sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Trump 2 trata mais de 'Deus, pátria e família', menos comércio e dólar

Donald Trump vai impor imposto de importação extra sobre produtos de Canadá e México, a partir de sábado, como prometeu? "Talvez sim, talvez não", disse o presidente americano nesta quinta. O motivo da punição imperial seriam imigrantes e fentanil. Nada a ver estritamente com relações comerciais.

Trump ainda pode arruinar o que resta de ordem econômica mundial e dar tiros na própria testa dos EUA. Mas sua prioridade até agora tem sido a produção e exportação de ignorância escandalosa e apelos aos sentimentos mais baixos dos americanos e de hordas extremistas pelo mundo, como aqui no Brasil.


Trump não perde oportunidade de atacar planos de preservação ou de reparação de direitos de minorias violentadas de alguma maneira. Além de inflação, esse foi um tema principal da campanha. Mesmo antes de Trump 2, nos EUA havia reação contra essas ideias e políticas, não apenas na grande empresa (há montante de críticas até na esquerda, obviamente em outros termos). Até onde vai esse programa ideológico e quais consequências práticas? Seria apenas diversão inicial, até por fazer mais efeito, sem muito trabalho?

Trump vai destroçar agências de governo também por meio da caça a gente dada a progressismos? Em dois dias, agrediu a Agência Federal de Aviação e o Banco Central. Quando o império começa a solapar até suas burocracias funcionais e essenciais, a coisa parece mais perigosa.

Uma das políticas mais visíveis e incisivas de Trump têm sido o programa de incentivo à ignorância e de aterrorizar imigrantes pobres e funcionários públicos, neste caso com objetivo de erradicar princípios republicanos. Nomeia negacionistas da razão, ignorantes e lunáticos para vários postos de seu ministério, além de acólitos que anunciam perseguição de servidores e cidadãos recalcitrantes, como se fossem polícia política.

Promove a influência de Elon Musk, que financia ou apoia de outra maneira a extrema direita pelo mundo e promete montar comitês de difamação de políticos que contestem a propaganda disso que se quer um novo regime ou o começo de uma "nova era". Quem sabe conte com a ajuda de gangues armadas. Não libertou os terroristas do Capitólio?

Houve um acidente horrível de avião. Trump diz que a "diversidade" fez Agência Federal de Aviação contratar pessoas com "deficiências intelectuais e psiquiátricas graves", entre outros delírios. Ao lado dele, secretários [ministros] repetiam Trump e diziam que fariam uma limpa em seus departamentos. "Se o Fed tivesse gastado menos tempo em DEI [Diversidade, Equidade e Inclusão], em energia ‘verde’ e na falsa mudança climática, a inflação jamais teria sido um problema", escreveu Trump em post na sua rede social, na quarta, depois que o BC dos EUA manteve a taxa básica de juros.

Na quarta, memorando do Departamento de Administração de Pessoal, reforçou a diretriz do decreto do dia 20, do dia da posse: é preciso eliminar a "ideologia de gênero" em exigências de qualificação para empregos públicos, em contratos do governo e em contas sociais (só existem dois sexos, homem e mulher. Dizer o contrário é contra o "sistema americano").

Em um dos discursos do dia da posse, revisou seu ranking de "palavras mais bonitas". Mas Deus, religião e amor viriam antes de "tarifa".

É diversionismo? Ou o começo de um plano fundamentalista profundo?

'Os ossos da minha filha estavam espalhados pelo chão'


 - a busca angustiante pelos desaparecidos de Gaza
 
https://ichef.bbci.co.uk/news/800/cpsprodpb/21a0/live/6abbce40-d987-11ef-a37f-eba91255dc3d.png.webp Restos humanos entre os escombros em Rafah

Tudo se mistura. A mochila multicolorida da criança. Um tênis de corrida. Uma panela de aço perfurada por estilhaços. Pedaços de camas, cadeiras, fogões, abajures; o vidro de janelas quebradas, espelhos, copos. Pedaços de roupa.

Esses últimos itens triturados e cobertos de poeira podem ser marcadores. Frequentemente, eles pertencem aos mortos que jazem perto da superfície dos escombros.

"Desde que as forças de ocupação israelenses se retiraram de Rafah, recebemos cerca de 150 ligações de civis sobre a presença de corpos de seus parentes sob as casas", diz Haitham al-Homs, diretor de Serviços de Emergência e Ambulância da agência de Defesa Civil em Rafah, no extremo sul da Faixa de Gaza.

As autoridades de saúde palestinas estimam que 10.000 pessoas estão desaparecidas. Onde não há nenhum marcador óbvio como roupas na superfície, as equipes de busca confiam em informações de parentes e vizinhos, ou seguem o cheiro de morte que irradia das ruínas.

Restos humanos entre os escombros em Rafah

Haitham al-Homs, um homem vestindo um item laranja de alta visibilidade e equipamento forense de proteção, está em frente a uma ambulância em Rafah
Haitham al-Homs, diretor de serviços de emergência e ambulâncias em Rafah
O governo israelense proibiu a BBC e outras organizações internacionais de notícias de entrar em Gaza e reportar de forma independente. Dependemos de jornalistas locais confiáveis ​​para registrar as experiências de pessoas como aquelas que estão procurando pelos desaparecidos.

No final de cada dia, o Sr. Homs atualiza a lista dos encontrados. Sua equipe escava os escombros com cuidado, ciente de que estão procurando por fragmentos de humanidade quebrada. Frequentemente, o que é recuperado não passa de uma pilha de ossos. As bombas de alto explosivo de Israel explodiram e mutilaram em pedaços muitos dos mortos. Os ossos e restos de roupa são colocados em sacos brancos para cadáveres, nos quais o Sr. Homs escreve a palavra árabe "majhoul". Significa "não identificado".

Um morador de Rafah, Osama Saleh, voltou para sua casa após o cessar-fogo e encontrou um esqueleto lá dentro. O crânio estava fraturado. O Sr. Saleh calcula que o corpo ficou lá por quatro a cinco meses. "Somos humanos com sentimentos... Não consigo transmitir a vocês o quão miserável é a tragédia", ele diz.

Estar cercado todos os dias pelo cheiro de corpos em decomposição é uma experiência profundamente perturbadora, como aqueles que testemunharam as consequências de mortes em massa costumam testemunhar.

"Os corpos são assustadores. Estamos vendo terror", diz Osama Saleh. "Juro que é uma sensação dolorosa, eu chorei."

Famílias também estão chegando aos hospitais para procurar restos mortais. No pátio do Hospital Europeu no sul de Gaza, coleções de ossos e roupas estão espalhadas em sacos para corpos.

Abdul Salam al-Mughayer, 19, de Rafah, desapareceu na área de Shaboura; de acordo com seu tio, Zaki, era um lugar de onde você não voltava se fosse lá durante a guerra. "Então, não fomos procurá-lo lá por esse motivo. Não teríamos retornado."

Zaki acredita que um conjunto de ossos e roupas na frente dele pertencem ao desaparecido Abdul Salam. Ele está de pé com um funcionário do hospital, Jihad Abu Khreis, esperando o irmão de Abdul Salam chegar.

"Há 99% de certeza de que o corpo é dele", diz Abu Khreis, "mas agora precisamos da confirmação final de seu irmão, das pessoas mais próximas a ele, para ter certeza de que as calças e os sapatos são dele".

Logo depois, o irmão chegou do campo de refugiados de tendas de al-Mawasi, também no sul de Gaza. Ele tinha uma fotografia de Abdul Salam em seu telefone. Havia uma foto de seus tênis de corrida.

Ele se ajoelhou diante do saco para cadáver e puxou a tampa. Ele tocou o crânio, as roupas. Ele viu os sapatos. Havia lágrimas em seus olhos. A identificação estava completa.

Outra família se moveu ao longo da fileira de sacos para corpos. Havia uma avó, seu filho, uma irmã adulta e uma criança pequena. A criança foi mantida no fundo do grupo enquanto a mulher idosa e seu filho olhavam sob a cobertura do saco para corpos. Eles se encararam por alguns segundos e então se abraçaram em pesar.

Depois disso, a família, ajudada por funcionários do hospital, levou os restos mortais. Eles estavam chorando, mas ninguém gritou alto.

Aya al-Dabeh tinha 13 anos e vivia com sua família e centenas de outros refugiados em uma escola em Tal al-Hawa, na Cidade de Gaza, no norte. Ela era uma de nove crianças.

Um dia, no início da guerra, Aya foi ao banheiro no andar de cima da escola e - sua família diz - ela foi baleada no peito por um atirador israelense. As Forças de Defesa de Israel dizem que não têm civis como alvo e culpam o Hamas por atacar de áreas civis. Durante a guerra, o Escritório de Direitos Humanos da ONU disse que houve "tiros intensos por forças israelenses em áreas densamente povoadas, resultando em assassinatos aparentemente ilegais, incluindo de espectadores desarmados".

A família enterrou Aya ao lado da escola, e sua mãe, Lina al-Dabah, 43, a envolveu em um cobertor "para protegê-la da chuva e do sol", caso o túmulo fosse mexido e exposto aos elementos.

