sábado, 11 de janeiro de 2025

Donald Trump, um imperialista do século 19

Depois de fazer campanha com a política de acabar com as guerras, estabelecer a paz, colocar os EUA em primeiro lugar e isolar o país do mundo, Donald Trump decidiu esta semana ressuscitar o imperialismo do século 19. Em coletiva de imprensa, ele ponderou sobre a possibilidade de tornar o Canadá um Estado e tomar a Groenlândia e o Canal do Panamá, sem descartar o uso de força militar.

Os líderes republicanos, que Trump treinou apenas recentemente para denunciar a antiga política externa de expansionismo e internacionalismo de seu partido, rapidamente mudaram de opinião e adotaram a nova linha, e agora estão elogiando a visão grandiosa e o pensamento de Trump. Onde isso vai parar?

Alguns dizem que estamos de volta à “teoria do louco” da política externa, que postula que é bom para o presidente, às vezes, parecer imprevisível, até mesmo irracional, porque isso deixa os adversários desprevenidos. Vale a pena lembrar que Trump tentou essa jogada em seu primeiro mandato, mais obviamente com Kim Jong-un, da Coreia do Norte.

Ele começou ameaçando-o com uma guerra nuclear (“fogo e fúria como este mundo nunca viu antes”) e depois mudou abruptamente para um romance com cartas de amor. Nada disso funcionou. A Coreia do Norte continuou a construir seu arsenal nuclear, a realizar testes de mísseis (após uma breve pausa) e a ameaçar seu vizinho do sul.


O acadêmico Daniel W. Drezner observa que muitas pesquisas concluíram que o criador da teoria do louco, Richard Nixon, não produziu nenhum resultado positivo em seus esforços para se parecer louco e desequilibrado.

A conversa sobre transformar o Canadá em um Estado parece ser trollagem, direcionada ao primeiro-ministro do país, Justin Trudeau, de quem Trump não gosta. Mas isso forçou até mesmo os políticos trumpistas, como Doug Ford, o primeiro-ministro de Ontário, e o líder do Partido Conservador, Pierre Poilievre, a reagir com firmeza.

Durante a campanha de 2016, a retórica desagradável de Trump sobre o México ajudou o candidato mais antiamericano nas próximas eleições daquele país, Andrés Manuel López Obrador, a subir drasticamente nas pesquisas. Da mesma forma, Trump pode incentivar um maior antiamericanismo no Canadá desta vez.

O foco de Trump no Panamá e na Groenlândia tem algum fundamento. O Canal do Panamá é um dos grandes pontos de estrangulamento marítimo do mundo. Mas as autoridades panamenhas o administraram com responsabilidade e profissionalismo e de forma alguma trataram mal os EUA – como até mesmo o conselho editorial do Wall Street Journal reconheceu recentemente.

Também não há nenhuma evidência direta de influência militar chinesa no canal ou na zona do canal, como afirma Trump. A China está aumentando seus laços econômicos com a América Central e a América Latina, mas a maneira mais fácil de ajudar Pequim a expandi-los ainda mais seria Washington fazer um esforço desastrado para colonizar o lugar. Isso levaria a ataques nacionalistas contra os EUA no Panamá e reavivaria os temores do neoimperialismo americano em todo o continente.

A Groenlândia está se transformando em um lugar crucial, em grande parte devido às mudanças climáticas, que ironicamente Trump chamou de “farsa”. O derretimento das calotas polares abrirá novas rotas marítimas oceânicas entre a Europa e a América do Norte, e a Rússia e a China tentarão ativamente ganhar influência nessas novas vias marítimas.

É – e deve ser – política americana impedir os esforços de ambas as nações rivais para expandir sua presença econômica e militar na região. Mas os EUA não precisam adquirir a Groenlândia para fazer isso. O país já tem todo o acesso à ilha que deseja. Washington tinha uma série de bases durante a 2ª Guerra e a Guerra Fria. Uma delas permanece até hoje e é operada pelas Forças Espaciais.

De fato, a Dinamarca tem ajudado ativamente no novo interesse dos EUA na Groenlândia. Há alguns anos, a ilha (que é governada de forma semiautônoma) quase fez um acordo para aceitar o financiamento chinês para um conjunto de novos aeroportos. O Pentágono pediu à Dinamarca que convencesse os groenlandeses a cancelar o acordo. O governo dinamarquês foi bem-sucedido, substituindo grande parte do financiamento chinês pelo seu próprio.

Trabalhar com a Dinamarca tornou os esforços dos EUA mais eficazes. Da mesma forma, empresas americanas, incluindo uma financiada pelo fundo Breakthrough Energy Ventures, apoiado por Bill Gates e Jeff Bezos, dono do Washington Post, estudam se a Groenlândia poderia ser explorada para obter alguns de seus ricos suprimentos minerais. Isso não mudaria em nada caso a ilha fosse americana.

Os EUA têm sido influentes em todo o mundo porque conseguiram persuadir os outros a agir não apenas em seu interesse próprio, mas em nome de valores mais amplos, como paz, estabilidade, regras e normas que ajudam a todos. É por isso que o governo americano conseguiu fazer com que 87 países condenassem imediatamente a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. É por isso que muitos dos vizinhos da China se aliaram aos EUA.

Na coletiva de imprensa, Trump propôs se livrar da “linha artificialmente traçada” entre o Canadá e os EUA. É claro que isso é exatamente o que o presidente russo, Vladimir Putin, diz sobre a fronteira entre Rússia e Ucrânia. E aquilo que o presidente chinês, Xi Jinping, fala sobre a divisão entre China e Taiwan. Estamos entrando é um mundo que torna a Rússia e a China grandes de novo.

Fareed Zakaria

Como Odorico Paraguaçu: populistas têm criado realidades alternativas

Odorico Paraguaçu, o prefeito da fictícia Sucupira, sempre de paletó impecável e discurso inflamado, era obcecado por inaugurar um cemitério. A promessa gerava desconfiança, mas também muitos aplausos. O cemitério, contudo, nunca ficava pronto. Entre anúncios e cerimônias frustradas, Odorico mantinha o povo enredado em uma realidade distorcida.

Sucupira, a cidade fictícia de Dias Gomes em O Bem-Amado, é um presságio das dinâmicas que hoje emergem nas redes sociais e suas hipérboles. Anne Applebaum, na revista The Atlantic, ilustrou esse fenômeno com o caso de Calin Georgescu, um ambientalista romeno que trocou o ativismo por uma narrativa populista e conspiratória.



Com vídeos nadando em lagos gelados e invocando Deus, Georgescu alimenta o imaginário do povo romeno. Alegando que a Romênia estava sob controle de potências estrangeiras e elites secretas, galvanizou seguidores que se sentiam marginalizados, transformando-se em um símbolo de resistência contra uma opressão fabricada. Sua força, como a de Odorico, residia em oferecer uma visão alternativa da realidade.

O uso de promessas vazias e narrativas alternativas não apenas perpetuava a liderança de Odorico, mas criava uma realidade paralela que mantinha seu domínio político.

Nem precisamos nos perguntar qual seria o estrago de Odorico hoje, tendo acesso às redes sociais. Estamos sentindo o estrago na pele.

Líderes populistas criam realidades alternativas para deslegitimar elites intelectuais e se blindar da responsabilização política. Nessas realidades, as críticas da mídia ou do Judiciário não corroem sua popularidade. Ao contrário, servem como prova de autenticidade para seus seguidores. Essa inversão de lógica fortalece o líder, enquanto a propaganda amplifica crenças equivocadas, resultando em políticas públicas prejudiciais e corroendo a confiança nas instituições.

Em Sucupira, Odorico utilizava a promessa do cemitério como elemento central dessa mesma estratégia: críticas não o enfraqueciam, mas reforçavam seu domínio. A ficção de Sucupira e a realidade de Georgescu convergem para mostrar como líderes transformam o que deveria ser crítica em ferramenta de autenticidade, substituindo fatos por fantasia e fortalecendo suas posições em um cenário cada vez mais distorcido.

A recente decisão da Meta de interromper programas de checagem de fatos nos EUA mostra que aceitamos realidades fabricadas. Sem checagem de fatos, o realismo fantástico político continuará a florescer.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Você ouve nossos gritos?

À medida que o inverno se instala em Gaza, lembro-me de uma época em que a estação tinha um significado diferente. Naquela época, o inverno era uma época de reuniões familiares — noites longas e aconchegantes, bebendo "sahlab", nossa bebida quente favorita, e nos aconchegando em volta do aquecedor, enrolados em cobertores quentes. Passávamos a noite conversando, jogando UNO e outros jogos de cartas. O som da chuva enchia meu coração de alegria, e eu corria para fora com meus irmãos, correndo sob as gotas de chuva, sentindo o frescor em nossos rostos. O cheiro terroso de petrichor enchia o ar, nos lembrando do frescor da natureza depois da chuva. Aqueles eram momentos simples e queridos — o inverno parecia uma estação de calor, amor e união.

