Lara, que tem seis anos, e Yara, que tem dezesseis, sobreviveram milagrosamente depois de mais de oito horas sob os escombros.

Yara relembra: “Lara costumava dormir ao meu lado antes do bombardeio. Costumávamos dormir em paz até que o míssil chegou, o que foi como um pesadelo da minha vida.”

Acordei e encontrei o teto da nossa casa sobre meu peito, e tudo o que havia para respirar era ar cheio de poeira.

Tantas perguntas correram na minha cabeça — eu morri? Onde estou? Onde está minha família? Minha mãe, meu pai e Lara?

Gritei, mas não saiu nenhum som, desmaiei e acordei com o corpo todo coberto de sangue e lágrimas.

As vozes da defesa civil, vizinhos e parentes gritavam: “Há sobreviventes?” Como posso responder?

Tentei muito, mas nenhum som saiu. Tentei tocar Lara, mas não a encontrei ao meu lado. No entanto, ouvi-a gemer.

Vozes de fora começaram a sumir e desaparecer.

O som de alguém lá fora dizendo: "Há uma mão se movendo sob o teto", me dá esperança; esta é Lara.

Todos trabalharam incansavelmente para resgatar Lara e, ao verem minha mão, tentaram me puxar para fora, mas sem sucesso.

Eles não conseguiram quebrar o teto porque eu estava embaixo dele. Eles tentaram por horas, e depois de oito horas de pesadelo, eu saí.

Oito horas se rendendo à morte diversas vezes.

Oito horas vivendo um pesadelo que eu queria poder apagar da memória dela.

Sim, fui resgatado e gostaria de não ter sido!

Qual foi o custo?

“Saí com deficiências e uma pélvis quebrada, meu corpo encharcado de sangue e seus ossos quebrados visíveis sob a carne”, disse Yara.

Esse incidente aconteceu meses atrás, mas Yara ainda revive o pesadelo toda vez que fecha os olhos.

Rita, uma mãe de 27 anos, estava morando no Egito, mas veio a Gaza para visitar sua família e seus três filhos apenas dois meses antes da guerra começar.

Eles estavam todos dormindo no meio da casa.

Sua irmã Farah insistiu que eles não dormissem naquele dia e prometeu Nescafé. Eles estavam relembrando suas memórias de infância.

De repente, a casa foi envolta em um brilho alaranjado de um foguete, e suas vozes foram silenciadas quando o prédio de cinco andares desmoronou em um único andar.

“Achei que estava morta e desisti”, diz Rita.

Mas aqueles dedos inocentes e pequenos de seu filho Ryan a tocaram e a trouxeram de volta à vida. “Mãe, acorde, mãe, acorde.”

“Meus irmãos não acordaram”, Ryan grita e pede ajuda.

Os irmãos de Rayan não sobreviveram, mas a voz e o toque inocentes de Ryan lhe deram forças para continuar lutando.

“Não se preocupe, minha pequena, eu estou viva.”

A Defesa Civil conseguiu resgatar Ryan, Rita e sua irmã, Farah, mas o resto da família morreu.

A espera mais longa de nossas vidas foi esperar para sermos resgatados dos escombros, torcendo para sermos encontrados antes que o oxigênio acabasse ou que sucumbissemos aos ferimentos.

Muitos morreram enquanto esperavam por ajuda porque a ocupação israelense tem como alvo a defesa civil e as ambulâncias.

Sem equipamentos adequados, a defesa civil enfrenta um desafio intransponível.
Donya Abu Sitta

Trump e a volta do 'imperialismo ianque'

Por definição, o imperialismo ocorre quando uma nação promove uma expansão territorial, econômica e/ou cultural sobre outra nação pela força. A colonização da África, da Ásia e da Oceania, que se iniciou na segunda metade do século XIX, representou o auge do imperialismo. Em termos atuais, pode ser empregada no caso da invasão da Ucrânia pela Rússia, por exemplo. Segundo o historiador Eric Hobsbawm, essa forma de neocolonialismo representou a ocupação de 25% das terras do planeta.

O revolucionário russo Vladimir Lênin, que liderou a Revolução de 1917 e fundou a antiga União Soviética, porém, associava o imperialismo ao estágio monopolista do capitalismo. “Essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais e, por outro, a partilha do mundo é a transição de uma política colonial que se estendeu sem obstáculos às regiões não apropriadas por nenhuma potência capitalista para uma política colonial de posse monopolista dos territórios da Terra, já inteiramente repartida.”

