sábado, 26 de março de 2016

O ex-presidente tem duas almas, como o personagem de Machado

Quem me leu na semana passada deve ter passado por uma breve citação do nosso grande Machado de Assis, retirada de seu conto “O Espelho – Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana”. Genial narrativa, que, se me perguntassem, colocaria sem pestanejar entre as dez melhores do gênero do nosso mais destacado autor de todo tempo. Tratava-se de um debate de “quatro ou cinco cavalheiros”, numa casa situada no bairro carioca de Santa Teresa, onde um número indefinido “de investigadores de cousas metafísicas” trocava impressões.

Antes de prosseguir, é de perguntar o porquê da indefinição dos palestrantes. Machado vem logo com a explicação: “Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação”. Seria como se o autor, com o destaque, chamasse a atenção do leitor para esse homem escondido nas sombras, a quem caberia contar o caso mais intrigante daquela noite, sob “estrelas que pestanejavam” do lado de fora da casa. 

Logo após a apresentação do principal personagem, que não fazia parte do pequeno grupo, ele volta à tona para dizer algo que poderia ser denominado um disparate, uma afirmação sem sentido. “Em primeiro lugar, não há uma só alma, senão uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Espanto geral. Como era admissível afirmação tão tola? Tratava-se, pois, de concordar que essas duas almas, sendo o ofício da segunda transmitir a vida, como a primeira, completavam o homem, que é, “metafisicamente falando, uma laranja”. Espanto geral! Estaria o companheiro, também metafisicamente considerando, alguém enlouquecido?

O narrador não se perturbou. Buscou o exemplo concreto para ilustrar a sua tese num moço de 25 anos, pobre, que acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Festa animada entre os parentes, que comemoraram à larga o feliz e honroso acontecimento. Assumindo a personalidade da quinta pessoa, arranja um pedido da sua tia Marcolina, que desejou vê-lo e pediu-lhe “que fosse ter com ela num sítio solitário, onde morava”. A sua chegada, começou uma longa festança, que durou tanto quanto o tempo que a tia gastou para ficar com uma parente que estava à morte.

Enquanto isso, foi tratado pelos que ficaram com verdadeira pompa. Tudo girava em torno do alferes, tratado regiamente pelos que ficaram, até o retorno da tia, que não dava sinais de voltar tão cedo. Mandaram até pôr no seu quarto um grande espelho, “obra rica e magnífica, comprado a fidalgas vindas em 1808 com a corte de d. João VI”. Foi a sua perdição.

O alferes eliminou o homem. Quando foi olhar-se no espelho, “este não estampou-lhe a figura inteira e nítida, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. E assim ficou.

Se se olhava no espelho, eram fantasmas que via. Afinal, veio-lhe a ideia de vestir a farda e olhar-se nele com firmeza. Viu a si próprio exatamente como era. “Daí em diante, fui outro. Quando os outros voltaram, o narrador tinha descido as escadas e ele a si mesmo”, com a primeira alma. 

Agora, a indagação inevitável: o que é que Lula tem a ver com isso? Também o Nosso Guia é portador de duas almas e não consegue livrar-se da segunda, que está no espelho que existe no Alvorada. Quer porque quer voltar a morar lá. Para tanto, está disposto até a quebrar o espelho. Já tentou mil vezes, mas não adiantou.

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