Agora, acordo com o som da chuva, meu coração pesado de tristeza. O inverno chegou completamente em Gaza. O frio já começou. Deitado na cama, vestido com roupas quentes, coberto com dois cobertores e cercado pelas paredes da minha casa, ainda sinto o frio se infiltrando. Meu coração dói enquanto me pergunto: como meu povo, vivendo em tendas, consegue sobreviver a esta estação amarga? Com ​​cada gota de chuva, meus pensamentos estão com eles — encharcados, seu único abrigo é um pedaço frágil de tecido. Muitas dessas tendas são armadas perto do mar de inverno rigoroso e implacável.


Em Gaza, este inverno não é apenas frio; é uma luta pela sobrevivência. As pessoas estão lutando contra o frio cortante, sem roupas adequadas ou aquecimento. Há poucos dias, meus primos — que perderam a casa e agora estão vivendo em uma tenda de refugiados — foram ao mercado em busca de roupas quentes, apenas para voltar de mãos vazias, chocados e desanimados com os preços exorbitantes. Quando um pijama fino e leve custa US$ 95, como alguém pode pagar por aquecimento?

O que pode parecer insignificante em outros lugares — pegar um resfriado ou ficar molhado — é uma ameaça à vida aqui, especialmente para crianças e idosos. Esses grupos vulneráveis ​​sofrem profundamente, sem acesso a tratamento ou medicamentos, pois os hospitais de Gaza mal funcionam. Já sobrecarregados, eles não conseguem oferecer cuidados nem para as doenças mais básicas.

A higiene também se torna quase impossível, aumentando o risco de doenças. Vivendo em tendas sem acesso a água morna, as pessoas não podem tomar banho ou se limpar adequadamente. Para as mães, lavar roupa se torna ainda mais extenuante no inverno, pois as quedas de energia em Gaza — que agora se estendem por mais de 400 dias — as impedem de usar máquinas de lavar. Em vez disso, elas lavam as roupas à mão com água gelada.

Apesar do sofrimento físico, é a dor psicológica que corta mais fundo — a visão de mães assistindo seus filhos chorarem de fome durante noites longas e frias, ansiando por comida que se tornou quase impossível de encontrar. Mesmo enquanto escrevo estas palavras, estou morrendo de fome, não tendo comido nada por muitas horas.

Os moradores de Gaza há muito tempo dependem dos serviços da UNRWA para alimentos e remédios, incluindo cupons de alimentos fornecidos pelo WFP, UNICEF e UNRWA. Mas a proibição imposta por Israel à UNRWA restringiu a entrada de ajuda em Gaza, exacerbando uma situação já terrível.

A fome está se enraizando, e parece um pesadelo sem fim. O preço da pouca comida disponível é inacreditável. Um único saco de farinha agora custa mais de US$ 300. Como alguém pode pagar por isso? Mesmo se pudéssemos, a farinha geralmente está infestada de insetos e gorgulhos, tornando-a inutilizável. As padarias que antes serviam como uma tábua de salvação agora estão fechadas, incapazes de obter suprimentos. O pão — o mais básico dos alimentos — se tornou um luxo que poucos podem pagar. A fome tomou conta de nossas vidas, deixando-nos em desespero, sabendo que amanhã provavelmente trará mais do mesmo, ou pior.

Sobrevivemos com uma refeição por dia, e mesmo isso parece uma bênção. Mas as longas noites de inverno tornam isso mais difícil, pois as pessoas dependem do “Takaya” — uma distribuição de alimentos beneficente — que fornece apenas pequenas porções, mal o suficiente para encher um estômago vazio. Esses Takaya geralmente começam às 11h, deixando as famílias sem nada para alimentar seus filhos pelo resto do dia. O frio nos morde, e a fome torna isso ainda mais difícil de suportar.

Olho para as crianças — pálidas, magras e exaustas de fome e frio. Vejo famílias esperando em filas intermináveis, segurando recipientes vazios, na esperança de encontrar comida. Imagino o quanto mais elas podem suportar, o quanto mais qualquer um de nós pode suportar. Essa realidade brutal é uma luta diária, com famílias buscando alternativas ou contando com ajuda insuficiente para alimentar seus filhos. A escassez de alimentos limpos e acessíveis não é apenas um desafio; é uma crise que ameaça a sobrevivência de uma população já vulnerável.

O inverno em Gaza não é mais uma época de calor e união. É uma estação de solidão e isolamento. A parte mais cruel desse sofrimento é o silêncio de um mundo que observa de longe, mas não faz nada. À medida que as noites frias se estendem, o isolamento também se estende. Os moradores de Gaza não estão apenas lutando contra a fome e o frio, mas contra a dor profunda de estarem isolados, tanto física quanto emocionalmente, do resto da humanidade. Nessa reclusão forçada, nos perguntamos: alguém realmente ouve nossos gritos?

Ritos de ano novo

No período colonial, o ano novo começava no dia 25 dezembro. Documentos oficiais, como as atas das câmaras municipais, mudavam a indicação numérica do ano no dia de Natal. Escrevia-se 24 de dezembro de 1580, por exemplo. E, na ata seguinte, 25 de dezembro de 1581.

Lentamente, concepções relacionadas com a passagem de ano enquanto marcação da passagem do tempo, enquanto tempo litúrgico e histórico, foram sendo corroídas, envelhecendo aos poucos.

Minha geração viveu e sofreu a angústia de mudanças rituais na marcação do tempo, que a colocaram em face da consciência de protagonista de um tempo sem volta, o tempo do fim e da finitude. A criança como personificação do avesso e do invisível, do novo contido no que é velho e morre.


Por isso, o dia de ano novo tinha um significado antropologicamente particular. Foi o que notei até 1947, para minha geração o último ano novo da tradição de que, com a molecada de meu bairro operário e de minha rua, vivi a função reveladora do novo que decorre do fim e último.

Na véspera do ano novo, as famílias se preparavam para o ritual que no dia seguinte, bem cedo, se processaria através das crianças. Aí pelas 7 horas da manhã, a criançada, já de café tomado, saía pela rua de sua casa, eventualmente por trechos iniciais de ruas vizinhas, batendo de portão em portão.

Quando o dono ou a dona da casa aparecia lá no fundo do corredor lateral, o que vinha da cozinha, fingindo surpresa e estranheza, a criança gritava “Feliz ano novo”, mal sabendo ela própria o que aquilo significava. A pessoa lá do fundo devolvia: “Feliz ano novo pra você também”.

Já com a mão no bolso da calça ou do avental, dirigia-se ao portão e dava para a criança uma moeda. Os mais pobres tiravam uma moeda de um tostão (dez centavos) ou de 200 réis, que ainda circulava, e a davam à criança.

A dádiva desapontadora podia ser de alguém que era reconhecidamente pobre. No caso dos que davam pouco porque sovinas, a notícia corria entre a criançada no minuto seguinte. O pão-duro ficava difamado. O azar decorrente viria com certeza. Era só esperar.

Muitos sovinas evitavam expor a sovinice porque o augúrio da criança tinha uma função ritual e mágica, nunca confessada, mas reconhecível nas formalidades que a cercavam.

As crianças eram socializadas na economia moral de definição do valor extraeconômico da economia, do dinheiro e das mercadorias. Uma moeda de 50 centavos era uma dádiva razoável. Já circulava a moeda pesada de 1 cruzeiro, com o mapa do Brasil de um lado e o número 1 bem grande do outro. Era moeda que deixava qualquer um feliz.

As crianças tinham sua própria “teoria econômica” para determinar o tamanho do seu reconhecimento ao doador generoso, que assim criava fama imorredoura, que passava de um ano para outro.

No dia de ano novo, até às 10 horas, com seus votos de porta em porta, na verdade as crianças cumpriam um rito de renovação do caráter comunitário das relações de vizinhança.

Com o tempo, compreendi esse aspecto daqueles procedimentos. No dia a dia meu irmão e eu atravessávamos a rua, abríamos o portão da casa dos avós e íamos diretamente para a cozinha ou para dentro da casa, pedíamos a bênção e lá ficávamos.

No dia de ano novo, não. Agíamos como estranhos à casa e à família. Meu avô, padrinho de meu irmão, dava-lhe uma nota de 10 cruzeiros, coisa que nem sabíamos o que era. Sendo nota de papel-moeda, era coisa de adulto, não de crianças.

Para elas, moeda era coisa para quem ainda não crescera. Aquele valor excepcional da nota desfazia para ele o rito de estranhamento e o integrava num relacionamento de proximidade parental com o avô-padrinho, seu pai putativo.

Para mim, no entanto, uma moeda era dádiva de recompensa simbólica pelos votos propiciatórios. A dádiva era retribuição do adulto à criança, uma troca. Mas negadora do que era próprio do dinheiro porque desigual na função renovadora das relações sociais e do seu caráter comunitário, aquilo que não se compra, apenas de troca.

