O povo, é claro, move-se pelos seus interesses. Havia de se mover pelos de quem? Inter esse, em latim, significa estar dentro. O povo está por dentro do que lhe interessa. Esse é o dado. Com ele é preciso, agora, construir. Porque interesses há muitos, o povo não é um corpo só. Vive em fricções e divergências, convergências e paixões, “tudo segundo a guerra e a mais bela harmonia”, disse, antes de Sócrates, Heráclito. Guerra e harmonia. Não uma sem a outra. Os interesses em conflito geram a guerra de todos contra todos. Os interesses harmonizados conduzem à paz. Harmonia era naquele tempo concebida como equilíbrio, beleza. O lugar da verdade era a harmonia. Sócrates habitava aí. Contra os demagogos, que fingiam saber. E contra os aristocratas e plutocratas, poderosos pela estirpe ou pelo dinheiro. Para esses, os interesses eram claros: os deles. O resto era caos. Para Sócrates, era do caos aparente que emergia a ordem — harmonia e verdade. Esse é o princípio da democracia socrática.
Platão, discípulo de Sócrates, tinha medo do povo. Temia os interesses que sobem dos estômagos vazios, das mãos sem serventia, das dores sem remédio. Interesses não são educados, pensava ele. Não sabem a verdade. E a educação é fundamental. Criou então um modelo de estado ideal em que a verdade estaria assegurada pelo fato de que os reis seriam filósofos. Esse Estado seria um verdadeiro currículo acadêmico. Um longo processo de educação, de domesticação dos interesses pelo conhecimento. Pode-se especular se Sócrates seria feliz nessa república, cheia de salas de aula e vazia de praças. Sem praças não há povo. O Estado de Platão padecia de autoritarismo. Platão já não acreditava que era dos conflitos de interesses que vinha brilhar a mais bela harmonia, a verdade. Suprimiu os interesses, que são apenas opinião. E assim ficaria tudo preservado do caos. Sem demagogos. Uma aristocracia do espírito.
Foi necessária uma longa espera para encherem-se de novo verdadeiramente as praças de povo. As revoluções americana e francesa do século XVIII trouxeram os interesses legitimamente de volta, os dos que não têm pão (“comam brioches!”, disse a rainha) nem liberdade. Essas revoluções reviraram o mundo. Alguns ganharam liberdade — outros, não. Alguns comeram — outros, não. Os interesses continuaram a se opor e se harmonizar. A política veio a ser a arte de compor interesses, e da contradição extrair a harmonia. A forma da harmonia é a lei. Há quem goste, há quem não, segundo seus interesses. Mas a lei é um pacto de vida comum. É o modo político da verdade. Pode virar pedra, se o povo se esquecer de voltar à rua. Mas ele volta. E o tempo da sua volta vai mudando a lei. É assim, nas democracias. As leis se fazem, e vive-se depois com elas. Até serem mudadas pelo voto. Não no grito dos demagogos, nem pelo poder dos muito ricos. É assim.
Nem todos gostam. Há os que têm pressa em mudar leis e pessoas. Têm seus próprios desígnios — agendas, diz-se hoje — e são impacientes. Não raro cavalgam os interesses verdadeiros do povo, quando ele vai às ruas dizer sua palavra, e torcem sua marcha na direção dessa vontade apressada. Desrespeitam a política, metade conflito, metade harmonia. Estimulam o conflito, que lhes serve melhor. É um perigo. Um dia o povo, que foi bater panelas com uma raiva embaraçosamente convicta, pode perceber que foi conduzido. Que alguém andava por ali desinteressado da verdade. E cobrará. Como, depois se há de ver.
Não se batiam panelas na república de Platão. Não havia liberdade. Na Ágora de Sócrates seria possível. Mas não era necessário. Os interesses estavam sendo harmonizados, a verdade, no final, fazia a festa. Hoje não sabemos mais. Os interesses estão em guerra. E quem busca a harmonia fica esmagado por eles. Mas há interesses e interesses. Panelas e panelas. Umas batem raivosamente, outras soam uma convicção triste. Saber distinguir as batidas é uma arte. É preciso apurar os ouvidos. De onde estiver exilada, a verdade pode regressar pelos ouvidos de quem sabe ouvir.
Marcio Tavares D’amaral
Nenhum comentário:
Postar um comentário