Quando os militares israelenses tomaram a escola, Lina fugiu para o sul. Ela foi com outras quatro crianças — duas filhas e dois filhos — para se reunir com o marido, que tinha ido antes com os outros filhos do casal. Lina não teve outra opção a não ser deixar a filha onde estava, esperando voltar e recuperar os restos mortais para um enterro adequado quando a paz chegasse.

"Aya era uma garota muito gentil, e todos a amavam. Ela amava a todos, seus professores e seus estudos, e era muito boa na escola. Ela desejava o bem a todos", diz Lina. Quando o cessar-fogo chegou, Lina pediu aos parentes que ainda viviam no norte para verificar o túmulo de Aya. A notícia foi devastadora.

"Eles nos informaram que a cabeça dela estava em um lugar, as pernas em outro, enquanto as costelas estavam em outro lugar. Quem foi visitá-la ficou chocado e nos enviou as fotos", ela conta.

"Quando a vi, não consegui entender como minha filha foi tirada do túmulo e como os cães a comeram? Não consigo controlar meus nervos."

Os parentes coletaram os ossos e em breve Lina e sua família viajarão para o norte para levar os restos mortais de Aya para um túmulo apropriado. Para Lina, há uma tristeza sem fim e uma pergunta que não tem resposta - a mesma pergunta que se coloca a tantos pais que perderam filhos em Gaza. O que eles poderiam ter feito diferente, as circunstâncias da guerra sendo as que eram?

"Eu não poderia tirá-la de onde ela estava enterrada", diz Lina. Então ela pergunta: "Para onde eu poderia tê-la levado?"
Fergal Keane

Vasto leque de indesejáveis

Adolf Hitler passou à história como responsável pela morte de seis milhões de judeus. Mas não só. Não sei se já se fez ou se será possível fazer uma contabilidade sobre outras minorias que ele perseguiu, supliciou e também matou: os comunistas e supostos comunistas, ciganos, eslavos, homossexuais, alcoólatras, toxicômanos, deficientes físicos e mentais. Hitler não admitia essas pessoas em suas fronteiras. Elas comprometiam a "pureza" e a "vitalidade" do povo alemão.

Certamente inspirado por Hitler, de quem era admirador (cumprimentava-o por telegrama em seus aniversários), nosso ditador Getulio Vargas emitiu em 4 de maio de 1938 o decreto-lei nº 406, dispondo sobre estrangeiros no Brasil: "Artigo 1º. Não será permitida a entrada de estrangeiros, de um ou de outro sexo, aleijados, mutilados, inválidos, cegos, surdo-mudos, indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres, alcoolistas e toxicômanos; que apresentem afecção nervosa ou mental de qualquer natureza e lesões orgânicas com insuficiência funcional." Etc. Um vasto leque.


Pois, há dias, o presidente Donald Trump ordenou a demissão de todos os funcionários contratados pela Nasa pelo critério "Deia". "Deia" é a sigla em inglês para diversidade, igualdade, inclusão e acessibilidade —o que abrange a maioria das condições proscritas por Hitler e Getulio. Trump não quer saber de gente nessas condições em sua agência espacial.

Diante da absoluta similaridade nas medidas desses governantes, não há motivo para livrá-los de uma definição também única: eram ou são fascistas. Por que brindá-los com eufemismos e meias-palavras?

Trump fará o que quiser em seu país com mexicanos, brasileiros, colombianos e outros morenos, para ele criminosos natos. Mas sabe que não poderá deportar dos EUA os gays, cegos e mutilados. Ao visar a Nasa, no entanto, está protegendo os interesses de seu amigo Elon Musk, precavendo-se contra a entrada de indesejáveis no novo território de cuja posse Musk já se arrogou: o planeta Marte.

O aprendiz de imperador

Se quiser entender o presidente Donald Trump tem que assistir O Aprendiz (Prime Vídeo). O filme tem o mesmo título daquele programa de TV no qual ele massacrava candidatos à carreira de executivo.

O Aprendiz retrata a ascensão de Trump no ramo imobiliário até se tornar uma celebridade, nos anos 80. Nessa fase, teve como guru o advogado Roy Cohn, cujos ensinamentos questionáveis inspiraram a atuação empresarial e política do ainda futuro presidente dos EUA. A dupla se orientava por três princípios seguidos religiosamente até hoje por Trump: 1º Atacar, atacar, atacar; 2º Nunca admita seu erro nem sua culpa; 3º Em caso de derrota, afirme enfaticamente que venceu.

Nesse sentido, não reconheceu sua derrota para Biden e impeliu uma multidão de seguidores contra o Capitólio, colocando em risco a vida de milhares de pessoas. Já começou seu novo mandato atacando, atacando, atacando o mundo em várias frentes, com bravatas econômicas e militares contra o Canadá, Panamá, Groelândia, México, Oriente Médio, China, Colômbia e Rússia (atos de uma dramaturgia planejada, assim como a deportação em massa dos imigrantes).

Assim, segundo o diplomata Rubem Ricupero, apesar de serem ameaças de cunho internacional, o objetivo de Trump é jogar para a sua torcida interna. Desse modo, procura se afirmar como um imperador cowboy, capaz de qualquer coisa para defender o interesse da sua corte.


Por isso, “Make America Great Again”, não é uma estratégia real de recuperação econômica nacional, mas sim um slogan para dar esperança aos órfãos do American Way of Life. Com isso, fideliza seu eleitorado, obtendo engajamento dos desempregados de Detroit, dos americanos brancos de classe B, C e D, dos “negros de bem” e dos imigrantes legais em geral. Todos contra a imigração ilegal, a bandidagem, os terroristas, os comunistas, as ongs, a ONU, os cartéis e tudo mais que simbolize um risco para o renascimento prometido do sonho americano.

Trump sabe que os EUA têm as maiores reservas de petróleo do planeta (reforçadas pelos depósitos de petróleo e gás de xisto). Têm também uma população economicamente ativa cujo grau de envelhecimento médio ainda não é tão preocupante como o de outros países desenvolvidos. O País tem também um estoque de terras agricultáveis e habitáveis ainda intocadas. Conta com acesso aos dois principais oceanos e um isolamento terrestre que melhora a posição de defesa do seu território.

Como bom aprendiz de imperador, Trump pode se dar ao luxo de algum “mise en scène”. Somado a tantas vantagens geográficas e demográficas, sabe que dispõe ainda de uma poderosa marinha de guerra onipresente e do maior arsenal nuclear do mundo. Tem maioria na Suprema Corte e no Congresso e é apoiado por uma máquina de propaganda formada pelas maiores redes digitais da atualidade.

O Aprendiz revela um Donald Trump com intuição e pragmatismo aguçados. No centro de tudo está ele próprio, portador de um narcisismo em grau elevado e desprovido de afetos ou compromissos. Seduz ou descarta pessoas com a mesma naturalidade. É obcecado pelo sucesso e pela ostentação pessoal, tendo se tornado uma espécie de bezerro de ouro de si mesmo.

É bom lembrar que, antes de mais nada, Trump é um homem de negócios agressivo, acostumado a blefar, a jogar no limite do risco. Resta saber se ele vai orientar suas escolhas segundo a “racionalidade” que fundamenta o capitalismo clássico, ou se continuará seguindo os três princípios do seu guru Roy Cohn na hora de tomar decisões cruciais para os EUA (e para a humanidade).

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

A faixa e a Bíblia: posse e ‘inauguração’

As etapas que legitimam a investidura de um cidadão como presidente são semelhantes nas democracias. Há candidatos, e uma eleição diz quem é o vitorioso. Mas, entre a vitória nas urnas e o cargo de supremo magistrado da nação, há diferenças que o estudo comparado do lado simbólico da vida social revela.

Porque nós, pós-modernos, guiados pela racionalidade tecnológica e pela implacabilidade dos mercados, investimos num ritual tão elaborado quanto dispendioso para investir um eleito na Presidência? Num regime aristocrático ou autocrático, não há disputas. Mas, nas democracias, a disputa requer pompa e circunstância ritual, talvez na esperança de assegurar uma continuidade que, como testemunhamos, tem a fragilidade das promessas humanas.

A “reinauguração” de Donald Trump revela como, nos Estados Unidos e no Brasil, esses ritos de passagem de poder mostram concepções diferentes de poder e política. Nos Estados Unidos, o rito se faz numa “inauguração”; no Brasil, numa “posse”. Dir-se-ia que procuramos chifre em cabeça de cavalo, mas “posse” remete a apropriação, ao passo que “inauguração” fala de história, de inicio, meio e fim — etapas que este furioso mandato de Donald Trump torna discutível.


Outra distinção é que, no Brasil, a posse tem dois momentos. O primeiro no Congresso Nacional, onde o eleito discursa e assina — o assinar é fundamental ao elitismo, porque o país ainda tem quem não saiba assinar o nome — o sagrado Livro de Posse. O segundo momento ocorre no Palácio do Planalto, quando o presidente “sobe” a rampa e recebe a faixa presidencial do magistrado que deixa o cargo. Há um lado impessoal, com ênfase no jurídico-burocrático, e um lado pessoal, em que os presidentes cumprimentam-se e trocam a faixa.