Diferentemente do que ocorre no mundo da mercadoria e do dinheiro, em que a troca igualiza os desiguais e as desigualdades, a troca do voto pela dádiva no ano novo era rito que confirmava a desigualdade de quem dava e de quem recebia.

Nas diferentes culturas, crianças da primeira infância são o anômalo porque ainda não são membros da sociedade, à espera de quando se integraram no repetitivo das relações sociais.

Como observou Marcel Mauss, em clássico estudo sociológico sobre a magia, as crianças conservam os dons e poderes próprios dos socialmente não integrados. Elas não sabem, mas a sociedade lhes atribui a condição de porta-vozes das incógnitas do novo, do futuro e do diferente. O prenúncio.

Neurociência e Marketing: A urgência de uma ética aplicada

É indiscutível que, enquanto indivíduos, estamos inevitavelmente inseridos na condição de consumidores, sendo grande parte das nossas ações diárias intrinsecamente associadas a práticas de consumo. Essa realidade traduz-se numa constante exposição a um fluxo avassalador de estímulos publicitários, oriundos de múltiplos canais e disseminados numa velocidade vertiginosa.

Surge, assim, uma questão de profunda relevância: de que forma o nosso cérebro processa tamanha quantidade de informações? O que explica a retenção de apenas uma fração diminuta deste conteúdo? E, mais intrigante ainda, quais os fatores que nos levam a privilegiar uma marca em detrimento de outra?

O cérebro humano, inquestionavelmente, representa um dos campos mais desafiantes e insondáveis da ciência contemporânea. A sua complexidade intrínseca reflete-se na singularidade de cada mente, onde padrões de comportamento frequentemente desafiam os princípios da lógica e da racionalidade.


É deste encontro entre a neurociência e o marketing que emerge um novo e promissor domínio científico: o neuromarketing. Esta disciplina, situada na intersecção entre o conhecimento aprofundado do sistema nervoso e as estratégias comerciais, configura-se como uma ferramenta há muito aguardada por profissionais da comunicação e especialistas em comportamento do consumidor.

O cérebro humano, inquestionavelmente, representa um dos campos mais desafiantes e insondáveis da ciência contemporânea. A sua complexidade intrínseca reflete-se na singularidade de cada mente, onde padrões de comportamento frequentemente desafiam os princípios da lógica e da racionalidade

Enquanto campo multidisciplinar, a neurociência dedica-se ao estudo sistemático do sistema nervoso, integrando áreas como anatomia, biologia molecular, genética e psicologia. O progresso alcançado neste domínio tem sido notável e amplamente reconhecido. Simultaneamente, o conceito de neuromarketing, introduzido por Ale Smidts, procura compreender de forma rigorosa as influências neurológicas dos estímulos de marketing no comportamento do consumidor, permitindo uma otimização das estratégias comunicacionais e a conceção de campanhas mais eficazes e direcionadas.

Desde as primeiras explorações realizadas em 2002, o neuromarketing consolidou-se como uma abordagem central no estudo da relação entre estímulos publicitários e decisões de consumo. Contudo, como acontece com muitas áreas emergentes da ciência, este campo não está imune a controvérsias éticas. A utilização imprudente ou oportunista de tais ferramentas levanta sérias preocupações, uma vez que possuem o potencial para manipular o comportamento humano de forma pouco ética ou mesmo prejudicial.

A necessidade de estabelecer limites éticos é incontornável! É imperativo que este campo seja regulado com rigor, promovendo um debate abrangente sobre as implicações dos avanços nas ciências da mente e nas tecnologias associadas ao marketing.

Embora o conhecimento científico sobre o cérebro humano ainda se encontre numa fase incipiente, é crucial que a sua aplicação prática seja guiada por princípios éticos que assegurem o progresso social e a proteção da dignidade humana.

Com o contínuo avanço da neurociência e a expansão do seu âmbito de aplicação, mergirão inevitavelmente novas e complexas questões éticas. É plausível imaginar um futuro em que se obtenha um controlo sem precedentes sobre as preferências, emoções e comportamentos humanos. Tal cenário exige uma reflexão profunda sobre os limites aceitáveis para tais práticas.

O desafio ético que se apresenta é inescapável. É imprescindível que esta temática permaneça no centro de um diálogo interdisciplinar e que se definam fronteiras claras para garantir a liberdade de escolha do consumidor. Apesar das diferenças nos ritmos e objetivos de ciência e sociedade, o progresso sustentável só será alcançado quando ambas se complementarem de forma harmoniosa.
Maria Nascimento Cunha

Sem noção de sua importância ao votar

Na virada de 1999, vários órgãos nos EUA foram convidados a listar os americanos mais admirados, influentes ou importantes do século 20. Saíram centenas de nomes, famosos ou nem tanto, todos dignos de admiração. Mas houve unanimidades, pessoas sobre as quais não restava a menor dúvida, representantes do que de melhor o povo americano poderia produzir. Eis algumas.
O jurista Oliver Wendell Holmes (1841-1935), o advogado Clarence Darrow (1857-1938), o educador John Dewey (1859-1952), o arquiteto Frank Lloyd Wright (1867-1959), a conferencista Helen Keller (1880-1968), o presidente Franklin Roosevelt (1882-1945), o fundador do A.A., Bill W. (1895-71), o dançarino Fred Astaire (1899-1987), o inventor da vacina contra a pólio Jonas Salk (1914-95), o jazzista Louis Armstrong (1901-71), a antropóloga Margaret Mead (1901-78), o pediatra Benjamin Spock (1903-98), a atriz Bette Davis (1908-89), a ativista Rosa Parks (1913-2005), o compositor Stephen Sondheim (1930-2021), o boxeur Muhammad Ali (1942-2016). Sim, eu sei, faltou este ou aquele, favor completar.


São pessoas que nos acostumamos a amar e a identificar com os EUA, e nos fazem perguntar como um país que produziu gente dessa qualidade pode ser tão cruel em política externa, primitivo em relações raciais e dado a metralhar inocentes em escolas. Como se explica? A resposta é: talvez eles não sejam os EUA. Mas, se eles não são, quem será? Uma amiga que, em jovem, morou durante um ano com uma família do Idaho, num programa de intercâmbio, me forneceu a descrição.

Os EUA são exatamente esse homem do Idaho, 40 anos, branco, casado com mulher "do lar", quatro filhos, casa própria, três carros. Planta, compra ou vende batatas, que é o negócio da região. Sai para caçar no sábado e vai com a família à igreja aos domingos. Não lê nada, só vê esportes na TV e às vezes toma cerveja com os amigos. Admite negros ou latinos, mas só na sua lavoura. Nunca saiu do Idaho, exceto para os vizinhos Utah e Wyoming. Não tem a menor ideia de que seu voto para presidente pode afetar o equilíbrio do mundo.

Vota em Donald Trump

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Deserto loteado


Pelo preço de um carro usado, o governo israelense está atualmente distribuindo lotes de terra no deserto de Negev.

Kim Legzie

As ‘big techs’ e o fascismo

Agora ficou escancarado. Depois do pronunciamento que Mark Zuckerberg divulgou na terça-feira, anunciando que cerrará fileiras com Donald Trump para combater os projetos de regulação das plataformas, projetos que ele qualifica de “censórios”, não dá mais para disfarçar. Seguindo o exemplo de Elon Musk, dono do “X”, antes conhecido como Twitter, Zuckerberg subiu na carroceria do caminhão extremista do trumpismo, sem pejo, sem molejo e com sacolejo. A Meta saiu do seu armário de silício para entrar no fanatismo desvairado.

Eram favas contadas? Sim, eram. Mais cedo ou mais cedo ainda, a maquiagem escorreria. E escorreu. Está tudo na cara. Agora, ninguém mais pode alegar que a desinformação e os discursos de ódio propagados industrialmente pelo maquinário da Meta fossem acidentes de percurso. Não. Promover o trumpismo e todo o seu ideário – ou todo o seu bestiário – não foi um efeito colateral, mas a finalidade do conglomerado monopolista global comandado por Mark Zuckerberg. Detalhe: no seu vídeo, que foi manchete ontem em jornais do mundo inteiro, ele aparece de camiseta preta. Ato falho? Ou intencional?


A Meta, detentora do WhatsApp, do Facebook e do Instagram, tem um poder de fogo – a metáfora belicista vai de brinde – considerável, um pouquinho maior do que o deste jornal, por exemplo, ou de todos os diários brasileiros somados, ou mesmo de todos os diários do planeta. Estamos falando de companhias cujo valor de mercado se conta na casa dos trilhões de dólares. São as famigeradas big techs. Uma a uma, elas deixam cair a máscara de isenção, de objetividade e de compromisso com os fatos e mostram sua natureza essencial: são usinas de propaganda e manipulação a serviço do autoritarismo. Não têm e nunca tiveram nada a ver com educação ou conhecimento.

