sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Por que a ideia de que o AI-5 foi uma reação à esquerda é um mito

A Ditadura Militar, instalada em 1964, tinha muitos mecanismos de repressão e controle da sociedade, como o Serviço Nacional de Informações (SNI).

Mas foi em 1968, quatro anos após o golpe, que um Ato Institucional decretado pelo general e então presidente Artur da Costa e Silva possibilitou que o regime intensificasse ainda mais a repressão.

O Ato Institucional Número Cinco, conhecido como AI-5, entrou em vigor no dia 13 de dezembro de 1968. O ato ficou conhecido como "golpe dentro do golpe", porque endureceu o regime e foi uma forma de os militares consolidarem seu poder.

Ele autorizou uma série de medidas de exceção, permitindo o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos parlamentares, intervenções do governo federal nos Estados, prisões até então consideradas ilegais e suspensão dos direitos políticos dos cidadãos sem necessidade de justificativa.

Na época, o governo militar justificou as medidas dizendo que elas eram necessárias para conter "atos subversivos" de "setores que queriam derrubar o regime", que os militares chamavam de revolução, e "manter a ordem e a segurança".

"Se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam [que] sejam frustrados os ideais superiores da Revolução (...) comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária", diz o documento original do AI-5, hoje guardado no Arquivo Nacional em Brasília.

A versão oficial da ditadura, portanto, foi de que o AI-5 era uma reação à esquerda, um movimento para conter o avanço do comunismo no país em meio à Guerra Fria.

Membros do atual governo brasileiro e da família do presidente Jair Bolsonaro, recentemente, repetiram essa ideia.


O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) disse em outubro que, caso a esquerda "se radicalize", "vamos precisar ter uma resposta", que, segundo ele, "pode ser via um novo AI-5".

Eduardo depois voltou atrás quanto à afirmação, dada em entrevista ao canal da apresentadora Leda Nagle no YouTube. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também falou do AI-5. "Não se assustem se alguém pedir o AI-5", ao falar sobre os protestos de rua convocados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Mas será que a justificativa oficial dos militares era o verdadeiro motivo por trás do endurecimento do regime?

Os principais historiadores que estudam o assunto dizem que a ideia de que o AI-5 foi uma resposta à esquerda é um mito, e que outros motivos estavam por trás da decisão.

Os que os documentos e os depoimentos de envolvidos nos mostram, dizem os estudiosos, é que o ato autoritário de 1968 foi uma forma de a ditadura militar controlar não só a oposição de esquerda ou os comunistas (que no Brasil não tinham números ou estrutura suficiente para ser uma ameaça real ao regime).

A principal ameaça eram os setores da sociedade civil que haviam apoiado o golpe de 1964 e que, quatro anos depois, estavam ficando descontentes com o governo - como a Igreja Católica, a imprensa, o Poder Judiciário e líderes políticos.

Ou seja, o AI-5 foi uma forma de "enquadrar os dissidentes dentro das próprias hostes da ditadura", nas palavras do historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos principais estudiosos do tema no Brasil.

Em um artigo científico sobre o assunto publicado no ano passado na Revista Brasileira de História, Motta explica que em 1968 a ditadura possuía os meios suficientes para reprimir a resistência colocada pela esquerda e pelos comunistas.

Em um documento diplomático americano do período há relatos de militares que diziam justamente isso, como o almirante Levy Reis e o general Golbery do Couto e Silva. Em conversa com os diplomatas dos EUA, Golbery dava sua opinião de que o Estado já tinha instrumentos suficientes para lidar com os "subversivos", se referindo à esquerda e aos comunistas.

O que o governo militar não tinha, escreve Motta, "eram meios suficientes para enquadrar e disciplinar segmentos rebeldes da própria elite situados em lugares estratégicos, como o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e a imprensa".

Em entrevista à BBC News Brasil, o pesquisador explica que, quatro anos após o golpe civil-militar que instaurou a ditadura no país, os militares estavam ficando isolados no poder e perdendo boa parte do amplo apoio que tiveram em 1964.

"Muitos grupos e líderes que apoiaram o golpe foram se afastando da ditadura com o tempo (igreja, imprensa, lideranças políticas, intelectuais)", diz Motta à BBC News Brasil.

Mas por que apoiadores do golpe de 1964 estavam ficando insatisfeitos com o governo militar?

Historiadores chamam o golpe de 1964 de "civil-militar" porque ele aconteceu com apoio justamente desses setores. Mas, em 1967, as coisas começaram a mudar.

