Sermos daqui ou dali não obedece ao lugar do corpo. A cultura naturaliza-nos de outro modo e é mestiça. É identidade de um pouco de cada coisa e quem é só de um lugar é pobre porque nenhum lugar é inteiro.
Este não é um retrato de comunidade alguma que exista. É o meu poema que tem que ver sobretudo com o assombro, o preconceito e a maravilha que sobra em alguém que quer sobretudo inventar uma hipótese por imaginação e exuberância. Não é minha intenção fazer antropologia, sociologia ou sequer história. Sou um colector de palavras. Concebo verdades como se fossem sobretudo vocabulares e aceito erros. Coloco-me diante de todas as coisas para catar o poema. É pelo poema, sua violência e seu fascínio, seu absoluto fulgor deitado sobre a realidade, que é pouco, que busco. É sempre pouco, busco muito mais.
Os povos originários do Brasil, como de toda a América do Sul, fascinam-me e eu jamais esquecerei o que me disse o cacique dos Anacés, ali cerca de Fortaleza: vá, e diga ao seu povo branco que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para o receber como amigos. Ensine ao seu povo que somos amigos. Talvez nunca como então me tenha sentido tão honrado. Abraçaram minha visita, ofereceram-me o mais belo ramo entrançado de uma estranha folha gigante. Fizeram cantos, danças, pintaram os seus rostos, sorriram e pediram paz. Eu senti que não poderia jamais escapar daquele sentimento de urgência que em Portugal, esse futuro sempre europeu, não se sente. É, sim, fundamental que saibamos o impacto do passado no presente. É importante essa consciência para terminar seus efeitos e começar a mais elementar solidariedade. Ao menos, a solidariedade, contra toda a agressão, espoliação e assassinato a que sujeitam ainda os povos originários, esses que são o Brasil original, o Brasil sem as doenças brancas que quase os extinguiram.
Anotei no meu caderno um trecho que imaginei para algum instante no livro, mas que acabou por não ser usado. Sobrou no caderno como um afinador importante para o meu pensamento e esteve sempre presente. Diz: “por toda a parte se chama Brasil. Do baixinho de uma árvore, mesmo raiz, até ao pescoço mais alto, depois da copa, depois até do pássaro, mesmo que voando só na claridade, é chamado Brasil. E na água, movendo e mudando, e seus bichos dentro e ao fundo, a fumaça e o som, é Brasil. Como se não fosse necessário nenhum outro nome. Entoaríamos Brasil e isso seria infinito de significados. O Brasil, coisa tão ávida. Uma espécie de assombração. Um ser em toda a parte ao jeito só da Divindade. O guerreiro branco, imediatamente impedindo a palavra, perguntou: "como tirar o Brasil de sob, de sobre e de dentro de nossas matas, nossos mares, nossos bichos e nossos corpos. Como tirar o Brasil de nossas ideias.”
Imaginei que aos povos encontrados subitamente em suas naturalíssimas comunidades era dito que o tamanho daquela terra estava tomado por um poder absurdo que nomeara tudo a seu serviço. Como poderiam estar ao serviço as matas e as águas grandes da Amazónia, os bichos e os corpos das pessoas que jamais esperaram ver brancos e, sobretudo, terem-nos como donos, autoridades, ferozes companhias, prepotentes assassinos.
Esta é também uma terna História dos negros, mas, como a maioria das feitas pelos brancos, quis muito que sobrasse uma espécie de rasura, a impressão de ausência como se o negro houvesse de ser um elemento usado e deitado ao esquecimento. Julgo que apenas com a morte do meu pai chorei como à escrita de alguns destes capítulos e teve sempre que ver com a figura de Meio da Noite, essa sombra que nunca se ensimesmou o bastante, mas favoreceu seu irmão. Admito que me apaixonei por completo pelo guerreiro desiluminado. Fazer com que o livro seja uma ingrata forma de contar uma história negra é uma crueldade que sinto ser necessária. É necessário atentar como em quase tudo apagamos os negros que foram, afinal, presentes e fundamentais.
Valter Hugo Mãe, "As doenças do Brasil"
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