quarta-feira, 7 de maio de 2025

Ramsés II, o coração, a pena e a sustentabilidade do planeta

No Egito antigo, no tempo de Ramsés II, a preocupação com a vida após a morte direcionou ações das mais variadas, como construções, práticas de embalsamento e abordagem religiosa politeísta em que a proteção era o lugar comum no relacionamento com as divindades e o paraíso era uma ambição. Uma coisa interessante é que a morte era tratada de maneira parcelada em termos da eliminação do corpo. Após o falecimento, vários órgãos eram descartados, exceto o coração, e o embalsamento tinha o seu rito.

Na crença da época, o falecido enfrentava uma avaliação, conhecida como sala de Maat, em que o coração era “pesado” a partir de 42 negações que se referiam a questões éticas e religiosas, como não ter matado, não ter roubado etc. Com isso, era possível comparar o peso do coração com uma pena. Se no conjunto da avaliação o coração fosse mais pesado do que a pena, uma fera comia o coração, e o sonho do paraíso era extinto para sempre. Se fosse mais leve, seria aprovado e liberado para o paraíso. Era a crença de uma prova com chance única levando em conta toda a trajetória da vida terrena. Ou ia para o paraíso para continuidade de sua vida ou… Parece aquela final do campeonato com jogo único, bem ao estilo Elvis (Is now or never).


Uma das coisas importantes traduzidas para a nossa realidade era que o rio Nilo era incluído no teste do peso do coração, como elemento da natureza a ser protegido e não deteriorado. Uma das condições do julgamento da sala de Maat era a confissão número 35, que consistia em dizer “Não interrompi (ou não obstruí) a corrente d’água”. Interromper a corrente de água significava, literalmente bloquear canais de irrigação, prejudicando plantações alheias, reter água para benefício próprio, em detrimento da comunidade, ou modificar o curso natural do Nilo, algo visto como um ato contra a ordem divina (Maat). Num país onde o Nilo era a fonte da vida, manipular o fluxo da água injustamente era visto como um crime grave, tão sério quanto roubar ou matar, pois podia significar sofrimento e morte para outras pessoas. Era a confluência entre individual e coletivo.

Segundo Zakaria Adeeb Abdelsayed, egiptólogo formado pela Universidade de Assuã, no Egito a lógica era de defesa do Nilo. Não tendo o avanço da sociedade sobre a natureza, o problema não era encontrar latinha de cerveja, sacos plásticos, esgotos clandestinos, pneus ou mesmo sofás boiando, mas algo sobre defender o Nilo pela forma como a natureza teria oferecido. O Nilo era e ainda é a forma mais clara e decisiva na sustentabilidade da região já que, de uma forma muita simplificada, geograficamente, o Egito é um deserto que contém um presente da natureza que permite a vida. A vida foi se desenvolvendo ao longo do rio.

A relação causal entre a existência do Nilo e a vida nesse caso é muito evidente, clara, prática, individual e coletiva. Passa a ser coletiva quando essa clareza se torna homogeneamente prioritária. De forma geral, isso falta à sociedade atualmente. Quando ocorrem as catástrofes a sensibilidade surge, mas se esvai com muita facilidade, em parte por causa do overload de informações e passamos para a página seguinte, deixando de filtrar informações pelas prioridades, mas sim pela atualidade. Vale mais gastar neurônios naquilo que hoje as mídias divulgaram do que algo que mexe com a vida, mas não é tão recente, indicando que a importância do novo supera a lógica do impacto do que se trata. A novidade atrai e ocupa mais o espaço de interesse do que o crítico e estratégico.

Essa consciência da importância da natureza, mais de três mil anos depois, ainda está imperfeita. Na verdade, muito distante do real impacto. Afinal, as mudanças climáticas estão no nosso dia a dia, cada vez mais próximas da nossa vida. Enquanto os fenômenos afetam quem está longe fisicamente, não gastamos tempo e energia. A realidade do aquecimento, enchentes, destruição da natureza traz a dimensão da sustentabilidade para outro patamar, mostrando que o tema é cada vez mais presente e urgente: não é para hoje ou amanhã, mas para ontem.

Embora a questão econômica sempre apareça como forma de desvio das soluções, ela mudaria de perspectiva se fosse percebida sob a lógica de não apenas curto prazo. Quando a gente não consegue ver alguma coisa ocorrer no curto prazo, o estímulo para se preocupar se reduz. Nesse sentido a sustentabilidade, fatiada nos seus vários temas, é um tema de longo prazo como proposta de solução, mas é algo de curtíssimo prazo quando se pensa nos desafios, crises e desastres, alimentado diuturnamente.