Falando em big techs, as coisas não estão melhores nos domínios da Amazon, de Jeff Bezos. No sábado, a ilustradora Ann Telnaes, ganhadora do Prêmio Pulitzer, anunciou sua demissão do The Washington Post, hoje controlado por Bezos. Ann Telnaes acusou o jornal de censurar um cartum em que ela criticou a subserviência dos bilionários a Donald Trump. Na charge, é possível reconhecer, entre os magnatas que se dobram ao novo presidente dos Estados Unidos, a fisionomia assustadiça do dono da Amazon. O Post vetou. Foi outro sinal tenebrosamente ruim de que os bilionários da maior democracia do mundo deixam para lá os compromissos com os fundamentos do liberalismo e se vergam à truculência.

Truculência é a palavra, embora gasta. Barbárie é a palavra, embora puída. Trump não tem nada a ver com o tal “sonho americano” ou com os chamados “pais fundadores” da federação que, mais de dois séculos atrás, deu origem ao Estado mais poderoso do nosso tempo. Trump é um fascista extemporâneo, tardio e piorado.

O adjetivo “fascista”, que antes os estudiosos procuravam evitar para não incorrer em anacronismos e imprecisões conceituais, acabou se impondo. É preciso dar nome às coisas. Recentemente, o grande historiador americano Robert Paxton, um dos que resistiam a empregar a palavra, reviu sua posição e admitiu: o que está acontecendo nos Estados Unidos precisa, sim, ser qualificado como fascismo, ainda que com as cautelas metodológicas de praxe. O que se passa por lá é mais, muito mais, que um soluço autoritário, e as big techs estão no cerne da inflexão. Mais do que correias de transmissão instrumentais, elas são o laboratório que sintetiza a mentalidade obscurantista, as pulsões violentas, os vetores do ódio, a intolerância, ou, sejamos precisos, o fascismo em suas roupagens pós-mussolínicas.

As ambições de expansionismo territorial em que Donald Trump tem insistido de forma escandalosa vêm confirmar essa caracterização. Lembram, de longe, ou nem tão de longe assim, a velhíssima categoria de “espaço vital”. A promessa de ocupar países vizinhos ou longínquos para ampliar o poder é marca registrada do bonapartismo do século 19, do nazismo do século 20 e, agora, do trumpismo do século 21. Desta vez, as big techs são a alma e a arma do negócio: estão para Donald Trump assim como o cinema e o rádio estiveram para Adolf Hitler. Com uma distinção, apenas: elas são mais determinantes hoje do que o cinema e o rádio foram naquela época.

A partir de agora, o debate sobre “moderação de conteúdo”, “agências de checagem”, “educação midiática” e “combate às fake news” ficará em segundo plano. Ficou patente que as big techs não querem mais falar disso. Com ninguém. Elas querem substituir a era da informação pela era da desinformação, pois sabem que sua única chance de seguir no gigantismo depende da vigência de ordens autoritárias, com viés totalitário. Assim como a imprensa só pode prosperar na democracia, as plataformas sociais só poderão crescer na tirania. É uma questão de vida ou morte. Para elas e para cada um de nós. O que elas precisam garantir para viver no luxo em que se arrancharam, sem prestar contas a ninguém que não seja Trump, é o que nós, cidadãos (ao menos até aqui), precisamos combater para não morrer.

Cinco minutos depois do ataque aéreo

Gaza
Em Pilsen,
na Estrada da Estação, número 26,
ela subiu ao terceiro andar
onde as escadas eram tudo que restava
da casa inteira.

Abriu a porta de par em par
e contemplou o céu,
de pé sobre a borda.

Pois foi naquele lugar
que o mundo acabou.

Depois
trancou tudo com muito cuidado
para que alguém não roubasse

Sírio
ou Aldebarã
da sua cozinha;
desceu para o térreo
e se acomodou
para esperar
que a casa se erguesse de novo
que o marido ressurgisse das cinzas
e que as mãos e os pés das crianças fossem de novo postos no lugar.

Foi achada de manhãzinha,
dura como pedra,
pardais bicando suas mãos.

Miroslav Holub

Dos golpistas à tentativa de golpe

Envelheceram mal as apostas de profetas da democracia risco-zero. Desde 2018, esse grupo de missionários tenta acalmar a cidadania brasileira sobre riscos à democracia, entendida como máquina de contagem de votos independente de qualquer outro atributo que dê a esses votos um lastro genuíno de autogoverno coletivo e liberdade pública.

Desde avaliação da personalidade de Bolsonaro, tarefa que a ciência política nunca autorizou politólogo a fazer em nome dela, ou da afirmação de que "democracia modera", conclusão a que a história política nunca permitiu chegar em nome dela, ou da sacada de que Moro seria um "dique" ao presidente, até a máxima da catatonia analítica "instituições estão funcionando", foram muitas tentativas de apaziguar o "alarmismo".

Sempre equivocadas, o tempo as transformou em caricatas. De golpistas na Presidência à tentativa de golpe e plano de assassinato, os alertas de risco não eram tão extravagantes e clarividentes assim.


A psicanálise foi mais realista e arguta. O psicanalista Luiz Meyer, na Folha de junho de 2020 ("Por que haverá golpe"), antecipava tentativa de golpe não como dúvida de cientista político mergulhado em planilha de dados, mas como determinação psíquica inexorável. Não tratava do golpe como hipótese, nem tinha a ambição sabichona de cálculo de riscos. Quis apenas explicar por que o ímpeto golpista não era brincadeira:

"Não estamos diante de um bufão histriônico que bate bumbo na praça de uma pequena cidade do interior. O número que encena é a expressão da criança intolerante, assombrada pela cadeirinha, que se apresenta como o redentor que vai borrar todos limites e limitações. Encurralado por uma mente que serve a criancinha com quem está identificado, que não aceita nem suporta modalidade alguma de ‘cinto’, ele precisa criar um mundo em que todas as cadeirinhas sejam destruídas".

O dia 8 de janeiro de 2023 serve como alerta simbólico sobre muitas coisas. Primeiro, a fragilidade constitutiva do regime democrático. Mesmo que se possa explicar por que algumas democracias são mais estáveis e longevas que outras, não temos ferramentas tão potentes para determinar riscos com precisão. Porque, em grande medida, são intangíveis.

Segundo, aprendemos outra vez as consequências de se tratar a delinquência militar brasileira pela via da covardia e da leniência. Terceiro, demonstra o poder de corrosão cívica da indústria de desinformação, elevado a patamar desconhecido por tecnologia capaz de individualizar perfis e customizar a manipulação. E tem gente que acha que uma rede gerida por algoritmo determinado por plutocrata equivale a praça pública. E que esse poder corporativo tecnológico agradaria a Adam Smith e Stuart Mill.

Quarto, a imensa confusão sobre o conceito de liberdade de expressão, transformada vulgarmente em arma pré-civil de ataque às precondições sociais da liberdade.

O 8 de janeiro simboliza, finalmente, que o STF tem responsabilidade e oportunidade de corrigir um dos erros constitucionais mais vergonhosos de sua história: o entendimento de que a Lei de Anistia o impede de julgar crimes contra a humanidade. Desde 2011, ação sobre o tema dormita na gaveta de Dias Toffoli (ADPF 153). Flávio Dino começou a enfrentar essa dívida: decidiu que desaparecimento de corpo é crime permanente.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


A memória e... o esquecimento

Como todas as coisas do universo, a memória sofre a degradação e a desintegração, o que para ela se chama esquecimento. Como qualquer coisa informacional, ela é submetida à doença que ataca a informação: o boato, que confunde, encobre e entorpece. A diminuição da memória é ininterrupta. A própria memória tende a tornar-se lacunar, incorreta, enganadora. Além disso sofre profundamente o efeito das forças de recalcamento, que expulsam a recordação incómoda, e das forças de transfiguração e mitologização, que legendarizam a recordação.

A perda de memória torna-nos imbecis. A imbecilidade contemporânea, isto é, própria deste tempo fixo no presente, que esquece o passado e receia o futuro é o nosso esquecimento do que caracterizou o último século.

Devemos lutar contra a desmemorização e contra a memória imobilizada. Devemos regenerar constantemente a memória . A regeneração da memória parte justamente das necessidades vivas do presente.
Edgar Morin, " As grandes questões do nosso Tempo"

Para Michael Walzer, liberal não define o que se é, mas como se é

Flanando pelas ruas de Edimburgo, leio nesta Folha o artigo de Deirdre McCloskey sobre os verdadeiros liberais.

Sorrio. Estou no lugar certo: foi aqui, na Escócia, em pleno século 18, que a palavra "liberal" surgiu pela primeira vez em inglês com conotação abertamente política.

Um pormenor, porém, merece ser realçado: "liberal" nasceu como adjetivo antes de se tornar substantivo. Como explica o economista Daniel Klein, que tem estudado essas arqueologias conceituais, foram iluministas escoceses, como Adam Smith, que definiram como liberal um sistema de governo que permite a cada um procurar os seus interesses e fins de vida, desde que respeitando a lei geral.

A palavra acabaria por evoluir até se cristalizar numa ideologia política —o liberalismo— e num substantivo —o liberal. E, como normalmente acontece com ideologias, surgiram escolas, subescolas, sub-subescolas, que se guerreiam e se excomungam.