Com o fim da antiga União Soviética, que havia se transformado de uma força anticolonialista, sobretudo na Ásia e na África, numa potência imperialista na Europa Oriental, essa visão perdeu relevância. Com o fim do colonialismo, a integração das diversas regiões do globo por meio do desenvolvimento dos transportes e das comunicações ultrapassou os modelos nacional-desenvolvimentistas que nela se baseavam, sobretudo a partir de a China adotar o capitalismo de estado e emergir como nova potência econômica mundial.


A globalização “liquefez” a sociedade industrial e elevou a modernização a um novo patamar, com impacto direto no modo de vida de todas as pessoas. Forçou os governos a adotarem políticas de integração à economia mundial para não apenas arcar com as suas consequências mais danosas. No Brasil, a globalização intensificou-se a partir da segunda metade do século XX, com a maior inserção do país no mercado econômico global, sobretudo a partir do governo Collor de Mello, em 1990. A tentativa de retomar um projeto nacional-desenvolvimentista, durante o governo da presidente Dilma Rousseff, resultou no colapso econômico que a levou ao impeachment, em 2016.

Entretanto, a integração das cadeias produtivas globais e o multilateralismo, que pareciam pautar a globalização, sobretudo a partir da formação da União Europeia, passaram a ser fortemente questionados pelos Estados Unidos, a partir da emergência da China como segunda economia mundial. Quem controlará o comércio global, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico? Esse tipo de disputa entre o Reino Unido e a Alemanha, uma potência marítima e outra continental, foi uma das causas de duas guerras mundiais no século passado.

O velho “imperialismo yankee” parece estar de volta. No seu primeiro mandato, o presidente Donald Trump deu um cavalo de pau na política externa norte-americana em relação á China e ao multilateralismo, estratégia que foi mantida pelo democrata Joe Biden, que deu sequência à reorganização das suas cadeias de produção.

Agora, às vésperas de tomar posse, Trump choca o mundo com uma visão geopolítica expansionista que vai muito além da “guerra comercial” com a China. Seu America First promove políticas que prioriza a soberania dos EUA e a redução de sua dependência em termos de comércio e manufatura. A OTAN, a ONU e a OMS são estorvos econômicos e políticos. Tratados comerciais como antigos aliados, como a NAFTA, também.

A rivalidade com a China tende a desaguar numa nova corrida armamentista. Trump tudo fará para conter o crescimento da influência tecnológica e econômica chinesa, sobretudo na infraestrutura e nas comunicações. Em contrapartida, tende a se aproximar de líderes autocráticos como Vladimir Putin (Rússia), Kim Jong-un (Coreia do Norte) e Mohammed bin Salman (Arábia Saudita).

Antes mesmo de tomar posse, estressou as relações com a OTAN, com declarações sobre a anexação do Canadá e a compra da Groelândia, ao mesmo tempo em que pressiona os demais países a aumentarem seus gastos com defesa. Trump pretende apoiar a anexação dos territórios Palestinos por Benjamin Netanyahu e forçar uma aproximação de seus aliados árabes com Israel. Ao mesmo tempo, tende a largar de mão o Afeganistão e a Síria.

Sua política em relação à América Latina pode provocar nova crise humanitária, sobretudo no México, com o fechamento da fronteira e a expulsão em massa de imigrantes. As sanções econômicas e políticas contra os regimes da Venezuela, Nicaragua e Cuba serão ampliadas e a ameaça de retomada à força do Canal do Panamá se insere no contexto da disputa com a China pelo controle do comércio do Atlântico com o Pacífico.

A política energética de Trump é uma ameaça ambiental ao planeta, com a exploração doméstica de petróleo e gás por meio da fraturação hidráulica. Os EUA vão se retirar novamente do Acordo de Paris sobre o clima. Tudo isso está associado a um novo complexo tecnológico nas áreas de infraestrutura, comunicações, militar e espacial, num novo ciclo histórico, não apenas conjuntural.

Mudanças na Meta irão instaurar uma tirania da maioria


Imagine um hospital, reconhecido por tratar os casos mais complexos de doenças raras. Até ontem, as decisões sobre diagnósticos e tratamentos eram tomadas por uma equipe de especialistas — médicos, cientistas e profissionais dedicados a estudar cada caso com precisão. Porém, o CEO do hospital decide inovar e substituir a sua equipe técnica por um palanque, onde qualquer visitante pode opinar quais procedimentos adotar com os pacientes. Não importa o nível de conhecimento, experiência ou responsabilidade, cada opinião conta igualmente para definir o que será feito.