A “inauguração” americana tem um só ato: o juramento e o discurso-pregação do novo presidente. Todas as atenções se voltam para o novo mandatário, que figura como pastor, líder e, no caso de Trump, The Messiah que promete inaugurar uma idade de ouro da América. Algo mais parecido com um tiranete latino por ele abominado do que com um seguidor da tradição americana.

Chama a atenção que, nos Estados Unidos, o centro da solenidade seja um juramento numa Bíblia e, no Brasil, a passagem de uma faixa. No caso americano, a mão direita sobre o livro sagrado avaliza a fidelidade da promessa de garantir a Constituição. No caso brasileiro, a penetração do corpo numa faixa que representa a República sugere apropriação física.

No dia 20 de janeiro, vimos Trump, que não encostou na Bíblia, passando por um ritual cívico-religioso tipicamente puritano, feito de palavras e promessas que dificilmente — como ele mesmo anunciou messianicamente — serão cumpridas.

Se, nas investiduras reais, a coroa e o cetro são os símbolos do poder, nas duas maiores repúblicas constitucionais do continente americano o que articula a solene passagem do mais alto cargo nacional é o contato com a Bíblia e a vestimenta da faixa que sedutoramente envolve o corpo presidencial. No rito americano, destacam-se as mãos que juram solenemente exercer um papel que o ritual salienta como passageiro; no brasileiro, dramatiza-se o corpo que penetra a faixa, como que “possuindo” a Presidência e o país.

Trump — com sua fúria isolacionista e claramente simpática a um nacionalismo exclusivista, típico dos fascismos — ensina que os juramentos e promessas são instituídos para tentar fixar instituições no tempo. São ritos repletos de boas intenções, mas sujeitos ao que chamamos de inesperados — esse aspecto básico da dimensão humana.

Valha-nos Deus!

São tempos difíceis para todos nós, imigrantes

No domingo passado, quando vi as imagens dos brasileiros saindo algemados e em fila de um voo que os trouxe deportados dos Estados Unidos para o Brasil, senti um embrulho no estômago. Esse não é o tratamento que nós, que acreditamos que seres humanos devem ser tratados com dignidade, esperamos ver. E dói ainda mais ver isso acontecer com brasileiros, nossos compatriotas.

Bem, pelo menos isso é o que eu sinto. Em tempos de justiceiros e faroeste nas redes sociais, há quem manifeste com fúria sentimentos diferentes. Enquanto alguns dos deportados denunciavam que teriam recebido agressões físicas de oficiais americanos durante o voo que os trouxe dos Estados Unidos para o Brasil, outros comemoravam. A frase "Parabéns, Trump", ficou em primeiro lugar nos trend topics do X no Brasil. "Parabéns, Trump, os brasileiros honestos te parabenizam" disse um deles e postou junto uma bandeira americana. "Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações", dizia uma velha música da Legião Urbana, atualíssima. Afinal, o que explica alguém comemorar quando um cidadão do seu país é tratado de maneira medieval?


Entre os que "comemoravam como idiotas", vi também gente "progressista". Nesse caso, a ideia era: "Se votou em Jair Bolsonaro e apoiou o Trump, merece". Discordo completamente. Ninguém merece. Tratamento humano vale para todos. Não há nada a se celebrar nessa desgraça toda.

O sentimento contra a imigração não existe só nos Estados Unidos. Essa é uma pauta cada vez mais forte no mundo, inclusive na Alemanha. Acho que quem é imigrante (sou uma delas, moro há quase dez anos na Alemanha) sente um horror especial diante disso. Esse pavor atinge mesmo quem (como é o meu caso) é totalmente legalizado no país para onde migrou. Tenho um visto permanente, que é uma espécie de um green card, e meu processo de cidadania está em curso. Na teoria, não tenho o que temer. Mas como se sentir bem quando a pauta anti-imigraçã está em alta no país e no mundo?

A menos de um mês das eleições federais no país (que acontecem em 23 de fevereiro), a imigração é uma das pautas principais da campanha eleitoral e a principal bandeira da AfD, o partido de ultradireita que ocupa o segundo lugar nas pesquisas.

Na Alemanha, o sistema de governo é o parlamentarismo de coalizão, o que significa que partidos precisam fazer coalizões com outros para formar uma maioria para governar. Todos eles se comprometeram a não se unir com a AFD, esse é o chamado brandmauer (muro de contenção), um cordão sanitário para impedir que a ultradireita chegue ao poder. Isso dá um alívio e tanto.

Mas, a poucos dias das eleições, o candidato favorito, Friedrich Merz, líder da aliança conservadora formada pelos partidos CDU e CSU, sugeriu que poderia aceitar apoio da AfD para aprovar no parlamento medidas duras contra a imigração."Não olho para a direita nem para a esquerda", disse Merz. "Quando se trata desses assuntos, só olho para frente", afirmou.

O aceno provocou fúria nos partidos que normalmente compõem coalizões com a CDU, como o SPD e o Partido Verde.

No fim de semana, mais de 100 mil pessoas foram às ruas em várias cidades da Alemanha se manifestar contra qualquer tipo de aliança com a extrema direita, contra Donald Trump e também Elon Musk, que faz campanha para a AfD. A imigração é um dos temas que une esses radicais.

Nós, que temos todos nossos papéis em dia, nos sentimos mal porque isso aumenta claramente a xenofobia nas cidades em que moramos.

Há algumas semanas, estrangeiros que moram em Karlsruhe, cidade no estado de Baden-Württemberg, receberam pelo correio panfletos da AFD que imitavam passagens aéreas, como se fossem "bilhetes de deportação". E, no verão do ano passado, uma música infame que dizia "Alemanha para os alemães, e estrangeiros fora" se tornou uma espécie de hit de verão entre certas classes na Alemanha (apesar de ser proibida). Não há visto ou passaporte alemão que salve um imigrante de se sentir mal ao ouvir uma coisa dessas.

São tempos realmente difíceis para todos nós, imigrantes. Só não vê quem prefere entrar em negação ou tripudiar sobre as vítimas de tratamento desumano.

A democracia pode estar morrendo

A democracia tem estado em crise em toda a parte. As causas dessa crise não são superficiais. São de duas naturezas, uma fiscal e outra relacionada à forma que a vida cívica tomou com o advento das redes sociais.

A democracia, com a exceção dos Estados Unidos, é uma forma de governo que só se tornou dominante há pouco tempo. Os Estados Unidos, desde sua independência da Inglaterra, há 250 anos, escolheu ser uma república democrática e manteve suas instituições basicamente inalteradas todo esse tempo, apesar de uma guerra civil e de uma grande depressão econômica. Foi, sem dúvida, o território onde a democracia fincou mais fundo suas raízes.


Nos demais países a democracia sempre viveu altos e baixos, sendo muitas vezes interrompida por regimes autocráticos, brutais e selvagens, seja na Europa, no restante das Américas e na Ásia. O momento de ouro dessas democracias começou há meros 75 anos, logo após a Segunda Guerra. Logo que se recuperaram dos efeitos da guerra, a maioria das nações do lado ocidental experimentou um longo período de crescimento, que financiou o chamado estado do bem-estar social, com a expansão das proteções sociais na saúde, na educação e na previdência. Como diziam os americanos: nada sucede tão bem quanto o sucesso.

Os governos acabaram se excedendo e em toda a parte o dinheiro público tornou-se escasso e os impostos não davam mais conta das despesas. Os governos então começaram a se endividar até que num certo ponto o próprio endividamento passou dos limites.

Com a necessidade de cortar despesas e benefícios para equilibrar suas contas, os governos democráticos começaram a perder a lealdade dos eleitores. Com o fim do dinheiro público fácil o Estado do bem-estar começou a fazer água e a democracia deixou de ser a unanimidade que fora até então.

Neste mesmo momento a evolução das tecnologias da informação propiciou a criação das redes sociais, que mudaram radicalmente a forma como as pessoas se relacionam entre si, se relacionam com a autoridade política e como acessam informações e opiniões. Em lugar da mediação dos partidos surgiram as plataformas que capturam e administram, quando não manipulam, a atenção das pessoas. Hoje a substância fundamental do poder político não é mais a política, mas o domínio da atenção, na frase do jornalista americano Ezra Klein.

Neste mundo tudo pode acontecer. Não há mais lealdade a valores, normas ou até mesmo visões mais amplas do mundo. Tudo fica reduzido a emoções superficiais e a vida política se transfere para as mãos impessoais da tecnologia e de seus czares.

Este novo estado de coisas já estava mudando a política na Europa e na América Latina. Agora chegou aos Estados Unidos com toda a força da sua irracionalidade, rompendo a última das defesas com que ainda contava a democracia.

Com o apagamento da política e dos partidos, abriu-se o caminho para a aventura do poder pessoal, que dialoga com os instintos mais primitivos das pessoas. Neste clima nasceu o novo governo Trump. Sua meta explícita é a desconstrução das instituições da democracia americana, as mesmas que duraram mais de dois séculos e trouxeram o país até aqui, como a nação mais rica, mais poderosa e mais criativa da terra. Apesar de todas as evidências, Trump e suas redes convenceram a metade dos americanos que essas instituições levaram o país ao declínio e à desordem, realidades puramente imaginárias, e prometeu a eles uma era de ouro.

