Voltei a pensar em George Orwell com uma notícia recente: a versão em quadrinhos de sua Revolução dos Bichos , feita pelo artista Odyr, ganhou o HQMix de Melhor Adaptação para Quadrinhos . Ainda não tive a chance de conferir o trabalho, mas qualquer iniciativa que nos faça falar de George Orwell é válida — trata-se de um dos escritores mais urgentes do momento, para todo o espectro político e todas as latitudes.
Antes de tudo, devido à sua obra. Não apenas Revolução dos Bichos e 1984 , tão clássicos que já correm o risco de ossificação, pisados e repisados a cada sinal de fechamento e escalada autoritária mundo afora, como na última semana no Brasil; também os ensaios de Orwell merecem leitura. Há, por exemplo, a coletânea O que é fascismo? , da Companhia das Letras (que publica a obra do escritor no Brasil), lançado em 2017 quase como um prenúncio do país de hoje, cujos poderes falam de recolhimento de livros ou esgotamento das vias democráticas.
Quem já estiver um pouco cansado de política, da face institucional dela, também encontra boas opções, que nutrem o pensamento e revigoram o espírito, em livros como Na Pior em Paris e Londres e Como Morrem os Pobres e outros ensaios. O primeiro traz um relato das vivências de Orwell nas capitais francesa e inglesa, sem muito mais que uns poucos tostões e a necessidade de não sucumbir ao frio, à fome, à fadiga. Embora na superfície pareça tão diferente da ficção especulativa de 1984 ou da sátira política de Revolução dos Bichos , o livro tem tudo a ver com a obra orwelliana, já que é seu ponto de partida, seu Big Bang: nele o autor elaborou seu olhar crítico, meio à margem, e sua vontade de concretude, seja na linguagem, seja nas situações retratadas. Encontrou sua voz e seu ponto de vista.
Mais diversa e por vezes ainda mais direta, a coletânea de ensaios Como Morrem os Pobres mostra Orwell em grande forma, com textos potentes e de uma atualidade impressionante. Desde uma frase pontual (“Em nosso tempo, o discurso e a escrita política são, em grande medida, a defesa do indefensável”, como se lê em “A política e a língua inglesa”) até raciocínios mais gerais, o livro corre o risco de acabar todo rabiscado, páginas e páginas sublinhadas, anotadas e comentadas, como se o movimento incessante do lápis pudesse reverter as letras em voz, em busca de alguma luz, de alguma clareza para entender o mundo de Orwell, que ainda é o nosso em muitos aspectos decisivos.
Nem tudo é perfeito em Orwell, obviamente. Há comentários e pontos de vista que podem nos parecer problemáticos, ainda mais se não considerarmos o contexto. Em Como Morrem os Pobres , por exemplo, seu ensaio em defesa das lareiras a carvão soa questionável se o lermos de modo anacrônico, com as preocupações ecológicas de hoje, quando combustíveis fósseis se tornaram um fator evidente do colapso climático. Há outro aspecto problemático no ensaio: Orwell faz uma defesa tradicionalista, de um idílio familiar, com pai, mãe e crianças em torno da lareira, que parece meio piegas, ou acrítica, à beira de um saudosismo potencialmente nocivo.
Mas é um problema menor, muito menor. Em questões bem mais espinhosas, e nas quais seus contemporâneos com frequência destilaram preconceitos, barbaridades e mentiras, Orwell demonstrou um exame preciso e uma crítica aguda. O autor inglês olhou a fundo três das maiores mazelas do século XX – o colonialismo europeu, o nazifascismo e o stalinismo – e as denunciou de modo aberto e incisivo, quando isso estava longe de ser o óbvio (chegou a pegar em armas, quando foi lutar na Guerra Civil Espanhola contra as tropas de Franco). Criticou essas tiranias com escritos que tampouco aliviaram a barra da exploração econômica sob o capitalismo, conforme se lê em Na Pior em Paris e Londres . Mais do que isso, Orwell estava atento aos elos entre as várias espécies de tirania, como elas se entrelaçavam e podiam se sustentar mutuamente: a penúria indiana, por exemplo, tinha tudo a ver com a pujança inglesa, e vice-versa. Soa atual?
É por isso e por outras razões que penso em Orwell várias vezes ao dia, em geral na forma de uma interrogação. Não me pergunto o que ele faria ou o que diria; seus textos estão aí, basta relê-los e ficar atento à coerência para extrair conclusões. Penso em Orwell, mas penso em especial nas suas circunstâncias: que escritor ele teria sido em outra época? Se tivesse vivido tempos menos turbulentos, menos cindidos, menos incendiários, ele teria escrito de outra forma? Penso em Orwell e percebo que sua figura embaralha essas perguntas e as deixa de lado, abrindo espaço para a que realmente interessa: como viver e agir à altura dos desafios do tempo em que nascemos? Com que princípios, com que ferramentas?
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