sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A banalização do mal e o fim da política

Enquanto peço o café, o olhar desvia-se para a televisão. Páro. Estremeço ao ver a notícia que ocupa o ecrã. Um homem, um avô, violou o neto de três anos. Sento-me e continuo a olhar, enojada. Em estúdio, o apresentador lança a discussão. “Este homem merecia o quê?”. Ouve-se, ainda fora do plano, alguém a responder “castração”. Os minutos seguintes são para uma psicóloga discorrer sobre como a castração química, por não impedir o desejo, pode tornar os abusos ainda mais perversos.


No dia a seguir, deixo as crianças na escola e, junto ao portão, tropeço no fim de uma conversa. Comenta-se a forma como algumas pessoas se recusam a dar prioridade a grávidas e bebés. Um pai, de ar plácido, reage perante um desses relatos, com uma voz que não denuncia sequer irritação. “Esse homem merecia a pena de morte”. Nenhuma reação.

Ponho os auscultadores e sigo pela rua, ouvindo um podcast. A reportagem do The New York Times é sobre o que será um Trump 2.0 e fala sobre a forma como o agora candidato à Casa Branca tem um plano para remover os obstáculos que refrearam o seu primeiro mandato.

O microfone vai para Ed Young, de Brick, New Jersey, que está num comício de Donald Trump. É 78.º comício de Trump a que vai. “Espero que quando for reeleito se acabe o Mr. Nice Guy. Espero que haja um acerto de contas”. E como? “Bem, sabe, esta é a minha fantasia, aquilo de que este país precisa mesmo. Quer dizer, não vai acontecer. Na minha fantasia aquilo de que precisamos é de um julgamento ao estilo de Nuremberga para este país. E que todos os eleitos democratas sejam julgados por traição. E, se forem condenados, que sejam castigados, tal e qual como os nazis em Nuremberga. Espero por Deus ver criminosos malvados e traidores como os democratas serem presos e condenados”.

A castração, a pena de morte, a prisão política. O desejo de aniquilação do outro, motivado por um suposto sentido de justiça. A forma como a racionalidade desapareceu de um discurso público inflamado por uma indignação contínua e estéril, está a ter efeitos profundos.

Pode dizer-se que são efeitos de linguagem. Talvez a comentadora que, em estúdio, fala na castração estivesse a agir sob o efeito da repulsa óbvia que o crime provoca. Talvez o apresentador não se tenha sequer questionado sobre os efeitos que a pergunta que lançou tem sobre quem acaba de ser confrontado com um ato tão abjeto. Certamente que o pai que conversava à porta da escola não pretendia matar quem recusa dar a vez a uma grávida. E o apoiante de Trump usa mesmo a expressão “fantasia” e tem o cuidado de afirmar que aquilo que deseja “não vai acontecer”. E, no entanto, esta forma de agir sobre o mundo com a vontade de aniquilar o outro é cada vez mais frequente, ao ponto de se tornar banal. É com a banalização do mal que estou preocupada.

Estamos perante o fim da política. Aniquilar aquele com quem não se concorda, de forma real ou simbólica, é renunciar à política. Quem nos instiga a indignação excitada, quem promove o ódio sobre o outro, quer verdadeiramente que renunciemos à política, deixando o campo aberto para que sejamos conduzidos sem reação para um mundo que promete lei e ordem, mas que se alimenta do caos necessário para que uma pequena elite reine incontestada sobre a turba oprimida e alienada.

Do que precisamos não é de indignação. É de pensamento crítico. Aquele que obriga a tudo o que está fora de moda. Ouvir, ler, refletir, atrasando a reação, aceitar o erro, mudar de ideias, abdicar de certezas. Seremos ainda capaz disso?

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