Para coroar a obra desconstrutiva, proclamou a hostilidade aos estrangeiros e a todos os outros países, dizendo a aliados e adversários que a América agora estará sempre em primeiro lugar e acima de todos, prometendo pôr fim à ordem internacional baseada em regras, que os próprios Estados Unidos ajudaram a construir. Quem vai querer relacionar-se com este país, senão para fugir dele, evitá-lo e procurar uma alternativa possível?

A democracia americana está por um fio. Se a democracia morrer na América, poderá sobreviver em outros lugares? Estaremos também condenados ao mesmo destino?

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Os Governos e o Capital

Os governos sucumbiram ao capital. Toda a ideia de o governo ter a dupla função, de mediação dos interesses dos grupos sociais em prol do bem comum, e de funcionalidade nos serviços para o bem social, foi por terra. Hoje, aumentam as diferenças econômicas entre os grupos sociais, conforme o “World Inequality Report”, onde o rico fica cada vez mais rico, com a compressão das classes médias e das classes trabalhadoras.

Marx, em o “Capital”, dizia que a clivagem fundamental do sistema capitalista está na oposição entre o capital e o trabalho, e que o lucro nas sociedades capitalistas iria continuamente aumentar devido à tendência do reinvestimento do capital disponível em capital fixo, ou tecnológico, ao invés de em capital variável, ou na remuneração do trabalho. E Wright Mills, em “A Elite do Poder”, diz que manda o capital, controla o militar, executa o político, e media o intelectual nas sociedades, aqui entendidos como imprensa e universidades.


Nos Estados Unidos, o cerne da democracia e da economia de mercado, Elon Musk assume, no Governo Trump, como “Ministro da Eficiência Governamental”, embora a suposição de ter descumprido regras de segurança nacional, no possível compartilhamento de segredos de estado em suas atividades empresariais com outros grupos de interesses e nações. Trump, no seu primeiro dia de governo, rompe as regras dos limites e da liberdade idealizadas pelos “Pais da Nação”, com perigosos devaneios de reincorporação do Canal do Panamá, posse da Groenlândia, e o Canadá como o 51º estado, mais como delimitação de espaço dentro da Doutrina Monroe na geopolítica mundial, mas apontador de tendência; retira os Estados Unidos do Acordo de Paris e da OMS; e perdoa a violência generalizada. Tudo em prol do capital. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Na economia, existem hoje cerca de 2.500 bilionários no mundo, segundo o “Billionaire Ambitions Report” do Banco UBS, com a riqueza (assets financeiros e não financeiros) em US$ 12 trilhões; nominalmente equivalente a 12% do total do PIB mundial de US$ 106 trilhões; seis vezes maior do que a riqueza dos 50% da população mundial mais baixos na base da pirâmide. E segundo o “World Inequality Report”, os 1% mais ricos do mundo detém hoje 19% do PIB mundial enquanto os 50% mais baixos detém somente 8,5%; sendo a renda total dos 1% mais ricos 2,3 vezes maior do que a renda total dos 50% mais baixos da população.

Marx, ironicamente, dizia que a diferença entre o escravagismo e o capitalismo é a de que no capitalismo o trabalhador pode escolher na mão de quem ele passará fome. Somos hoje escravos ambulantes do capital, na alienação de pequenas marcas, no consumo de alguns produtos, na cegueira do amanhã. “Pão e circo” é o que não falta, nos gritos nos estádios e na compra de emblemas que nada nos representam e nada nos trazem, além de custos.

Somos hoje pobres mortais, à leva do destino que não mais nos pertence.

Nunca foi tão bom ser um bilionário

As duas cenas ocorreram no mesmo dia. Em Davos, nos Alpes suíços, a organização não governamental Oxfam divulgava aos participantes do Fórum Econômico Mundial seu relatório mostrando que a riqueza dos bilionários cresceu US$ 2 trilhões em 2024 e que o mundo está perdendo a guerra contra a desigualdade. Em Washington, Donald Trump tomava posse como 47.º presidente dos Estados Unidos tendo como convidados em lugar de honra alguns dos homens mais ricos do mundo.

Pode até ser que alguns desses multibilionários apoiem Trump por verem nele capacidade de tornar o mundo melhor para todos. O que interessa a todos eles, porém, é a possibilidade de o apoio ao presidente da maior potência econômica e militar do planeta facilitar seus negócios e torná-los ainda mais ricos. Naquela cena, se alguém estivesse preocupado com desigualdades não estava entre as figuras mais notadas. A depender de algumas das personalidades que terão grande destaque ao longo do governo Trump, por isso, o quadro apresentado pela Oxfam tenderá a piorar para quem não é bilionário.


“Nunca foi um tempo tão bom para ser um bilionário. Suas fortunas dispararam para níveis jamais vistos, enquanto as pessoas que vivem na pobreza em todo o mundo continuam a enfrentar várias crises”, afirma o relatório Às custas de quem: a origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo, que a Oxfam divulgou em Davos. Fundada em 1942 por ativistas ingleses de Oxford para ajudar a população da Grécia ocupada pelos nazistas, a Oxfam é uma organização internacional que tem como objetivo combater a pobreza, a desigualdade e a injustiça. Atua no Brasil desde 1965.

A concentração da riqueza não chega a surpreender, muito menos no Brasil. Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e estudos baseados nas declarações anuais apresentadas à Receita Federal, mesmo com a subnotificação do rendimento de parte dos mais ricos, vêm mostrando a imensa disparidade de renda entre os brasileiros.

O que surpreende, no mais recente relatório da Oxfam, é a velocidade com que aumenta a riqueza dos muito ricos. Eles ficam cada vez mais ricos e cada vez mais depressa. Sua riqueza aumentou três vezes mais rápido em 2024 do que em 2023. Por isso, agora se espera que haja cinco trilionários em uma década. O primeiro, lembra a Oxfam, foi identificado em 2023. Já o número dos que vivem na pobreza praticamente continua o mesmo desde 1990, por causa das crises econômicas, climáticas e de conflito. Se os Estados Unidos continuarem elegendo um presidente bilionário, apoiado fartamente por outros bilionários, o lugar de destaque na festa de posse talvez tenha de ser aumentado.

Outra conclusão do estudo da Oxfam é a de que a maior parte da riqueza dos bilionários não é conquistada em condições normais de mercado, que em geral premia os mais competentes. Essa riqueza é tomada, pois 60% vem de herança, favoritismo e corrupção ou poder de monopólio. “Nosso mundo extremamente desigual tem uma longa história de dominação colonial que beneficiou amplamente as pessoas mais ricas”, acrescenta.

Desde 1990, de acordo com o Banco Mundial, quase 3,6 bilhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, o que representa 44% da humanidade. Enquanto isso, em uma simetria perversa, o 1% mais rico possui uma proporção quase idêntica, pois detém 45% de toda a riqueza.

Políticas sociais em áreas como educação, saúde, proteção social, direitos trabalhistas e tributação progressiva vêm sendo reduzidas na maioria dos países, o que leva a Oxfam a prever cenários piores no futuro: “Sem ações políticas urgentes para reverter essa tendência preocupante, é quase certo que a desigualdade econômica continuará a aumentar em 90% dos países”.

No Brasil, graças à retomada de programas de transferência de renda desativados ou destroçados no período 2019-2022, a pobreza foi reduzida em 2023, depois de muitos anos de aumento. O Programa Bolsa Família teve papel decisivo nessa mudança. A recuperação do mercado de trabalho também contribuiu para a redução da pobreza no País.

Os indicadores sociais continuam, no entanto, mostrando uma sociedade muito desigual e uma lenta redução das taxas de pobreza, quando não sua estabilidade. Mudar essa tendência implicaria políticas de distribuição de renda mais agudas, o que exige grande concordância política, difícil de ser alcançada.

“Reduzir a desigualdade, como questão abstrata, é algo que boa parte da população é a favor”, lembrou o doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Pedro Ferreira de Souza, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico. “Mas, na hora em que começa a mexer em questões específicas, as pessoas começam a gritar porque de fato é preciso impor perdas a determinados grupos. E grupos com muitos recursos. Reformas nesse sentido teriam efeito imediato sobre desigualdade.”

Ocupados e sem consciência

Se o trabalho e lazer estão prestes a ser subordinados a este princípio utópico - ocupação absoluta - então a utopia e melancolia irão coincidir: nascerá uma era sem conflito, perpetuamente ocupada - e sem consciência. 
Günter Grass

Com a inteligência artificial o conhecimento e a ignorância aumentam

Casos de longevidade são casos de curiosidade. Falo do que conheço. Gente com 80, 90, cem anos? Não foi apenas a dieta, o jogging ou a medicina que prolongaram a vida. Foi a curiosidade: a ambição constante de saberem um pouco mais do que sabiam no dia anterior. Se isso é válido para os meus conhecidos, é válido para Henry Kissinger, morto aos cem, que continuou pensando, escrevendo e publicando até o fim. Um tema, em particular, ocupou os neurônios do cavalheiro na fase crepuscular: a inteligência artificial.