A ditadura enfrentava oposição desde o início. Ela vinha de setores como o movimento estudantil, alguns parlamentares, as greves operárias e, partir de 1967, o início da luta armada promovida pela esquerda radical - grupos que eram muito diferentes entre si.

Essa oposição esteva mais atuante a partir de 1967 e em 1968 e alguns acontecimentos marcaram a resistência. Em março de 1968, durante uma manifestação estudantil, a polícia militar invadiu o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, onde alguns estudantes jantavam, e o jovem estudante Edson Luís foi morto por policiais miltiares.

Seu assassinato inflamou a revolta estudantil e ele se tornou um símbolo da resistência.

Em junho, houve a famosa Passeata dos Cem Mil, organizada pelo movimento estudantil no Rio de Janeiro; e em outubro aconteceu a chamada Batalha da Maria Antônia, em que estudantes da USP (Universidade de São Paulo) enfrentaram apoiadores do regime na Universidade Presbiteriana Mackenzie. A batalha levou à morte do estudante José Carlos Guimarães, atingido por um tiro vindo do lado dos apoiadores da ditadura.

O ano de 1968 foi marcado também por greves operárias, como a grande greve de Osasco, em julho.

O clima tenso e a resposta autoritária do governo foi deixando alguns setores que haviam apoiado o golpe de 1964 insatisfeitos com o regime, explica o historiador Daniel Aarão Reis, professor e pesquisador de História Contemporânea na UFF (Universidade Federal Fluminense).

"Muita gente tinha apoiado o golpe, imaginando que seria uma coisa de curto prazo", diz Reis. "Mas aí os partidos políticos foram dissolvidos, a eleição para presidente foi indireta, a grande imprensa, que havia apoiado o golpe, começou a ser censurada... Você tinha um quadro de insatisfação muito ampliado."

Em 1965, o Ato Institucional número 2 estabeleceu a eleição indireta para presidente, o que foi confirmado pela Constituição de 1967.

"Havia também um descontentamento com a política econômica, que atingia classes trabalhadoras, que tinha perdido direitos importantes, e o arrocho salarial, com os salários sendo reajustados abaixo da inflação."

E foi assim que a contestação ao governo, que antes vinha primariamente de setores mais à esquerda, como os movimentos estudantil e operário, começou a se ampliar. Juízes davam decisões desfavoráveis ao regime, a imprensa publicava notícias desabonadoras e parlamentares se tornavam insubordinados.

"Importantes líderes que tinham apoiado o golpe começaram a criticar. Carlos Lacerda foi um exemplo, mas podemos citar lideranças da Arena: Djalma Marinho, Daniel Krieger. Ulisses Guimarães, que foi líder civil do golpe, já havia ido para o MDB", conta Reis.

Entre os políticos, diz ele, havia o temor de que os militares começassem a governar sozinhos sem o seu apoio – desde figuras da Arena como José Sarney e Luiz Vianna Filho até vereadores do interior.

Entre membros da igreja, do Judiciário, da imprensa e entre certas lideranças políticas, a insatisfação era a mesma: "O recrudescimento autoritário e a sensação de que o governo Costa e Silva era incompetente politicamente", diz Motta.

Artigos críticos ao autoritarismo de figuras como o ministro da Justiça Gama e Silva apareceram na imprensa, e também se ampliou o descontentamento com a excessiva violência policial.

"Quando Costa e Silva começou a governar, no início de 1967, prometendo diálogo e descompressão política, ele gerou expectativas positivas entre tais grupos. Mas quando os primeiros protestos de oposição apareceram ele respondeu com muita violência. A condução política do governo foi considerada incapaz de lidar com a situação", explica o pesquisador.

"E o governo foi muito criticado por não realizar a prometida reforma universitária, o que na visão de alguns poderia acalmar os estudantes, ou ter evitado que eles se rebelassem."

Ele explica que esse novo desafio vinha de figuras que aceitaram o golpe contra João Goulart e contra as instituições democráticas, mas ao mesmo tempo não desejavam uma ditadura sem limites. "Era uma espécie de liberalismo autoritário, a favor da repressão à esquerda, mas que desejava garantias para a opinião política moderada", diz o historiador.

Outro aliado em 1964 que não via com simpatia o endurecimento do regime era o governo dos EUA. Motta cita um documento interno do Departamento de Estado americano em que o secretário Dean Rusk se mostra preocupado. Na opinião dele, o AI-5 era uma resposta exagerada dos militares – e a opinião da maioria dos diplomatas americanos também ia nesse sentido.

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