Mas haverá alguma vantagem em retornar ao adjetivo? E, em caso afirmativo, será possível encontrar espíritos liberais nos lugares mais inusitados?


O filósofo Michael Walzer, em ensaio testamentário, se ocupa dessas questões todas citadas.

O título e o subtítulo resumem o espírito da sua obra: "The Struggle for a Decent Politics: On ‘Liberal’ as an Adjective" (ou em português, a luta por uma sociedade decente: sobre ‘liberal’ como adjetivo, Yale, 184 págs).

Eis a proposta de Walzer: hoje, a palavra liberal deveria ter uma dimensão essencialmente moral. Ser uma pessoa liberal significa, em traços gerais, ter uma mente aberta, ser generoso, ser capaz de aceitar a ambiguidade, condenar o fanatismo e não tolerar a crueldade.

Como escreve o filósofo, "liberal" não define o que se é, mas como se é. É uma forma de estar na vida, de agir em sociedade, de nos relacionarmos com os outros. Com liberalidade.

Isso significa que o número de liberais pode ser bem maior do que Deirdre McCloskey imagina. No seu artigo, McCloskey fala em progressistas, libertários —e liberais "suficientes", como ela.

Mas Walzer é mais generoso (mais liberal?) com a fauna humana. Conservadores liberais, nacionalistas liberais, democratas liberais, até socialistas liberais têm espaço nessa arca de Noé. "Liberal", quando aplicado a cada um desses nomes, é uma forma de evitar que as ideologias degenerem nas suas piores versões, mantendo ainda um respeito primordial pela liberdade e dignidade humanas.

Usando os exemplos de Walzer, um democrata liberal respeita a vontade da maioria. Mas também entende que as maiorias necessitam de limites constitucionais que muitas vezes frustram as pulsões da multidão.

Há quem discorde. Há quem prefira uma democracia "iliberal", como acontece na Hungria de Viktor Orbán. É um desejo arriscado: quando tudo depende da maioria, é melhor você ter a certeza de que nunca estará entre a minoria que participa.

E que dizer de socialistas liberais, esse supremo paradoxo?

Walzer não fala, obviamente, de ideologias totalitárias, como o comunismo. Fala da tradição social-democrata que aceita a "liberdade civil burguesa" como forma de atingir uma sociedade menos desigual.

Um socialista liberal não abandona o seu desejo de igualdade; mas entende que esse destino deve ser trilhado por via democrática, sem atropelo de direitos fundamentais e fazendo uma distinção entre desigualdades toleráveis e intoleráveis.

Ou, como escreve Walzer, é tudo uma questão de convertibilidade: há coisas que o dinheiro pode comprar e outras que não pode. É indiferente se os mais ricos compram artigos de luxo que estão inteiramente vedados à restante população.

Não é indiferente se apenas os mais ricos têm acesso a saúde, justiça ou influência política.

Por último, Walzer dedica algumas linhas aos "professores liberais", esse artigo cada vez mais raro nos departamentos de humanidades. Como reconhecer um?

Muito fácil: um professor liberal é aquele que, apesar das suas convicções mais firmes, não as impinge aos alunos como a última verdade revelada. Ou, então, é aquele que apresenta visões contrárias à dele com a honestidade intelectual possível.

Imagine um professor progressista que apresenta argumentos conservadores sem hostilidade ou caricatura. Ou vice-versa.

Eu não disse que este era um artigo para lá de raro?

Sim, os liberais podem ser divididos em vertentes clássicas, modernas, ordoliberais, libertárias, neoliberais, o diabo.

Mas a questão decisiva é saber primeiro se estamos na presença de liberais liberais.

O 51º estado!

O Canadá, para Trump, é o 51.º estado dos Estados Unidos. Ainda não é, mas tem de ser, diz o 47.º presidente americano. Trump também insiste que 10 milhões de canadianos adorariam ser integrados na União. Ninguém conhece esses números, mas não há mal nenhum em inventar.

A terceira afirmação do próximo presidente diz respeito à demissão do primeiro-ministro Justin Trudeau, após dez anos à frente do Governo em nome dos liberais, por perceber que irá perder as próximas eleições para os conservadores. Trudeau saiu porque o seu ciclo político estava esgotado, e nada disso tem a ver com a insistência do quase presidente.

A primeira grande indelicadeza de Trump foi atribuir o cargo de «Governador» ao primeiro-ministro, depois de se terem encontrado — e não foi apenas mais uma tolice para esquecer. Desde então, e à medida que o dia 20 se aproxima, o presidente eleito e confirmado não abandona a ideia de integrar o Canadá na União americana, sem esquecer a Gronelândia da Dinamarca, talvez o 52º estado.

É bizarro e infantil, mas os Estados Unidos construíram-se através de lutas contra os mexicanos para conquistar território — Texas, Colorado, Novo México e Califórnia — e com a compra do Alasca à Rússia. Trump quer alargar horizontes e, para isso, não hesita em usar as armas que tem: taxas fronteiriças e controlo de pessoas. Canadá, México e Dinamarca são alvos primários. Um dia destes reclama os Açores! Por razões de segurança nacional, como na Gronelândia.

Os sinais que chegam de Mar-a-Lago não são promissores. Corremos o risco de Trump estar pior do que já estava.

Falta o essencial

Coimbra, 22 de Dezembro de 1990 - O mundo com vários abcessos prestes a rebentar. Ainda há pouco exultávamos de esperança, e já ninguém tem paz na alma. É que não há mais tempo de duração. Todas as nossas horas são ofegantes , e cadentes as estrelas anunciadas e anunciadoras. Temos tudo, e falta-nos o essencial. É como se de repente a vida ficasse do avesso e a não soubéssemos vestir.

Miguel Torga, in " Diário XVI"

Nenhum cessar-fogo à vista: Gaza 'parece um inferno'

Nos últimos 14 meses, a família de Zahra mudou-se de um lugar para outro no norte da Faixa de Gaza em busca de maior segurança. Em dezembro, a família de sete pessoas chegou à Cidade de Gaza.

“A guerra tem sido difícil desde o primeiro dia, mas agora parece um inferno”, diz Zahra, que pediu que o seu nome completo não fosse revelado, da Cidade de Gaza. A sua família encontrou refúgio numa casa parcialmente bombardeada no campo de refugiados de Shati. “Não sabemos se sobreviveremos ou morreremos antes que isto acabe”, disse ele à DW por telefone.

Apesar das repetidas ordens das Forças de Defesa de Israel (IDF) para se dirigirem ao sul da Faixa de Gaza, a família de Zahra decidiu ficar no norte, em parte por medo de nunca mais poder regressar a casa.

“Não saímos do norte mais cedo porque sabíamos que estavam  bombardeando por toda parte e esperávamos que a operação militar no norte terminasse logo. No entanto, tornou-se ainda mais insuportável”, explica Zahra. “A nossa casa no campo de Jabalia foi completamente destruída há meses e agora estamos num estado de constante deslocamento.”

Agências internacionais e governos estão a pressionar Israel e o Hamas para concordarem com um cessar-fogo que permita a libertação do resto dos reféns detidos em Gaza em troca do fim da guerra e de ajuda humanitária à população civil. No entanto, o conflito parece não ter fim.

No fim de semana passado, as Forças de Defesa de Israel declararam ter atingido mais de 100 alvos em toda a Faixa de Gaza depois que o Hamas disparou foguetes contra Israel.

Em todo o território, o frio e as chuvas de inverno inundam tendas e outras casas improvisadas. Nas últimas semanas, as organizações humanitárias alertaram repetidamente que não chega ajuda suficiente à população, tanto devido ao bloqueio israelita como aos saques .

No domingo passado, as forças de defesa civil de Gaza relataram que ataques israelitas mataram agentes de segurança que protegiam comboios de ajuda humanitária no sul. As autoridades também alegaram que os militares israelitas bombardeavam bairros e detonavam edifícios residenciais no norte de Gaza, deixando vários mortos e feridos. Mais de 45.800 palestinos foram mortos desde que Israel lançou a sua ofensiva militar após os ataques terroristas liderados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza.

Jabalia e a área ao norte da Cidade de Gaza são alvo de um novo ataque das FDI que começou em outubro. As Forças de Defesa de Israel dizem que o Hamas e outros grupos militantes estão a reagrupar-se na área e que as suas ordens para evacuar os civis tinham como objetivo mantê-los fora de perigo. Mas os palestinianos e as organizações humanitárias dizem que não há lugar seguro em Gaza e que o deslocamento constante está a agravar a situação.

Gentes é evacuado do campo de refugiados de Jabalia. Gente é evacuada do campo de refugiados de Jabalia.

No final de Dezembro, uma delegação da ONU obteve autorização para viajar ao norte da Faixa de Gaza. Jonathan Whittall, chefe interino do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários em Jerusalém Oriental, disse em um vídeo postado no X que “as pessoas aqui não têm comida, nem água, nem saneamento, nada. para fornecer o básico para a sobrevivência.