Nas palavras do seu biógrafo, o historiador Niall Ferguson, faz sentido: se o poder destrutivo das armas nucleares ocupou grande parte da sua vida, era inevitável que os desafios da inteligência artificial também aparecessem no radar. O resultado dessa curiosidade pode ser lido no seu último livro, "Genesis", que escreveu em coautoria com Craig Mundie e Eric Schmidt.

É a existência humana que está em causa, argumentam eles. Não apenas no sentido mais básico da expressão. Há dimensões dessa existência que podem mudar de forma mais sutil. A história da humanidade é a história do seu desenvolvimento tecnológico, de como a espécie saiu da caverna, inventou a agricultura, criou cidades, melhorou os transportes, combateu doenças, pisou a Lua.


Mas, em todas essas etapas, o conhecimento andou de mãos dadas com o entendimento. Os humanos eram, ao mesmo tempo, criadores e beneficiários de uma tecnologia que dominavam.

Não com a inteligência artificial. Nosso conhecimento, em todas as áreas, será aumentado exponencialmente. Mas isso se dará por processos que não entendemos. Teremos informação sem explicação.

Como argumentam os autores, viveremos um futuro que será muito semelhante a um tempo pré-científico e pré-moderno, em que os seres humanos aceitavam uma autoridade inexplicável. Qual o problema? Ninguém falou em problema. Repito: os avanços serão exponenciais. Mas quem pensa que a perda de estatuto intelectual dos humanos face às máquinas é um mero detalhe está enganado.

Tradicionalmente, só Deus estava acima dos humanos. Mas, aqui na Terra, os humanos estavam acima de todas as restantes espécies. Essa hierarquia vai acabar no século 21. Seremos destronados como modelos de inteligência. Estaremos preparados para o fim da nossa singularidade? Para o fim do nosso narcisismo? O mesmo em termos políticos. Não é preciso pintar cenários de catástrofe para esse mundo dominado pela inteligência artificial. As coisas podem ser mais sutis.

Durante milênios, as nossas sociedades foram sendo organizadas por princípios ou instituições que variaram menos do que imaginamos. Não interessa se falamos de democracias ou autocracias. Nossos regimes políticos seriam reconhecíveis por um grego do século 5º a.C.

Como seriam reconhecíveis os vícios e as virtudes dos nossos governantes. O que existe neles de racional ou irracional, pragmático ou irascível, louvável ou abominável. Um grego antigo, fascinado pela ideia platônica de rei-filósofo, saberia reconhecer que as nossas sociedades, tal como a dele, não conseguiram realizar esse ideal. Por quê?

Porque somos limitados. Não conseguimos processar toda informação que existe; não conhecemos as leis da natureza humana; não temos a sabedoria necessária para fazer as escolhas mais sábias. Como lembrava o príncipe da Dinamarca, temos tanto de nobreza como de pó.

A promessa da inteligência artificial é a promessa de um rei-filósofo, uma entidade capaz de fornecer respostas perfeitas, suprindo as paixões humanas. Qual é o problema? Mais uma vez, ninguém falou em problema. Mas como negar que existem dimensões da nossa existência que podem ser tão importantes ou até mais importantes do que esse utilitarismo digital? "Amo a justiça, mas amo também a minha mãe", dizia Camus sobre a luta pela libertação da Argélia e seus métodos mais radicais.

Como lembram os autores, conservar a nossa humanidade perante a contingência pode ser a única forma de conservamos também o nosso livre-arbítrio. De não sermos, enfim, meros escravos de um algoritmo. Nas obras sobre a inteligência artificial, normalmente encontramos dois extremos: um otimismo delirante e um pessimismo delirante, sem espaço para as questões fundamentais.

"Genesis" é um livro raro porque prefere as perguntas às respostas. Questiona se no futuro seremos nós a alinhar-nos às máquinas —uma simbiose neuronal, como defendem os transumanistas— ou se devem ser elas a alinharem-se aos nossos melhores valores humanos. Isso implica saber que valores são esses e quem somos nós. A vida será longa para quem procurar essas respostas.

Uma das ciladas mortais do jornalismo

Esta é uma cilada do jornalismo: ouvir todos os lados. Na verdade, não é uma cilada ouvir todos os lados. É uma cilada ouvir todos os lados e publicar as versões mais diferentes de um mesmo fato. Como se a simples transferência de versões fosse capaz de esclarecer ou de permitir aos leitores formarem sua própria opinião.

É obrigação do jornalista ir fundo na investigação de determinados episódios. E oferecer aos leitores a versão que a ele, jornalista, pareça a mais próxima da verdade. A que pareça mais verossímil. Os jornais e os sites estão repletos de versões que se contradizem. E os leitores, como ficam? Confusos. Não sabem em qual acreditar.

Jornalista aprende nos bancos escolares que lhe cabe relatar a verdade. Não cabe. Porque não existe verdade absoluta. Ela será sempre relativa. Cabe ao jornalista eleger a verdade com a maior honestidade possível e oferecê-la ao público. Se escolher mal, perderá credibilidade. E a credibilidade é seu único patrimônio.

Gasta-se muito tempo para adquirir credibilidade. Perde-se em pouco.
Ricardo Noblat

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Deportação em massa = Holocausto

 


Trocando história por histeria

Passou sem comentários o diagnóstico de histeria, por um ministro do STF, sobre os atos extremistas que culminaram no ataque golpista do 8/1. Referia-se não só às depredações, mas ao desconexo comportamento de massa que oscilava entre orações a pneus de caminhão, marchas patéticas e fragmentos verbais sem contexto.

É provável que a desatenção se deva ao juízo estranho a padrões jurídicos. Magistrados não trafegam na via psiquiátrica. Fato, porém, é que o conceito de histeria perdeu exclusividade freudiana, emigrando para reapropriações no campo socioestético, designáveis como "histeresia". Em "Histeria na Mídia", Raquel Paiva aplica com propriedade essa ideia ao discurso compulsivo e redundante da mídia. Uma visão próxima à análise existencial que demonstra o caráter secundário e inautêntico do falatório (Heidegger).

Histeria é doença da representação, afetada pela repressão sexual.

Teatro pervertido das proibições introjetadas, o corpo é compelido a exibir-se por fala e atuações. Em formas convulsivas se registram possessões ditas "demoníacas". Há relatos de letramentos obscenos esculpidos por sintomas na pele de internas em conventos europeus. Matéria-prima para bispos e Hollywood.


Aí se inscrevem fenômenos coletivos com eloquência histérica. Nos cultos sectaristas se diz falar com Deus, supostos aleijados passam a andar, e tatibitate extravagante vira língua do Santo Espírito. Nada estranho, aliás, à crônica social do próprio STF: um dos pares, na celebração televisada de sua aprovação pelo Senado, acalmou com mão de conhecedor a primeira-dama da época em lenga-lenga maníaca aos pinotes.

Supunha-se que a morfologia da histeria, típica da velha sociedade disciplinar, tivesse dado lugar à depressão, que é sem caráter e sem forma saliente. Daí o interesse da perspectiva de Paiva, que introduz a mídia como sujeito-agente do retorno histérico, agora exponenciado pelas redes sociais, vetores da promiscuidade do tudo-dizer como forma ilusória de tudo-poder. O estresse corrosivo do caráter produz subjetividades dóceis, sabor-mercado.

Mediado por redes e cultos, o deslocamento dessa afecção patológica para o campo político alojou-se no extremismo de direita, berço para a aberração, pela natureza exasperada, das normas. Mas bolsonarismo não é ideologia, e sim doença sazonal, flatulência para extravasamento do ódio à escolarização. Um espasmo grotesco, desde a quebra de boas maneiras até comportamentos histéricos, como a exibição fálica de armas. Icônica é a cena da parlamentar de braços estendidos e pistola nas mãos perseguindo um homem negro. A troca de escolas por redes, agentes do contágio, é a via ressentida dos sintomas.

Fenômeno transnacional. A América é um mega reality show que elege presidentes. Após um depressivo, uma besta apocalíptica: Trump, autocoroado imperador de Marte, com seu caldeirão de maldades, estimulando malfeitores e ameaçando indefesos. Saudação nazista de Musk e muita farofa intimidatória.

Já o devoto Milei, um possesso na campanha, é hoje frio neoliberal no poder, atento a "his master’s voice", a voz do dono, não mais aboiando gado. Entre nós, quem mugiu de boi zebu agora chora como bezerro desmamado. Vacina para histeria não há, mas a democracia tem suas astúcias.

Uma mentira

Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo. Aquilo que sabemos tem muita importância. Tomamos decisões, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virá a seguir, o futuro até ao fim dos tempos, será diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificâncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa é uma máquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros têm da realidade, leva-os a acreditar que é aquilo que não é. Essa poluição vai turvar-lhes a lógica do mundo. As conclusões a que forem capazes de chegar serão calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serão multiplicações de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo não lhe dá cobertura. 

