sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Nazismo e liberdade de expressão

Os limites da liberdade de expressão são um tema ainda candente em um país que só se libertou da censura há menos de três décadas, e um desdobramento específico deste debate diz respeito a manifestações de cunho racista. O tema voltou à tona depois que Minha luta, de Adolf Hitler, caiu em domínio público, podendo ser publicado por qualquer editora. Para uma análise clara, em primeiro lugar é preciso examinar como o ordenamento jurídico brasileiro trata de crimes relacionados ao preconceito racial.

Edição crítica lançada recentemente
na Alemanha em dois volumes
Três meses após a promulgação da Constituição Federal, passou a vigorar no país a Lei 7.716/1989, que pune as condutas decorrentes de preconceito racial ou de cor. A lei disciplinou melhor o crime de praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação ou por publicações de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor ou procedência nacional, com pena de dois a cinco anos. A mesma lei pune também quem fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos ou propaganda que usem a cruz suástica ou gamada para divulgação do nazismo.

Fica claro, portanto, que a liberdade de expressão não é absoluta. Embora essencial na construção e desenvolvimento de uma sociedade democrática, ela pode ser restringida em determinados casos, quando colide com outros direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. Além das questões envolvendo preconceito racial ou de nacionalidade, a própria Constituição admite outras hipóteses em que a liberdade de expressão pode ser limitada, como nos casos de conflito com direitos personalíssimos (honra e intimidade), em casos de condutas tipificadas como crimes (apologia), de proteção do sentimento religioso e de proteção do menor.

Na quarta-feira, dia 3, o Juízo da 33.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro suspendeu a comercialização da tradução em português de Minha luta. Desde que caiu em domínio público no mês passado, algumas editoras passaram a preparar edições da obra, em formato físico e virtual. O Juízo estabeleceu multa de R$ 5 mil por exemplar para quem descumprir a ordem.

A decisão violaria a liberdade de expressão? A resposta depende do que, exatamente, está sendo publicado. O texto de Minha luta, em si, é preconceituoso e racista, disso não há dúvida. No livro, Hitler chega ao cúmulo de afirmar que, se no início da Primeira Guerra Mundial a Alemanha tivesse submetido 12 mil ou 15 mil judeus ao gás asfixiante, não teria ocorrido o sacrifício de milhões de alemães na linha de frente. É uma retórica tão primária quanto brutalmente agressiva. Analisada à luz do direito brasileiro, a obra viola claramente a Lei 7.716/1989, cujos fundamentos constitucionais são os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Portanto, a divulgação ou comercialização do livro é um abuso da liberdade de expressão, violando os direitos de igualdade e dignidade da pessoa. No caso em concreto, a liberdade de expressão cede espaço para outros direitos que precisam ser necessariamente protegidos.

A avaliação que acabamos de fazer se prende ao conteúdo do livro propriamente dito. Mas vozes ponderadas têm defendido que Minha luta seja publicado em uma edição crítica, com notas e outros recursos que desconstruam o conjunto de falácias apresentadas na obra. Certamente seria necessário um trabalho de grande envergadura intelectual para, passo a passo, demonstrar as centenas de incongruências e deturpações presentes no livro. Alguns editores já se propuseram a levar adiante essa tarefa, inclusive na Alemanha, e quem tiver sucesso nessa iniciativa estará, no fundo, prestando um grande serviço no combate ao racismo. Uma edição brasileira preparada nestes termos não terá como ser nem descartada, nem liberada de imediato: ela exigirá do Poder Judiciário uma análise aprofundada que, no fim, contribuirá para melhorar nosso entendimento sobre os limites da liberdade de expressão.

Editorial - Gazeta do Povo

Nenhum comentário:

Postar um comentário