Whittall acrescentou que as Nações Unidas apresentaram 140 pedidos de coordenação às FDI para visitar a área nos últimos dois meses, mas todos foram negados.

O Coordenador de Atividades Governamentais nos Territórios, a administração civil-militar israelense responsável pelo acesso a Gaza e pela ajuda humanitária, respondeu em X que “alegações recentes sobre pedidos de coordenação humanitária negados são enganosas”.

As Nações Unidas estimam que entre 10.000 e 15.000 pessoas permaneçam no norte da Faixa de Gaza sitiada, que inclui Beit Lahia, Jabalia e Beit Hanun, mas o número exacto é desconhecido. Acredita-se que grande parte da área tenha sido evacuada e arrasada, alimentando especulações sobre a intenção de Israel de mantê-la como uma zona de segurança fechada quando a guerra terminar.

As Forças de Defesa de Israel negaram estar a implementar o chamado Plano do General, que apela à expulsão dos residentes do norte de Gaza, rotulando todos os civis restantes como alvos militares e bloqueando o fornecimento de alimentos e medicamentos.

Na semana passada, membros do Comité de Negócios Estrangeiros e Defesa do Knesset exigiram, numa carta, que o Ministro da Defesa, Israel Katz, ordenasse a destruição de todas as fontes de água, alimentos e energia na área, queixando-se de que as FDI ainda não derrotaram o Hamas.

Os moradores disseram que já havia uma escassez extrema de alimentos e água, enquanto os constantes bombardeios e tiros tornavam quase impossível qualquer movimento, inclusive chegar aos corredores humanitários em direção ao sul.

Zahra disse que a sua família conseguiu chegar ao campo de refugiados de Shati, a noroeste da cidade de Gaza. Ao longo do caminho, tiveram que passar por um posto de controle israelense. “Permitiram-me passar com as minhas três filhas, enquanto o meu marido e os meus dois filhos tiveram de esperar cinco horas antes de também poderem atravessar”, diz ela.

Matar Zomlot e a sua família permaneceram no campo de refugiados de Jabalia durante a guerra, mas acabaram por ser forçados a abandoná-lo.

“Havia bombardeios e explosões o tempo todo, e o medo era constante”, disse Zomlot à DW por telefone. A família sobreviveu procurando comida em casas abandonadas. me disseram que tinham deixado comida ou conservas".

Em Dezembro, a família conseguiu chegar à vizinha Cidade de Gaza, apesar dos intensos combates.

“Tínhamos medo de que eles atirassem em nós”, continua Zomlot. “No dia em que decidimos partir, saímos à tarde e caminhamos em direção à rua Salah al-Din. Havia um tanque e soldados que nos pararam. Depois de verificarem a nossa identificação, deixaram-nos passar”, acrescenta.

Ele agora mora na Cidade de Gaza com parentes.

Em vez de se mudar para o sul, a família preferiu ficar no norte da Faixa de Gaza. O território está agora dividido pelo corredor Netzarim, uma estrada com postos de controlo militares que vai de leste a oeste.

Uma vez que os palestinianos atravessem para o sul, não poderão regressar ao norte. Uma reportagem investigativa do jornal israelense Haaretz cita soldados na área dizendo que vários palestinos desarmados que se aproximaram da área para retornar ao norte foram mortos a tiros.

Segundo a ONU, cerca de 90 por cento dos 2,1 milhões de habitantes de Gaza foram deslocados, muitos deles várias vezes, e uma das muitas incertezas é se Israel lhes permitirá regressar às suas casas.

“Não sabemos o nosso destino”, diz Zahra, acrescentando: “Não sabemos o que nos espera. Mas rezamos a Deus para que esta guerra acabe logo e possamos regressar aos nossos bairros e às nossas casas, mesmo que tenham foram reduzidos a escombros."

Tânia Kramer / Hazem Balousha

A IA de 2025 não é como a do ano passado

Dois jogadores podem fazer com que este ano de 2025 seja bem diferente no terreno da inteligência artificial. Um já era conhecido, mas deu mesmo as caras nas últimas semanas de dezembro. O outro, para quem não acompanha esse mundo com a lupa, parecerá ter surgido do nada. É uma IA chinesa, a DeepSeek, que, tendo sido treinada apesar dos muitos limites tecnológicos impostos pelos Estados Unidos, parece que em várias funções é superior ao GPT. Com duas diferenças relevantes: foi treinada com muito menos dinheiro e é livre. Qualquer um pode baixar, usar, sem custos.

Durante o período das festas de fim de ano, se tornaram populares nas redes os videozinhos com Lula e Bolsonaro sorridentes, se abraçando, suéteres natalinos e taças de espumante à mão. Foram várias versões no entorno do mesmo tema e não tiveram só eles como personagens. Elon Musk com Bill Gates, Donald Trump com Joe Biden, Zelensky e Putin — imagine um par improvável, e estavam lá. Essas imagens confessam, evidentemente, um desejo. Tem muita gente cansada da polarização na qual nos metemos. Mas, para além de retratar o Zeitgeist, é preciso haver uma explicação para vídeos assim surgirem às dezenas agora e não antes. A razão é uma só: o Grok.

Do ponto de vista da tecnologia, não há motivo para que Dall-E (OpenAI), Midjourney ou Gemini, as IAs mais populares para geração de imagens estáticas, não possam criar retratos de pessoas famosas nas situações mais mirabolantes. Não fazem isso porque há limites, filtros colocados pelas companhias para evitar deepfakes. As falsificações são tão realistas que podem se confundir com a realidade. O Grok não tem esses filtros por uma decisão do dono da xAI. Musk incorpora à defesa que faz da liberdade de expressão a ideia de que parodiar pessoas públicas é do jogo. O que Grok 2 não faz, ainda, são imagens ultrarrealistas. A promessa era que a versão 3 viria à tona ainda no ano passado. Não aconteceu.


O debate sobre se paródias com pessoas públicas fazem parte do exercício legítimo de expressão numa democracia é antigo. E, em boa parte das democracias, a ideia de que, sim, pode parodiar, está bem consolidada. Mesmo que a paródia seja bastante ofensiva, se os personagens são políticos ou gente muito relevante no debate público, é do jogo. Lula e Bolsonaro aos beijos pode soar de mau gosto para uns, mas é manifestação de um desejo ou de uma ideia. Não sendo ultrarrealista, e a cena sendo absurda o suficiente para que ninguém confunda com fatos, tudo certo. O problema se forma quando a linha é cruzada para além da paródia. Para construir uma imagem falsa, plausível, que sirva para falsificar a verdade. Confundir o debate público. No limite, por conta, fraudar uma eleição ao enganar eleitores em número suficiente.

Deepfakes ainda estavam bastante difíceis de produzir de forma realista. Em 2025, vai ficar mais fácil e periga se tornarem realistas o suficiente para enganar muita gente. Ainda não havíamos lidado com uma IA assim, agora acontecerá com mais frequência. E é aí que entra o dilema apresentado pela IA chinesa DeepSeek.

A empresa foi criada por Liang Wenfeng, um jovem cientista da computação chinês que fez uma grande fortuna ainda antes dos 30 desenvolvendo algoritmos para investir na Bolsa. Com sua fortuna, comprou dez mil microprocessadores para treinar IAs antes de os Estados Unidos criarem limites para exportação dessa tecnologia para a China. Os chineses podem importar os chips, mas não aqueles com a tecnologia necessária para treinar os algoritmos atuais. Ainda assim, a turma da DeepSeek comprou mais chips — mesmo que limitados. E treinou seu modelo de linguagem com menos dinheiro e menos tempo de processamento do que as rivais americanas. Fizeram o que ninguém havia feito antes.

Ciência e tecnologia sempre se moveram com mais originalidade perante a escassez de recursos. Se os testes iniciais se comprovarem, pelo menos uma empresa chinesa saltou os limites impostos pelos americanos e está com uma IA superior na praça. Com a diferença que ela é um modelo de código livre, outras empresas podem baixar e adaptar para usos diversos.

Modelos de IA com código livre podem ter seus filtros extirpados e produzirão tudo aquilo que a imaginação do usuário desejar. Sem limites para criação e com novos desafios para a sociedade. O ano promete.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Genialidade brasileira

Confusão. Sempre confusão. Espírito crítico de antologia universal. Lado a lado todas as épocas, todas as escolas, todos os matizes. Tudo embrulhado. Tudo errado. E tudo bom. Tudo ótimo. Tudo genial.

Olhem a mania nacional de classificar palavreado de literatura. Tem adjetivos sonoros? É literatura. Os períodos rolam bonito? Literatura. O final é pomposo? Literatura, nem se discute. Tem asneiras? Tem. Muitas? Santo Deus. Mas são grandiloquentes? Se são. Pois então é literatura e da melhor. Quer dizer alguma cousa? Nada. Rima, porém? Rima. Logo é literatura.