Para alcançar coerência, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte. É assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro, como uma toupeira cega a abrir túneis e câmaras no interior da terra. Quando se abre a boca para libertar uma mentira, a primeira, filha de nada que a justifique, nunca se consegue ter noção completa de onde chegará. Nesse momento, na inocência aparente, com voz de gatinho acabado de nascer, está a soltar-se um predador voraz, não há fronteiras marcadas para a sua fome. Uma mentira pode construir edifícios imensos, levantar cidades; uma mentira pode colocar em movimento milhares de pessoas, pode dar propósito a multidões incalculáveis, cada pontinho a ser uma cabeça com história; uma só mentira pode manter em cativeiro gerações inteiras de pessoas que ainda não nasceram, netos que os avós não são capazes de imaginar, ignorantes da mentira original que os domina.
José Luís Peixoto, "Em Teu Ventre"

É bom ter medo da 'arte cívica' de Trump

O último ato do bota-fora de um ocupante da Casa Branca costuma se dar no Salão Oval da Presidência. Ele precisa ser rápido, bem ensaiado e cronometrado. Não foi diferente na segunda-feira 20 de janeiro de 2025, dia da posse de Donald Trump. Faltando menos de duas horas para o juramento do novo mandatário no Capitólio, com Joe Biden ainda perambulando pela residência, o troca-troca de móveis, tapetes, porta-retratos e adereços seguiu marcha célere. Foi dali, sentado na maciça Resolute Desk, presente da Rainha Vitória, que Trump daria sequência, naquela noite, à cinematográfica assinatura de seus quase cem decretos iniciais.

Um ensaio fotográfico divulgado horas depois da posse pelo Wall Street Journal revelou as mudanças mais óbvias. De volta ao Salão Oval estão algumas das peças defenestradas por Biden quando sucedeu a Trump quatro anos atrás. Entre elas, as três imensas bandeiras das armas militares, um lugar de honra para seu ídolo Andrew Jackson (o sétimo presidente americano, que dizia “Nasci para a tempestade, a calmaria não me cai bem”), a popular escultura de bronze de um caubói domando sua montaria, “Bronco Buster”, de Frederic Remington. De serventia mais imediata, foi ressuscitada também a famosa caixa de madeira com campainha, que Trump aciona quando quer mais uma Diet Coke. Saíram de cena o gigantesco retrato do democrata Franklin D. Roosevelt e o busto do líder trabalhista chicano César Chávez.


Nenhum descarte ou inclusão é desprovido de significado político, sabemos. Nada é trivial. Desde que existe — como cenário de pronunciamentos à nação e para a recepção formal de lideranças mundiais —, o Salão Oval da Casa Branca sempre teve como função espelhar tanto a grandeza da Presidência como a alma e o gosto de seu ocupante. As duas coisas acabam se enfronhando na consciência cultural da nação.

A escolha da foto oficial do 47º presidente americano, monitorada nos mínimos detalhes pelo próprio Trump, também se infiltrará na consciência visual do país. Ao contrário de seus antecessores, o Trump de 2025 tem na expressão uma intensidade estranhamente agressiva, feita para causar incômodo. Não há vestígio de transparência, afabilidade ou esboço de sorriso. “Cuidadosamente coreografada”, escreveu o historiador e crítico de arte Kelly Grovier para a BBC. “Cada aspecto está calibrado para um impacto máximo, desde a luz quase metálica e crepuscular que ilumina o rosto de Trump, de baixo, até seu olhar severo e assimétrico.” Grovier diz ser necessário vasculhar na História da Arte para encontrar paralelo convincente à postura aguerrida no olhar de Trump. Sua intencionalidade é triunfante. O crítico só encontrou semelhança num autorretrato do artista barroco Salvator Rosa, que integra o acervo da National Gallery de Londres.

Foi no apagar de seu primeiro mandato, em dezembro de 2020, no meio da pandemia que causou mais de 1 milhão de mortos nos Estados Unidos, que Trump emitiu um decreto sobre... arte e arquitetura. O documento determinava que a edificação de qualquer prédio novo do governo federal deveria seguir “o estilo clássico“ da “arquitetura tradicional”. E elogiava as edificações da Grécia e de Roma na Antiguidade, por “duradouras” e “úteis”. Condenava em particular a arquitetura brutalista e desconstrutivista então em moda, que a seu ver ofendia a “representação dos ideais americanos”.

Seguiu-se uma gritaria de várias correntes artísticas contra a apropriação nostálgica desse estilo arquitetônico, por meio da ficcionalização de suas raízes nacionais. Como apontou uma associação de arquitetos à época, o neoclassicismo nos Estados Unidos está diretamente ligado à edificação da branquitude. Com a justificativa de emular a cultura grega, muitos donos de plantações sulistas construíam suas mansões em busca de branquitude, de forma a realçar sua superioridade moral.

Enterrado por Joe Biden em 2021, o malfadado decreto retornou com força logo na primeira leva assinada por Trump nesta semana. Em memorando dirigido ao Administrador dos Serviços Gerais, com o título de “Promover a bela arquitetura cívica federal”, Trump dá 60 dias para a entidade que gerencia os prédios do governo alinhar a arquitetura oficial aos princípios “clássicos”.

O conceito do que é “belo” ou “clássico” para Trump é elástico. Vale lembrar que a polêmica construção do arranha-céu de 58 andares da Quinta Avenida, em Nova York, com seu grandioso átrio e imponente queda-d’água, exigiu a demolição do histórico prédio art déco que abrigava a loja de departamentos Bonwitt Teller. À época, Trump concordou em doar duas frisas da fachada original ao Metropolitan Museum, mas desistiu diante do custo.

— Mandei meus caras arrancarem tudo — contou, orgulhoso, no livro “A arte da negociação”.

“O intelecto arruína o cérebro”, garantia Joseph Goebbels às massas na Alemanha de 1935. Ciência pura, dissenso, intelecto, arte, humor, diversidade cultural têm pouca utilidade para o projeto Maga de Trump. É bom ter medo de sua “arte cívica”.

Este mundo!


Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo

Zygmunt Bauman

Confusos e à deriva

Para situar a confusão ideológica que caracteriza a visão que da sociedade atual e de si mesmos têm os que se comportam como identificados com o olavo-bolsonarismo e com a extrema direita que nele se expressa, é necessário fazer uma arqueologia das palavras por meio das quais seus atores se definem.

A confusão é grande. O seu palavreado ideológico é pseudoconceitual, porque expressa uma consciência social tosca, fragmentária e de colagens que reúne palavras da linguagem de mera sobrevivência dos que dela carecem.

Mesmo quando aparentemente remetem a orientações doutrinárias conhecidas, são delas descoladas porque nossa realidade social de agitadores ideológicos direitistas, de uma classe média difusa e confusa, não tem consistência política. Só o risco do caos. O conceitualismo da atual direita brasileira é indício de uma esquizofrenia ideológica manipulada, de uma sociedade doente.


Com a lenta e teimosa ascensão política de Bolsonaro e de seus coadjuvantes civis e militares, seus seguidores e simpatizantes sentiram-se cada vez mais à vontade para se autodefinirem por meio de atributos supostamente conceituais. Até então ninguém dizia que era “de direita”. Na verdade, nem “de esquerda”. Porque são categorias definidoras de classificação exterior e arbitrária das aparentemente ideológicas orientações dos de um desses modos definidos.

Foi com surpresa que, depois de algumas décadas sem encontrá-lo, porque me mudara de cidade, encontrei-me com velho conhecido, evangélico, que me disse, ao longo da conversa ocasional, ter finalmente compreendido que era de direita.

Num país de gente privada de identidade política desde sempre, o bolsonarismo compreendeu que havia em nossa mentalidade atrasada um vazio a ser ocupado. Dera-lhe um nome e um conteúdo o nome derivado do de uma pessoa que representa a frustração desse vazio. No modo de ver do meu velho conhecido, ele percebera que tinha uma identidade política. Não é casual que o mito dessa referência ideológica tenha uma biografia de fracassos e erros, mesmo na curta carreira militar.

A estabilidade mais ou menos rígida do bolsonarismo nas pesquisas de opinião eleitoral é um indício significativo dessa anomalia identitária de fundo meramente nominal.

Não é, pois, casual que a disseminação da mania de vestir símbolos nacionais como a nossa bandeira e suas cores simbólicas, expresse a servidão ideológica própria do extremismo de direita e da negação do que é propriamente política: razão e liberdade, e não emoção e sujeição.

Aqui e ali, ouvi afirmações de gente de classe média de que eram liberais, e por isso bolsonaristas, porque as esquerdas seriam adversárias da liberdade de pensamento, mesmo de quem não pensa. Sentem-se tolhidos, sobretudo no risco não confirmado, de que governos de esquerda são de esquerda porque cerceiam o cidadão no direito de pensar e decidir com base em seus próprios valores e interesses. Ainda que antissociais e que contrariem o bem comum. Atribuem às esquerdas o que é próprio da direita.

Sequer percebem que no mundo moderno as esquerdas são uma pluralidade de concepções a respeito da democracia, baseada no direito à diferença e à pluralidade de modos de pensar e de viver. Essa é a esquerda do século XXI.

Nem sempre governos e partidos que se dizem de esquerda o são propriamente. O stalinismo, na URSS, teve sua face fascista na autodefesa autoritária contra a invasão alemã e nazista. Disso nos fala Lukács, sua vítima, em famosa carta.