Existem vários motivos para a não percepção de urgência, isso, com dependência de múltiplos stakeholders com interlocuções. O tema valorização de ações que tratem a sustentabilidade passa pela lógica de mudança de hábitos e a sensibilização da sociedade deveria se mostrar presente. Temos camadas diferentes de percepções, em que um dado grupo não precisa ler este artigo por se posicionar com evidências e consciência do problema e de algumas soluções; do outro lado extremo, uma camada que não percebe a questão como um problema.

Especialmente no que se refere ao segundo grupo descrito, algumas reflexões podem ser oferecidas sobre o tema sustentabilidade com a inspiração do Nilo.

Nossas ações a favor (tornando o coração leve) e contra a natureza (aumentando o peso do coração) estão sendo “medidas”, não como julgamento da sala de Maat, mas como consequências reais sobre a humanidade, de diversas formas, como aquecimento, enchentes, desequilíbrios que afetam a geração de alimentos e consequências negativas nas vidas das pessoas. Alguns desses fenômenos sempre ocorreram, mas estão se tornando mais críticos e abrangentes, e, infelizmente, nos acostumamos com os problemas. Take for grant, ou seja, “é a vida”. Um grande problema é que quem age contra a natureza, não necessariamente é quem sofre as consequências.

O “Nilo” enquanto metáfora contemporânea se mostra de diversas formas, como o bioma amazônico, o Aquífero Guarani, a Mata Atlântica urbana, por exemplo. A dimensão temporal entre não proteção ao sustentável e os danos não é casada, o que torna difícil a evidenciação causal e mesmo a responsabilização de algumas ações, ou mesmo não-ações. Quando pensamos numa dimensão mais localizada, qual é o “Nilo” que garante a vida na sua cidade ou o seu bairro? E o que você faz por ele?

Podemos trabalhar a ideia de que o julgamento egípcio era individual, mas a salvação sustentável era coletiva. Não podemos perder esse direcionamento, e a educação pode, e deve, transformar catástrofes em gatilhos permanentes de consciência, não apenas em manchetes de ocasião. Educação nesse sentido começa na intimidade dos valores das famílias, da forma como são, com a percepção da importância da sustentabilidade que o núcleo tem.
A escola, nos seus vários níveis e áreas, também têm papel importante, o que proporciona força para a consciência coletiva, independentemente dos direcionamentos governamentais e seus humores nem sempre consistentes, principalmente pelo cruzamento do individual com o coletivo político.

O “efeito novidade” nas mídias tem muita força quando comparado com os temas de priorização estratégica. Os impactos de estiagem do Nilo eram concretos e de curto prazo, o que favorecia a priorização e foco, algo que não é percebido como concreto hoje e deixa de sensibilizar as pessoas. Afinal temos muito tempo para corrigir coisas. Na verdade, não temos, e as correções dificilmente reporão a qualidade da natureza do passado. Temos tantas coisas para priorizar que o “efeito novidade” acaba ganhando mais força do que é realmente relevante e que deveria ser ressaltado pelas nossas lideranças. Afinal, você não se pergunta:“Por que nos mobilizamos mais por uma celebridade da internet que foi presa do que por um bioma queimando por vários dias?”. Provavelmente o “Nilo” não foi percebido. O individual pode afetar o coletivo se for sensibilizado.

Como levar a lógica do “Nilo” até para quem nunca viu água limpa sair da torneira? A heterogeneidade de percepção, tanto do risco como do benefício é enorme, independentemente de camada social e região geográfica, implicando em estruturação de diferentes diálogos. Em outras palavras como dialogar com quem já entendeu e posiciona com compromissos, e como alcançar quem ainda não percebe o risco?

Os rituais egípcios, como a construção de pirâmides e locais para os mortos, eram longos e previamente deliberados. A mudança de hábitos também requer ritos de passagem, paciência, repetição. A tese é que a lógica de pensar na sustentabilidade como ingrediente permanente na cultura das pessoas não se impõe, se cultiva. O esforço no sentido de defender a visão de sustentabilidade existe desde longa data mas precisa ser substancialmente ampliado. Se o planeta estivesse fazendo o papel de Maat, quais perguntas ele faria para decidir se ainda nos quer como hóspede?

***

A sociedade precisa de algo para ter a percepção que o Nilo produz para o Egito, significando nada mais, nada menos do que a chance de ter vida para hoje, amanhã e depois de amanhã. É isso que deveríamos pensar quando surge o tema sustentabilidade. Nada mais, nada menos.

Prestem atenção ao que mencionei no início deste texto: para pesar o coração eram formulados 42 questionamentos sobre o comportamento das pessoas ao longo das suas vidas. Com isso posso imaginar que Ramsés II, se estivesse por aqui hoje, iria considerar que acesso ao paraíso de antigamente era mais desafiador do que o de hoje. Quem sabe possamos nos encontrar no paraíso?

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