Não faltam exemplos históricos desse legado. Mas não bastam para explicar como a corrupção se renova e reinventa, se espalhou tanto e escorre por todas as frestas. Para entender como chegamos a esse ponto, é bom examinar o trabalho conjunto de diferentes fatores. A impunidade é um deles. O inchaço do Estado é outro. O messianismo colabora. A arte de mentir também faz sua parte, e bem grande, sobretudo para gente facilmente enganável porque a educação lhe é negada. Para sermos um país diferente, vamos precisar mudar tudo isso.
A impunidade vem dos mecanismos criados por quem tem poder, para aí se manter. Um eficiente sistema de infinitas instâncias protelatórias e incontáveis recursos e tecnicalidades para afastar de si as penas da lei. Estas só se aplicam a quem não tem como utilizá-los em seu benefício. Daí o juiz Sérgio Moro ter saudado, como uma janela fechada para a impunidade, a decisão do STF de fazer cumprir as penas já após a condenação em segunda instância.
Para bem manter a teia de privilégios, é necessária uma rede de cúmplices, igualmente beneficiados. Nomeações então aparelham a administração, feitas por recomendação ideológica ou intercâmbio de favores, não por merecimento e capacidade. Esse Estado inchado passa a sustentáculo do sistema. Burlando a Constituição, segundo o Jusbrasil, nosso país tem 600 mil funcionários públicos sem concurso, dos quais 23.941 em cargos de confiança (o dado é do Ministério do Planejamento). A França e a Alemanha têm uns 600 cada. Nosso sistema político tem números igualmente exagerados, com excesso de ministérios, de cargos, de deputados, de partidos, de municípios — e a toda hora surgem mais, tudo sustentado com nosso dinheiro. Isso ajuda a explicar o excesso de impostos, os gastos exorbitantes em campanhas milionárias, e a vergonhosa qualidade dos lamentáveis políticos assim eleitos. Sem falar na recusa de cortes no custeio da máquina administrativa.
Para fingir que é necessário manter esse absurdo tupiniquim, a mentira campeia, a fim de desqualificar os outros e ser messiânico, garantindo que fora do Salvador de Pátria e seu bando não há nada de bom, nenhuma competência, honradez ou virtude. Mas há também que demonizar a iniciativa privada e o lucro, criando infinitos obstáculos burocráticos ao empreendedorismo individual e aos pequenos empresários, de modo a garantir a reserva de mercado e os privilégios a algumas grandes empresas escolhidas, que ajudam a sustentar esse esquema numa bilionária troca de favores. As recentes investigações policiais estão revelando a extensão dessas práticas e os fios que as ligam às campanhas eleitorais.
Essas campanhas devem ser longas, caras, cheias de truques. Para que o esquema dê frutos e perpetue a ocupação do poder, é indispensável utilizar espertas técnicas de marketing, sem qualquer escrúpulo de mentir. Caluniam-se os adversários, promete-se qualquer coisa, varia-se de “paz e amor” a jararaca, conforme a necessidade do momento. Produzem-se filmes com imagens de livros sumindo das mãos das crianças ou pratos de comida desaparecendo das mesas se o eleitor ousar votar de acordo com sua preferência e trair o Grande Pai, a quem deve obediência para lhe garantir a vitória na guerra. Acusa-se o outro de tudo aquilo de que se poderia ser acusado. Ganha quem for o gatilho mais rápido.
E isso cola? Cola, se garantido pela educação de péssimo nível, num sistema que nega o contato com ideias variadas que poderiam desenvolver a visão crítica. Interessa ao sistema clientelista que as escolas recusem leitura literária (que ensina a ver de outros pontos de vista) e qualquer estudo baseado na matemática. A cegueira à realidade da economia assegura a docilidade diante de decisões baseadas em dogmas ideológicos, e não em análises racionais. E quando a consequência desses erros gera grave crise econômica, nada como um pouquinho mais de retórica e marketing para insistir no erro e enganar os trouxas de novo.
Mas vem a hora em que o gigante se espreguiça como se quisesse acordar. Será que abre os olhos e se levanta? Afinal, era a promessa bíblica: bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Talvez seja essa esperança que, ao celebrar a justiça, as ruas em verde e amarelo lembraram a todos no domingo — que em menos de uma semana já parece no século passado.
Ana Maria Machado
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