De uma mulher evangélica, ouvi que era conservadora porque contra as mudanças nos costumes, “coisa das esquerdas”, e era liberal porque tinha o direito de recusar-se a seguir orientações que contrariam suas concepções de costume, como a vacinação contra covid. Curiosamente, uma orientação autoritária no que negava, interpretada como liberal.

A uma das interrogadas no processo relativo à intentona de 8 de janeiro de 2023 o juiz pediu que esclarecesse sua participação na invasão e depredação dos recintos do poder: “porque sou conservadora, contra o aborto e o uso da maconha”.

Isso nada tem a ver com a tradição conservadora. Praticamente, não temos conservadores no Brasil. Temos reacionários, que não compreendem e temem as mudanças sociais e a modernidade. Gente que, porque inculta, se protege no falso abrigo de lideranças e ideologias oportunistas e antidemocráticas. Vítima de uma educação manipuladora que deixou de lado o pensamento crítico e o aprimoramento da consciência social. Que já não reavalia continuamente a realidade como um processo contínuo de ressocialização das pessoas, de reeducação e aperfeiçoamento da personalidade, autoras de reformas sociais.

Perdemos o sentido de proporção

O vocabulário político está viciado. Não conseguimos mais falar das coisas com sentido de proporção. Comportamentos não são mais machistas ou racistas, mas misóginos e supremacistas. As posições não são mais de esquerda ou de direita, mas sempre de extrema direita — quando referidas pela esquerda — ou de extrema esquerda — quando referidas pela direita. Ações voluntárias e involuntárias foram equiparadas, e a intenção e a boa-fé deixaram de valer como atenuantes. Todo comportamento que pode ser condenado precisa ser condenado nos mais duros termos. O resultado político é a intolerância e a incapacidade de convívio.

Antes, o termo machismo era usado para designar comportamentos discriminatórios que promoviam a superioridade dos homens sobre as mulheres, e misoginia era um termo incomum, usado excepcionalmente para se referir a uma hostilidade extrema e patológica às mulheres. Hoje se tornaram intercambiáveis, e há predomínio do termo mais forte sobre o mais fraco.

Uma pesquisa no Google Trends mostra que, nos anos 2000, o termo machismo era 14 vezes mais recorrente que misoginia. Essa relação começou a mudar nos anos 2010 e se inverteu nos anos 2020. No último ano, misoginia foi 50% mais recorrente que machismo. O termo que descreve o comportamento mais extremo e patológico tornou-se mais frequente do que o usado para designar atitudes preconceituosas mais comuns.

Outra mudança importante é a disseminação das críticas às discriminações estruturais e implícitas. Em 1967, o ativista americano do movimento negro Stokely Carmichael cunhou o termo “racismo institucional” para se referir aos efeitos discriminatórios de políticas públicas — efeitos que não recebiam o mesmo grau de atenção e condenação do que atos abertamente discriminatórios de grupos abertamente racistas:

— Quando terroristas brancos bombardeiam uma igreja negra e matam cinco crianças negras, isso é um ato de racismo individual. Quando, porém, na mesma cidade de Birmingham, Alabama, 500 bebês negros morrem a cada ano devido à falta de alimento, abrigo e instalações médicas adequadas, isso é função do racismo institucional.

Em 2013, no livro “Ponto cego”, Mahzarin R. Banaji e Anthony Greenwald mostraram a prevalência de vieses raciais implícitos, comportamentos racistas involuntários. Definiram o viés implícito como “conhecimento associativo de que podemos não ter consciência. Por exemplo, alguém pode explicitamente sustentar crenças igualitárias e, ao mesmo tempo, fazer associações automáticas, como associar ‘negro’ a ‘desagradável’, que não são conscientemente reconhecidas. Esses vieses implícitos frequentemente se dissociam de atitudes reflexivas ou explícitas e podem influenciar comportamentos sem intenção ou consciência”.

Quando o campo da denúncia do racismo se expandiu do racismo aberto — a crença na superioridade de brancos sobre os negros — para essas formas institucionais e inconscientes, a condenação não se abrandou porque o racismo, nesses casos, não era intencional. O princípio basilar de que a boa-fé é um atenuante, quando não diretamente um exculpante, é desprezado por essas acusações desproporcionais.

A razão para esse estado de coisas é que nosso debate político foi moralizado. Não dispomos mais de vocabulário para graduar a caracterização das faltas porque a moderação da resposta é vista como conivência, portanto ela mesma uma falta a condenar.

Se, diante de um pequeno ato que prejudica o direito das mulheres, o chamamos apenas de discriminatório ou desrespeitoso, em vez de machista ou misógino, a falta será nossa. Somos nós que não temos sensibilidade social, que perdemos a capacidade de indignação com a violência contra a mulher. Num mundo político moralizado como o nosso, todos os incentivos são para que as condenações sejam as mais severas e mais rigorosas. Quanto mais dura a reprovação, maior a virtude daquele que condena.

A hiperbolização do discurso político tem levado a um ambiente de intolerância, em que a falta de proporção na caracterização das faltas desvaloriza tanto a gravidade dos comportamentos extremos quanto a possibilidade de estabelecer diálogos construtivos. Ao perdermos a capacidade de distinguir entre faltas menores e ofensas graves, tornamo-nos incapazes de oferecer respostas proporcionais e de reconhecer a boa-fé como atenuante legítimo. Precisamos resgatar o sentido de proporção, adotando um vocabulário político que permita criticar sem distorcer e condenar sem perder a noção de justiça.
Pablo Ortellado

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Lutemos juntos por um mundo novo

Em um momento em que as sociedades democráticas enfrentam tantos desafios, sejam eles ambientais, econômicos ou tecnológicos, a França, a Europa e a América Latina têm uma oportunidade histórica de se reunirem em torno de um mesmo ideal, de uma mesma concepção do universalismo e da dignidade humana, de uma mesma vontade de agir para o bem comum.

Nós travamos essa luta no passado. Dessa história nós não nos esquecemos. Ela nos inspira. Ela nos lembra que os Libertadores, movidos pelo sopro da Revolução Francesa e por um vento de liberdade, lutaram com bravura pela independência de todo um continente.

No ano passado, minhas duas viagens à América Latina me mostraram, a cada encontro, o quanto essa história continuava a ser escrita todos os dias. E 60 anos após a viagem histórica do general Charles De Gaulle, devemos continuar a defender essa visão combativa e humanista do nosso destino comum diante das grandes mudanças de nosso tempo.


Entre tantos desafios, nós também nos questionamos, da mesma forma que vocês, sobre o lugar que os espaços digitais ocupam em nossas vidas [bem] reais, o impacto da inteligência artificial sobre elas e, de forma mais ampla, a conciliação entre o desenvolvimento tecnológico e os nossos valores. Esse assunto estará no centro da Cúpula global de Ação sobre IA, que será realizada em Paris nos dias 10 e 11 de fevereiro e reunirá todos os agentes que atuam nessa área.

Nós também queremos construir com vocês um mundo que enfrente com determinação a mudança climática, que nos permita implementar as medidas de adaptação necessárias e que garanta a preservação de nossas florestas e oceanos. Um mundo que nos ofereça maior segurança diante do crime organizado transnacional e que estabeleça regras comerciais justas para as nossas empresas. Um mundo mais justo, que reconheça a interdependência entre preservação do meio ambiente e prosperidade e permita que os dois andem sempre juntos.

Nós começamos a nos empenhar nessa via paralela promovendo assuntos essenciais como a proteção e o uso sustentável do oceano —especialmente por meio da organização, ao lado da Costa Rica, da Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano, que será realizada em Nice (França) no próximo mês de junho, bem como do apoio à candidatura de Valparaíso (Chile) para sediar a secretaria do tratado sobre a biodiversidade em alto-mar—, defendendo a igualdade de gênero ao lado do México, intensificando nossa mobilização em prol do clima no âmbito da preparação da COP30, em Belém, e protegendo as florestas ao lado dos países amazônicos.

Nós construímos essa agenda internacional mais justa ao lado de vocês, por meio do Pacto de Paris para os Povos e o Planeta, que hoje conta com o apoio de 70 países.

Por meio dessas muitas iniciativas, sempre impulsionadas pelo mesmo universalismo, nós nos recusamos a ceder à ideia de fragmentação do mundo em blocos: Norte e Sul, Ocidente e o resto do mundo. O princípio de dois pesos e duas medidas não pode ser aplicado com base em critérios geográficos ou afinidades: toda vida conta, seja na Ucrânia ou no Oriente Médio, seja no Haiti ou na Venezuela. A França, país latino-americano graças aos seus territórios ultramarinos, e membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, sempre cumprirá com o seu papel na manutenção da paz e da estabilidade no continente.

No início deste novo ano, quero mais do que nunca reiterar firmemente nosso compromisso de levar adiante essa ambiciosa agenda com vocês, incluindo a criação de novas oportunidades de intercâmbio entre nossas universidades, instituições culturais e centros de pesquisa, bem como o lançamento de novos projetos para as nossas empresas no sentido de proporcionar uma maior autonomia estratégica aos nossos dois continentes.