A mudança é apresentada como um marco da democracia e inclusão. Afinal, quem melhor para decidir do que “o povo” sobre o que é científico e o que não é? Porém, em menos de um plantão o caos se instala. Pacientes passam a ser tratados com métodos duvidosos e grupos organizados começam a influenciar decisões, combinando de subir no palanque para promover ideias milagrosas e descartar tratamentos comprovados. Os resultados? Diagnósticos errados, tratamentos inadequados e vidas em risco, tudo sob a justificativa de “mais espaço para o debate”.

Apesar de absurdo, é exatamente com a frase de “mais espaço para o debate” que a Meta, companhia de Mark Zuckerberg e controladora do Facebook, WhatsApp, Instagram e Threads, decidiu substituir as agências de checagens especializadas por um mecanismo de “Notas da Comunidade”, onde os próprios usuários decidem o que é verdadeiro ou falso, votando em uma enquete sobre a relevância e veracidade das informações. Agora pense naquele seu conhecido ou parente que discorda totalmente de você, você realmente acha que ela vai deixar a emoção e a polarização de lado para simplesmente dizer que a sua fala é verdadeira e a dele é falsa? E você? Conseguiria deixar a sua visão de mundo de lado para validar friamente a fala de um político que você discorda?

Quando milhões de pessoas, muitas sem qualquer preparo técnico, passam a decidir sobre temas complexos como ciência ou medicina, por exemplo, as decisões deixam de ser guiadas pela busca pela verdade e passam a refletir o que é mais popular ou conveniente. Pior ainda, grupos organizados podem manipular essas Notas para reforçar narrativas falsas, mobilizar um grupo de 10, 20, ou 30 pessoas para moldar a opinião pública ou deslegitimar informações confiáveis.

Em alguns casos, teorias da conspiração e desinformações prometem curas milagrosas, como no caso do uso do dióxido de cloro (ClO2), o qual propõe suposta “cura do autismo”, uma desinformação recorrente e nociva à sociedade e que já resultou em danos letais. Essa mesma mentira, por exemplo, poderia receber um selo de “verdadeira” a partir de uma Nota da Comunidade que contasse com votos suficientes de usuários bancados pelo lobby do dióxido de cloro, ou que fossem parte de um grupo de venda clandestina de produtos químicos no Telegram.

Se seria impensável confiar a vida de pacientes a decisões tomadas sem critério em um hospital, então por que aceitar que a integridade das informações que consumimos seja entregue a um sistema tão vulnerável de enquete pública? Essa mudança, apresentada como progresso, é, na verdade, um convite para uma tirania da maioria, onde o caos e a mentira ganham pelo volume.

Após a aquisição do atual X (antigo Twitter) por Elon Musk, a plataforma implementou, em maio de 2023, as Notas da Comunidade, permitindo que usuários adicionassem contextos a tweets potencialmente enganosos. No entanto, o sistema mostrou-se suscetível à captura por grupos com agendas específicas. Uma investigação revelou que as Notas da Comunidade foram manipuladas por grupos organizados, expondo usuários ao ódio e permitindo o uso político da ferramenta. A falta de transparência sobre quem são os usuários envolvidos no processo de avaliação e a ausência de critérios claros de admissão no programa contribuíram para essa vulnerabilidade.

A implementação das Notas da Comunidade também gerou controvérsia entre perfis públicos e meios de comunicação, os quais frequentemente tiveram suas publicações corrigidas erroneamente por usuários anônimos. Além disso, durante as eleições presidenciais nos Estados Unidos, diversas postagens contendo informações verificadas sobre procedimentos de votação foram alvo de Notas da Comunidade que propagavam teorias da conspiração sobre fraude eleitoral. Essas notas, baseadas em informações falsas ou enganosas, criaram confusão entre os eleitores e minaram a confiança no processo democrático.