O Brasil é o único país de existência geograficamente provada em que não ser literato é inferioridade. Toda gente se sente no dever indeclinável de fazer literatura. Ao menos uma vez ao ano e para gasto doméstico. E toda a gente pensa que fazer literatura é falar ou escrever bonito. Bonito entre nós às vezes quer dizer difícil. Às vezes tolo. Quase sempre eloquente.

O cavalheiro que encerra a sua oração com um Na antiga Roma ou como disse Barroso Na célebre batalha é orador. Orador, só? Não. Orador de gênio. O cavalheiro que termina o seu soneto com um Ó sol! É raio! Ó luz! Ó nume! Ó astro! É poeta. Também genial. E assim por diante.

Só a gente se agarrando com Nossa Senhora da Aparecida. Essa falsa noção da genialidade brasileira é a mesma do Brasil, primeiro país no mundo. Não há cidadão perdido em São Luiz do Paraitinga ou São João do Rio do Peixe que não esteja convencido disso. E porque o Brasil é o campeão do universo e o brasileiro o batuta da terra, tudo quanto aqui nasce e existe há de ser forçosamente o que há de melhor neste mundo de Cristo e de nós também. Todos os adjetivos arrebatados e apoteóticos são poucos para tamanha grandeza e tamanha lindeza. Ninguém pode conosco. Nós somos os cueras mesmo.

Qualquer coisinha assume aos nossos olhos de mestiços tropicais proporções magnificentes, assustadoras, insuperáveis, nunca vistas. O Brasil é o mundo. O resto é bobagem. Castro Alves bate Victor Hugo na curva. O problema da circulação em São Paulo absorve todas as atenções estudiosas. Sem nós a Sociedade das Nações Unidas dá em droga. Vocês vão ver. Wagner é canja para Carlos Gomes. Em Berlim como em Sydney, em Leningrado como em Nagasaki só temos admiradores invejosos. O universo inteiro nos contempla. Êta nós!

É por isso que seria excelente de vez em quando uma cartinha como aquela de Remy de Gourmont a Figueiredo Pimentel. Um pouco de água gelada nesta fervura auriverde. Para que o trouxa brasileiro caia na realidade. E deixe-se dessa história de gênio, grandeza, importância e riquezas incomparáveis que é bobagem.

E não é verdade.

Alcântara Machado, "Antologia do humorismo e sátira"

Os sábios

Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.

Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.

Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.

Gonçalo M. Tavares, "O senhor Brecht"

Com essa polícia, para que bandidos?

Confira se essa descrição se aplica a alguma cidade que você conheça. Apesar do luxo de seus quarteirões abastados, ela abriga 2.000 favelas. Nelas, os moradores vivem em casas improvisadas, com puxadinho de tijolo aparente, alugadas do dono do pedaço. As ruas não têm calçamento, o correio não chega, e a luz é fornecida por "gatos". Não há rede de esgotos. Muita gente boa mora ali, mas suas visitas não lhe batem à porta com três dedos —já entram com o pé na porta. Cada favela é controlada por uma facção. Se às vezes a chapa esquenta, com tiros e granadas, é porque esse controle está sendo disputado por outra facção, pela milícia ou pela polícia.

Aos seus jovens habitantes, sem escola, sem emprego e sem qualquer interesse, resta o manejo de armas, a venda de cocaína e o progresso na hierarquia do tráfico. Não leem nada. São individualistas, "empreendedores" e esforçados. Seu vínculo é com a facção a que pertencem, mas, como variação, sustentam-se como motoboys de restaurantes, choferes de mototáxi, segurança dos bacanas locais e, agora, operadores de apostas online. Tudo clandestino —nunca terão carteira assinada nem pagarão impostos. Por serem tidos como atraentes, promoverão uma ou outra prostituição na comunidade, usando as meninas que os admiram.


Se você pensou no Rio, onde essas zonas de conflito estão à mostra, acertou. Se pensou em São Paulo, onde elas não estão, acertou também. Mas os parágrafos acima são do repórter americano John Lee Anderson, num número recente da revista The New Yorker, sobre o presidente argentino Javier Milei. A cidade que ele descreve é Buenos Aires.

As nossas são parecidas, mas, por causa da polícia, talvez mais excitantes. Nelas, os tiras têm uma noção particular de suspeito —é todo aquele que se move na frente deles. Com tão vasto leque de opções, aspergem gás de pimenta em passantes, agridem senhoras de idade, matam pelas costas, jogam suspeitos da ponte ou fuzilam carros na presunção de que pais de família desarmados, jovens bonitas ou bebês a bordo são criminosos.

Com uma polícia dessas para que bandidos?

Ano vira, mas o país não muda

A virada do ano mexe com todos. Creio, no entanto, que para os mais velhos não há grandes planos. Apenas a gratidão por sobreviver. Tendemos a cortar o tempo em fatias menores: as tardes de maio, manhãs de domingo, a hora do crepúsculo, algumas auroras, o momento do adeus.

Comprei um aplicativo de gravação que registra a voz, estampa o texto e ainda dá um título. Uso para mandar alguns roteiros de estudo para minha filha, que viaja muito e gosta de estar em dia com alguns temas, como a crise do Oriente Médio, presente em muitas conversas.

O título de uma gravação despretensiosa diz muito para mim: “A arte de adiar a morte, as histórias de Sherazade”. Personagem fascinante das Mil e Uma Noites, ela usava sua habilidade de contar histórias como um artifício para adiar sua execução.

Cada noite, Sherazade começava uma nova narrativa envolvente, cheia de reviravoltas e personagens intrigantes que cativavam a atenção do rei. A estratégia a mantinha viva por mais um dia, mas transformava a proximidade da morte para explorar a condição humana. Contar histórias, conclui a anotação, é um ato de resistência e criatividade diante da morte certa.

Creio que Octavio Paz disse alguma coisa parecida: a poesia como triunfo sobre a morte.


Às vezes somos obrigados a contar a história real que se desdobra no cotidiano do país. Nem sempre temos estômago para vivê-la, e mesmo interpretá-la se transforma em algo indigesto.

O fim de ano foi marcado por uma crise de almanaque. Deputados querem dinheiro das emendas, mas fogem dos quesitos transparência e rastreabilidade. Isso é indispensável quando se usam recursos públicos. O Supremo tenta resistir desde o famoso orçamento secreto. E eles driblam o Supremo, às vezes com a cumplicidade do próprio governo, que não pode bater de frente com o Congresso.

O resultado dessa farsa prolongada é ver dinheiro literalmente jogado pela janela, aviões transportando fortunas em espécie, cidades onde todo mundo extrai o dente, como Pedreiras (MA): 14 dentes extraídos por habitante.

Tenho dificuldade em achar um horizonte. O recente projeto de reduzir custos do governo revelou como é difícil o gasto racional, como estamos longe de um nível necessário de austeridade. As cidades de Maranhão e Tocantins ligadas pela ponte que caiu gastaram R$ 36 milhões em shows, com suas emendas.

O Supremo não consegue deter a prática, porque ainda há certa indiferença social, e o Judiciário é parte do problema com seus supersalários. Uma desembargadora de Mato Grosso, que ganha R$ 130 mil mensais, deu um abono de R$ 10 mil aos funcionários do tribunal. Abono peru. O sacrifício sempre recai sobre os mais pobres. Supersalários e subsídios ficam para depois.

Todos os Poderes gastam muito. Opulência e ostentação são fatores culturais de peso. Talvez por isso Lutero tenha conduzido a cisão na Igreja Católica, que tinha prédios luxuosos, sacerdotes ricos e vendia indulgências, como se o perdão tivesse um preço.

Não importa tanto a raiz cultural, isso é injusto num país com tantas necessidades. Uma coisa é narrar e contar histórias para adiar a morte, algo inerente à condição humana. Outra é narrar para descrever as injustiças cotidianas, num país ainda tão desigual. Tudo é resistência, mas às vezes a repetição cansa.

Quem sabe os eleitores não percebam esse enredo e nos libertem para contarmos apenas as histórias essenciais?

domingo, 5 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


O tempo passa rápido

Às vezes, quando me encontro com velhos amigos, lembro-me da rapidez com que o tempo passa. E isso faz-me pensar se temos utilizado o nosso tempo de forma adequada ou não. A utilização adequada do tempo é tão importante. Enquanto tivermos este corpo e especialmente este cérebro humano incrível, eu acho que cada minuto é algo precioso. O nosso dia-a-dia é muito vivido à base de esperança, embora não exista a garantia do nosso futuro. Não há garantia de que amanhã a esta hora estejamos aqui. Mas estamos sempre na expectativa de que isso aconteça, puramente na base da esperança. Por isso, precisamos de fazer o melhor uso possível do nosso tempo. Acredito que a utilização adequada do tempo é a seguinte: se você puder, esteja disponível para as outras pessoas, ou para outros seres sensíveis. Se não, pelo menos, abster-se de os prejudicar. Eu acho que esta é toda a base da minha filosofia.

