domingo, 20 de março de 2016

A que ponto chegamos

A que ponto chegamos... A frase se repete nas conversas sobre a crise moral, econômica e política do país. Como foi possível? Como nos deixamos iludir desse modo? Há quem busque as raízes da complacência ou autoengano no cartorialismo lusitano, no clientelismo, na troca de favores que nos veio de herança desde o primeiro Cabral. Já na carta em que anunciava ao rei de Portugal a nova terra, o escrivão pedia um favor para sua família em troca da boa notícia. Depois, tivemos séculos de escravidão, consolidando desigualdade, injustiça, violência, ignorância. Ambiente ideal para fomentar populismo e salvacionismo.


Não faltam exemplos históricos desse legado. Mas não bastam para explicar como a corrupção se renova e reinventa, se espalhou tanto e escorre por todas as frestas. Para entender como chegamos a esse ponto, é bom examinar o trabalho conjunto de diferentes fatores. A impunidade é um deles. O inchaço do Estado é outro. O messianismo colabora. A arte de mentir também faz sua parte, e bem grande, sobretudo para gente facilmente enganável porque a educação lhe é negada. Para sermos um país diferente, vamos precisar mudar tudo isso.

A impunidade vem dos mecanismos criados por quem tem poder, para aí se manter. Um eficiente sistema de infinitas instâncias protelatórias e incontáveis recursos e tecnicalidades para afastar de si as penas da lei. Estas só se aplicam a quem não tem como utilizá-los em seu benefício. Daí o juiz Sérgio Moro ter saudado, como uma janela fechada para a impunidade, a decisão do STF de fazer cumprir as penas já após a condenação em segunda instância.

Para bem manter a teia de privilégios, é necessária uma rede de cúmplices, igualmente beneficiados. Nomeações então aparelham a administração, feitas por recomendação ideológica ou intercâmbio de favores, não por merecimento e capacidade. Esse Estado inchado passa a sustentáculo do sistema. Burlando a Constituição, segundo o Jusbrasil, nosso país tem 600 mil funcionários públicos sem concurso, dos quais 23.941 em cargos de confiança (o dado é do Ministério do Planejamento). A França e a Alemanha têm uns 600 cada. Nosso sistema político tem números igualmente exagerados, com excesso de ministérios, de cargos, de deputados, de partidos, de municípios — e a toda hora surgem mais, tudo sustentado com nosso dinheiro. Isso ajuda a explicar o excesso de impostos, os gastos exorbitantes em campanhas milionárias, e a vergonhosa qualidade dos lamentáveis políticos assim eleitos. Sem falar na recusa de cortes no custeio da máquina administrativa.

Para fingir que é necessário manter esse absurdo tupiniquim, a mentira campeia, a fim de desqualificar os outros e ser messiânico, garantindo que fora do Salvador de Pátria e seu bando não há nada de bom, nenhuma competência, honradez ou virtude. Mas há também que demonizar a iniciativa privada e o lucro, criando infinitos obstáculos burocráticos ao empreendedorismo individual e aos pequenos empresários, de modo a garantir a reserva de mercado e os privilégios a algumas grandes empresas escolhidas, que ajudam a sustentar esse esquema numa bilionária troca de favores. As recentes investigações policiais estão revelando a extensão dessas práticas e os fios que as ligam às campanhas eleitorais.

Essas campanhas devem ser longas, caras, cheias de truques. Para que o esquema dê frutos e perpetue a ocupação do poder, é indispensável utilizar espertas técnicas de marketing, sem qualquer escrúpulo de mentir. Caluniam-se os adversários, promete-se qualquer coisa, varia-se de “paz e amor” a jararaca, conforme a necessidade do momento. Produzem-se filmes com imagens de livros sumindo das mãos das crianças ou pratos de comida desaparecendo das mesas se o eleitor ousar votar de acordo com sua preferência e trair o Grande Pai, a quem deve obediência para lhe garantir a vitória na guerra. Acusa-se o outro de tudo aquilo de que se poderia ser acusado. Ganha quem for o gatilho mais rápido.

E isso cola? Cola, se garantido pela educação de péssimo nível, num sistema que nega o contato com ideias variadas que poderiam desenvolver a visão crítica. Interessa ao sistema clientelista que as escolas recusem leitura literária (que ensina a ver de outros pontos de vista) e qualquer estudo baseado na matemática. A cegueira à realidade da economia assegura a docilidade diante de decisões baseadas em dogmas ideológicos, e não em análises racionais. E quando a consequência desses erros gera grave crise econômica, nada como um pouquinho mais de retórica e marketing para insistir no erro e enganar os trouxas de novo.

Mas vem a hora em que o gigante se espreguiça como se quisesse acordar. Será que abre os olhos e se levanta? Afinal, era a promessa bíblica: bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Talvez seja essa esperança que, ao celebrar a justiça, as ruas em verde e amarelo lembraram a todos no domingo — que em menos de uma semana já parece no século passado.

Ana Maria Machado

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