E ainda, um estudo revelou que aproximadamente 96% de todas as notas de checagem de fatos contribuídas pela comunidade não foram exibidas ao público por não atenderem aos requisitos de consenso definidos pelo algoritmo, resultando em mais de 30.000 notas não exibidas. Em outras palavras, quem decide qual Nota vale é a própria plataforma, com base em critérios próprios. Um prato cheio para pautar a opinião de acordo com o que quiser. Tais notas omitidas são selecionadas pelo próprio algoritmo do X, o qual utiliza critérios opacos para decidir quais notas são relevantes ou adequadas para publicação. A falta de transparência sobre os parâmetros de elegibilidade das notas gera questionamentos sobre a imparcialidade do sistema e abre margem para potenciais vieses, já que os usuários não têm como verificar ou contestar a lógica por trás das decisões algorítmicas. Esse processo contraria a promessa de um sistema mais democrático e acessível, enfraquecendo a confiança dos próprios usuários na ferramenta.

Em outra frente, um levantamento do MediaWise descobriu que menos de 10% das notas criadas pelos usuários acabaram publicadas em postagens ofensivas. Os números são ainda menores para tópicos sensíveis como imigração e aborto, pois o algoritmo escolhe sem regras explícitas quando permitir ou não as Notas da Comunidade. Pesquisadores descobriram que, mesmo que as Notas da Comunidade viessem a ser democráticas em sua distribuição (o que não são), a maioria das postagens no X recebe a maior parte do tráfego nas primeiras horas, mas pode levar dias para que uma nota do Notas do Comunidade seja aprovada e visível para todos. Em outras palavras, sua resposta não vem a tempo de enfrentar desinformações nocivas às pessoas, especialmente envolvendo saúde pública e perseguições virtuais.

Não bastasse implementar as notas da comunidade, a Meta também anunciou que passará a permitir conteúdos antes proibidos por serem considerados discriminatórios ou potencialmente nocivos. A empresa justificou a decisão sob o argumento de que tais mudanças promovem “mais espaço para o debate” em questões culturais e políticas. Entre as alterações, está a permissão de postagens que classifiquem gays e trans como “doentes mentais”. Além disso, usuários agora poderão defender sem restrição da plataforma, por exemplo, que mulheres não são aptas para alguma profissão intelectual, só por serem mulheres, ou que pessoas trans não devem ser professoras, desde que baseiem essas opiniões em crenças religiosas. A Meta também ampliou o escopo para discussões sobre exclusões baseadas em gênero em contextos como banheiros, escolas e papeis no exército, alegando que essas questões fazem parte de debates sociais amplos.

Essa decisão não apenas contraria avanços históricos na proteção dos direitos humanos, mas também desafia marcos legais de países como o Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a homotransfobia ao crime de racismo. Ao ignorar essas legislações, a Meta demonstra desprezo pela dignidade das pessoas afetadas e pela soberania das nações em que opera. A justificativa de que tais discursos podem ser permitidos por se basearem em crenças religiosas apenas transforma dogmas em ferramentas de discriminação. Argumentos como esses, ao invés de enriquecer o debate público, promovem a segregação e reforçam estruturas de poder.

O impacto dessas mudanças transcende o plano digital, alcançando as vidas reais das pessoas que são alvo desses discursos. Permitir que gays, trans e mulheres sejam tratados como sub-humanos inferiores em discussões públicas normaliza práticas de discriminação em todos os níveis da sociedade. Por fim, o argumento de “liberdade de expressão”, frequentemente usado para justificar essas mudanças, revela-se falacioso. Seu uso para justificar ataques e desumanização de minorias viola os princípios de igualdade, dignidade e da própria liberdade de expressão daqueles que nada mais estão fazendo do que expressar a sua identidade. Sob a lógica de que todos os discursos devem ser permitidos, a Meta negligencia o fato de que certos conteúdos possuem o potencial de incitar violência e discriminação, perpetuando violências reais fora das redes.

Por fim, se já haviam banalizado o conceito de “liberdade de expressão” para distorcer a realidade e lucrar com mentiras, agora tentam banalizar até mesmo o conceito de “democracia” para instaurar uma tirania da maioria, reduzindo fatos e conhecimentos científicos a enquetes de um tribunal de anônimos na internet. Ao retirar as agências de checagem de fatos e o jornalismo comprometido dessa atuação especializada, fica no lugar um mecanismo muito menos democrático, em que usuários serão selecionados por um algoritmo oculto para reproduzir a opinião que a própria plataforma quiser dar destaque. Pode parecer The Black Mirror, mas só nos resta refletir: estaremos preparados para uma “IA-Cracia”, onde meia dúzia de big techs decide, com seus algoritmos enviesados, o que é verdade e o que não é?