Concluindo, precisamos de refletir no que é realmente de valor na vida, o que dá sentido às nossas vidas, e definir as nossas prioridades com base nisso. O propósito da nossa vida precisa de ser positivo. Nós não nascemos com o propósito de causar problemas, prejudicando outros. Para que a nossa vida seja de valor, acho que devemos desenvolver boas qualidades humanas básicas – o calor, a bondade, a compaixão. Então, a nossa vida torna-se significativa e mais pacífica, mais feliz.

Dalai Lama, "A Arte da Felicidade"

Malditos sejam os pecadores

No idioma aramaico, que Jesus e seus apóstolos falavam, uma mesma palavra significa dívida e pecado.

Dois milênios depois, os pobres do mundo sabem que a dívida é um pecado que não tem expiação. Quanto mais você paga, mais você deve; e no Inferno está a sua espera o castigo dos credores.

Eduardo Galeano, "Os filhos dos dias"

Para que serve o jornalismo?

Quando entrei naquela casa, o chão tinha acabado de ser lavado. A tijoleira cheirava a detergente e tudo estava impecavelmente limpo e arrumado, cada coisa no seu sítio e no meio um vazio gigante. Aquela mãe tinha acabado de ficar sem os seus sete filhos menores e abria-me a porta para que lhe contasse a história. Nas semanas seguintes, recebi cartas, e-mails e até visitas na redação de pessoas que tinham histórias parecidas. Cheguei a ir a uma casa, longe de tudo, num bairro muito pobre e periférico, aonde não chegavam transportes públicos, e onde uma mãe me abriu as gavetas de uma cómoda para me mostrar as roupinhas de um bebé que nunca conseguiu trazer da maternidade para casa, por ter já outros dois filhos adolescentes sinalizados.

Como não sabia fazer outra coisa, escrevia. Escrevi sempre as histórias, na esperança de que contá-las ajudasse alguma coisa. Sabia que quem me procurava esperava isso de mim. Vinham ter comigo quando tudo o resto tinha falhado. Os que se sentiam injustiçados, os que não tinham a quem recorrer, os que estavam indignados, os que queriam travar a corrupção. Todos, cada um à sua maneira, viam em mim uma parte da salvação.

Eu duvidava. Mas ouvia e escrevia. Ouvir é sempre a primeira coisa que se pode fazer por alguém que precisa de ajuda e já perdeu toda a esperança. Quando nos dispomos a ouvir quem está desesperado, começamos a ajudar. Porque lhes parece que já mais ninguém os ouve e que aquele problema sem solução começa a ser invisível para todos e, por isso, impossível de partilhar. À medida que tomava notas, ia sentido que uma parte daquele fardo se desfazia. Era como se começássemos a partilhar o peso.

Então, atirava-me ao computador e escrevia. Sentia-lhes a impaciência. “Quando é que sai? Quando vai ser publicado?” A dúvida sempre era uma distração para alguns, para outros mais uma ansiedade. “Nunca vai sair, pois não? Desistiu da história?”

E então, às vezes muito tempo de depois, lá aparecia em letra impressa sobre papel de jornal ou revista ou num ecrã, debaixo de um título sempre demasiado pequeno para conter todo o problema, o texto. Estava cá fora. E a ansiedade de quem me tinha passado a história estava agora em mim. Agora, era eu quem sustinha a respiração à espera das reações.

Às vezes, não acontecia nada. Outras vezes, alguma coisa se resolvia. Quase sempre me agradeciam. Mas também havia quem se esfumasse para sempre sem me chegar a dizer se o meu texto tinha servido para alguma coisa. Raramente, alguém se queixava. E eu ficava sempre na dúvida: teria mesmo feito a diferença?

Há muitas maneiras de fazer jornalismo. Mas esta é aquela que mais se parece com um serviço. E é uma que tende a ser esquecida. Poucas pessoas param para pensar na importância que pode ter contar a história de alguém.

Raramente, a história de alguém é só dessa pessoa. Na maior parte das vezes, o que fazemos é dar uma cara e um nome a um problema em que até aí ninguém reparou. É esse corpo que torna visível aquilo que tendíamos a ignorar coletivamente.

Foi quando escrevi pela primeira vez o nome de Odair Moniz que ele deixou de ser o “suspeito” anónimo que vinha descrito no auto policial. E foi quando lhe vimos a cara que nos interrogámos sobre como se pode acabar morto depois de ter desrespeitado uma ordem da polícia. Cada um pode ter tirado conclusões diferentes sobre essa interrogação, mas foi quando o jornalismo contou essa história que descobrimos a estatística segundo a qual uma pessoa negra tem 21 vezes mais probabilidades de ser morta pela polícia em Portugal do que uma pessoa branca.

Contar as histórias, procurar as causas, revelar os números, explicar os mecanismos, expor versões contraditórias, confrontar quem tem poder. É isso que faz o jornalismo. É isso que torna o jornalismo diferente de qualquer outra forma de comunicação.

Escrevo este texto em dias de grande perturbação para a redação da VISÃO. Vivemos numa enorme incerteza. E haverá quem culpe o mercado, quem nos diga que é o futuro inexorável que aí vem, com os seus algoritmos e inteligências artificiais, quem ache que não faremos falta e quem se regozije com a possibilidade de ver desaparecer quem interroga, quem incomoda, quem escrutina e expõe. A todos gostaria de pedir que parassem para pensar e imaginassem esse futuro sem jornalismo.

Não é um exercício difícil. É só voltar atrás. Ao passado em que as atrocidades se cometiam em silêncio, os povos eram comandados sem questionar, as verdades eram divinas e o poder uma coisa obscura.

Foram precisos séculos, revoluções e muitas lutas para fugir a essa escuridão. No que me toca, vou tentar não deixar que a luz se apague.

O inconfesso sonho teocrático da América

Nos EUA, o novo ano tem o mesmo número de um plano conservador chamado "Projeto 2025", ainda mal conhecido entre nós. Elaborado pela Heritage Foundation e por gente que auxilia Trump desde seu primeiro mandato, o plano visa a um regime autocrático, por meio do debilitamento da Constituição, com abolição de direitos femininos que vão do aborto ao voto. É projeto explícito de um "revival" dos anos 50, quando uma patriarquia protestante dirigia o país.

Não se trata, portanto, de mais uma bizarrice trumpista. A retrospecção parte do período em que despontou com força entre nacionalistas cristãos, bilionários e a John Birch Society, a ideia de um Estado teocrático. Isso foi corroborado nos anos 80 pelo presidente Reagan, que estimulou a politização dos grupos cristãos de extrema direita e a penetração extremista em alas republicanas. Depois, as presidências dos Bush, pai e filho, fizeram avançar esse movimento com a introdução de ensino religioso em escolas públicas (cerca de 30% da população é secular, não adere a nenhuma religião) e fundos públicos para escolas privadas cristãs.


As preocupações liberais com as inclinações teocráticas dessa tendência política estão bem delineadas no livro "Terror Sagrado", de Jim Siegelman e Flo Conway, aclamado nos anos 80, quando Reagan deu sinal verde para os batistas do Sul e os evangélicos de um modo geral. É o mesmo dado por Trump aos nacionalistas cristãos, os bilionários e o republicanos do Maga, empenhados numa "América novamente grande".

Entende-se assim por que gente como Elon Musk e figurões corporativos de menor porte pairam sobre o aparelho estatal trumpista. Uma teocracia tecnológica permitiria, acima dos entraves constitucionais, uma mega desregulamentação suscetível de manter os EUA como principal competidor no mercado mundial.

Esse pano de fundo é uma sombra ominosa que torna nada risíveis as conhecidas bizarrices de Trump. Não tem mesmo nenhum motivo para sorrir a classe trabalhadora que o apoiou na última eleição. O que Musk, os tecnocratas e agora Trump privilegiam são imigrantes altamente treinados para ingresso nas indústrias competitivas. Essa clivagem tem algum potencial para cindir a base republicana, mas sem relevância na ótica do Projeto 2025, lastreado por uma ideologia religiosa que nivela "god" a "gold".

Resta determinar a natureza dessa religião, em que cristianismo é só um "branding" de mercado. Nada a ver com espiritualidade, e sim com o fetiche de uma prosperidade ilusória, além de protocolos rasteiros de conduta. Em vez da negatividade implícita nos mandamentos cristãos (a dialética do "não"), o livre trânsito empreendedor.

Para tanto conflui uma mistura de coaching e autoajuda, que não ajuda ninguém, mas atenua a angústia com fragmentos verbosos de mitos consoladores. É espantoso o relato de um imigrante brasileiro marcado para a deportação, mas que ainda assim apoia Trump. Outra versão da síndrome do torturado que ama o torturador.

Tudo isso já reverbera entre nós há muito tempo. Não serve a grandes tecnocratas empreendedores, que aqui não existem. Mas agrada a um tipo novo de capitalismo, que não precisa se assustar com fantasmas do passado como a teologia da libertação. E é um maná pastoral para a extorsão predatória de manés.
Muniz Sodré