Não há dúvidas quanto a isso. O futuro da França e da Europa será escrito junto com a América Latina e o Caribe. Portanto, lutemos juntos por um mundo novo.

Sobre o fanatismo

O fanatismo embrutece
ou a estupidez fanatiza?
A burrice não me enternece
e o fanático barbariza.

O fanático tem certezas,
onde certezas não existem:
estão repletas de bichezas
que são nocivas e persistem.

A fé não é conhecimento,
pelo menos, até mais ver.
Transforma o mundo em turbulento
e estupora o bom viver.

Crê quem desiste de entender,
por isso o crente é perigoso:
quando não sabe convencer,
vira tirano afanoso.

O fanático não tolera
aquilo que não compreende:
torna-se logo uma fera,
filha bastarda de duende!

Eugénio Lisboa

Bichos escrotos da nova era

Basta olhar o fuzuê que está rolando mundo afora nas últimas semanas, em torno da mudança de governo nos EUA. Toda espécie de seres incomuns saiu de suas tocas ao mesmo tempo para proclamar, cada um a seu modo, uma nova era do capitalismo. Do jeito que a coisa vai, “aqui na face da Terra só bicho escroto é que vai ter”.

Há quase 40 anos os Titãs viralizaram com seu disco Cabeça de Dinossauro. De uma vez só cutucaram instituições tradicionais como a religião, a política, cultura, sociedade e família. Acontece que, quatro décadas depois, a música “Bichos Escrotos” ainda parece fazer sentido.


Contudo, não nos enganemos, há uma inteligência sofisticada no comando de toda essa encenação aparentemente folclórica que emoldura as festividades da posse norte americana. Um esforço coordenado para banalizar e naturalizar as mais diferentes expressões de retrocesso político e desconstrução cultural. É desse modo que, como diriam os Titãs, os ratos entram nos sapatos do cidadão civilizado.

Está nascendo ali um laboratório de Estado ultracapitalista de última geração, movido por IA e computação quântica. Não confundir com o anarcocapitalismo de Javier Milei nem com o neoliberalismo de Tatcher, que no contexto atual mais parecem com teses colegiais. Trump e seus ministros digitais propõem uma espécie de monarquia sem rei, um vale-tudo onde o núcleo central é pilotado diretamente por neobilionários e influencers que parecem ter saído direto do filme “O Lobo de Wall Street” para ocuparem Washington D.C.

O próprio Trump ressurge em ritmo de elefante em loja de louça, bagunçando em instantes um projeto de mercado e um equilíbrio geopolítico que o próprio Tio Sam vinha construindo nos últimos 250 anos, ao custo de sangue, suor e lágrimas (dos outros, é bem verdade). Por exemplo, ao sair do Acordo de Paris e da OMS, enquanto amedronta imigrantes latinos e ameaça países vizinhos, o verdadeiro recado está dado: vamos passar a boiada e acelerar a concentração de riqueza nas mãos de pouquíssimos.

Ao mesmo tempo, as saudações nazistas e o grito de liberou-geral de Musk, Zuckerberg, Bezos e Bannon dão o tom e o clima da nova era (aos amigos tudo, aos inimigos a lei). Mas servem também como gestual ritualista dos novos líderes e seus seguidores. Um conjunto estético pouco sutil e de gosto duvidoso, típico do marketing político dos anos 1930, dessa vez turbinado pelas redes digitais. É o que o italiano Paolo Demuru aponta em seu livro “Políticas do Encanto” (2024).

O modelo se reproduz mundo afora, inclusive no Brasil, fazendo mais sucesso entre a direita, escolhendo seus inimigos nacionais, sejam os palestinos, os comunistas, os imigrantes, os não-brancos, a bandidagem, os ucranianos ou quaisquer outros que sirvam como distração racial enquanto segue o baile da desigualdade social e da mudança climática.

No fim das contas, o esgarçamento da ordem mundial globalizada que predominou especialmente durante a Guerra Fria, dá a vez a um cenário caótico de transição para um arranjo geopolítico e econômico ainda indefinido, que – na ausência de um novo modelo amadurecido – deixa espaço para essas iniciativas passionais de lideranças e elites inconsequentes. Esquecem-se que, em se tratando de aquecimento global e pobreza, não há quem cuspa pra cima que não lhe caia na cara.

Enquanto isso, resta aos mais atentos seguirem o exemplo dos Titãs e exigirem que as baratas nos deixem ver suas patas, antes que os bichos escrotos venham enfeitar nosso lar.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 

Uma em cada 11 pessoas entre oito e 18 anos
é viciada em dispositivos eletrônicos

Negacionismo de Trump faz mal à saúde e prejudica clima

O “meme” é mais antigo do que a internet. Surgiu de uma correlação entre a bagagem genética e a bagagem cultural, como um termo criado pelo neodarwiniano britânico Richard Dawkins, na década de 1970, em seu livro O Gene Egoísta (Companhia das Letras). Para ele, a evolução humana não depende apenas de nossa bagagem genética (nossos genes), mas, também, de uma bagagem cultural, uma memória comportamental, que ele batizou como “meme”, palavra derivada de “mimeme” (imitação, no grego).

Um meme poderia ser qualquer ideia, comportamento ou tendência que tem a capacidade de passar de pessoa para pessoa por meio da imitação ou da nossa herança cultural. Com o passar dos anos, o termo ganhou outros significados, tendo se popularizado na internet como qualquer imagem, vídeo, bordão, hashtag ou áudio que sofre modificações e “viraliza” (mais uma comparação com a biologia), prática que mudou de escala com a inteligência artificial (IA).

Segundo Dawkins, “o ‘meme’ é o equivalente cultural de um gene. Então, qualquer coisa que passa do cérebro para o cérebro, como um sotaque, ou uma palavra básica, ou uma melodia. É tudo o que se espalha-se pela população de uma forma cultural, como uma epidemia. Então, uma loucura em uma escola, uma moda de roupas, uma maneira particular de falar, todas essas coisas são ‘memes'”.

Por ironia, Dawkins utiliza os “memes” da internet nas suas redes sociais para combater fake news e o negacionismo. “Se você baseia a medicina na ciência, você cura as pessoas. Se basearmos o design dos aviões na ciência, eles voam… A ciência funciona”, disse certa vez, no Planetário Hayden, em Manhattan, do Museu Americano de História Natural, hoje gerenciado pelo astrofísico Neil de Grasse Tyson.

O gesto de Elon Musk que repetiu uma saudação nazista na posse de Donald Trump, mesmo que não tenha sido intencional, é um “meme”. Sua origem pode estar na ancestralidade do magnata da tecnologia: os bôeres. São os descendentes de colonos calvinistas dos Países Baixos, da Alemanha e da Dinamarca, bem como de huguenotes franceses, que se estabeleceram nos séculos XVII e XVIII na África do Sul, após serem expulsos de Angola por Salvador de Sá, à frente de uma esquadra armada por senhores de escravos do Rio de Janeiro, após os holandeses serem expulsos do Nordeste.


Insulados por mais de 250 anos, os bôeres desenvolveram uma língua própria, o africâner, derivado do holandês com influências limitadas do bantu, do xhosa, do malaio e do alemão. Hoje vivem principalmente na África do Sul e na Namíbia, mas, também, no Botswana.

O Partido Nacional (em africâner: Nasionale Party, NP) foi o grande partido ultraconservador bôer, dominado por ex-simpatizantes do Eixo, que governou a África do Sul de 1948 a 1994 e promoveu o nacionalismo africâner e o apartheid. Os Musk são originários desse caldeirão étnico.

O ultraconservadorismo de Musk tem raízes históricas e culturais. Não tem contradição com reacionarismo de Donald Trump, mas é paradoxal seu apoio ao negacionismo do presidente dos Estados Unidos em relação à ciência. Musk é um homem da física e da tecnologia avançadas. O negacionismo frequentemente se baseia em desinformação, teorias da conspiração ou interesses específicos que buscam manipular o entendimento público, em contradição com as evidências históricas e científicas. Talvez a razão seja a última.

No dia da posse, Trump anunciou a saída do país da Organização Mundial da Saúde (OMS), a agência das Nações Unidas, como já havia feito em junho de 2020, em plena pandemia, indiferente à sua importância para o controle das grandes ameaças à saúde pública — por exemplo: as epidemias já conhecidas ou as que estão por vir. Os EUA colaboravam com cerca de US$ 550 milhões (cerca de R$ 3,3 bilhões) anuais para a OMS, cerca de 18% do seu orçamento.

Também pela segunda vez, Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris, que junta quase todos os países do mundo. Assinado durante a COP 21, a 21ª cúpula do clima da ONU na França, o Acordo de Paris tem como principal objetivo manter o aumento da temperatura global abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, com esforços para limitá-lo a 1,5°C.

No entanto, em 2022, a temperatura média global subiu 1,6°C, evidenciando a urgência de ações climáticas. Os EUA, a maior economia mundial, são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa, atrás da China, que manteve suas metas de transição energética. Sua decisão enfraquece a COP 30, que se realizará em Belém, em novembro deste ano.