sábado, 21 de dezembro de 2024

A sociedade e Rubens Paiva

A prisão do general Braga Netto é o mais visível sinal de que os militares no Brasil se envolveram profundamente na política nacional. A profusão de golpes e contragolpes ocorridos ao longo do século 20 no país é um claro indicativo de que a República, criada por militares, não convive bem com civis. Os paisanos terminam sendo atropelados pelas convicções ideológicas dos fardados. Foi assim em 1964, para ficar em apenas um exemplo, e radicalizado em 1968, quando o regime mostrou sua face autoritária com a decretação do Ato Institucional nº 5, que censurou a imprensa, suspendeu o habeas corpus, acabou com o direito de reunião, fechou o Congresso, cassou parlamentares e abriu as portas da repressão política. Centenas de brasileiros foram presos, torturados e mortos pelas forças de segurança.

A Constituinte de 1988, resultado da grande mobilização popular iniciada na discussão da emenda Dante de Oliveira (Diretas já), teve por objetivo redemocratizar o país. Acabar com a prevalência dos militares nos assuntos políticos. O Brasil não enfrenta guerras desde o conflito com o Paraguai, ocorrido na metade do século 19, suas forças armadas são tecnicamente desatualizadas, não possuem equipamentos modernos e carecem de comunicação de geração mais recente. Utilizam satélites estrangeiros para estabelecer contatos dentro do vasto território nacional. Resultado dessa inércia, as Forças Armadas se transformaram em partidos políticos fardados e perderam eficiência operacional.


Mas um setor se manteve atualizado e eficiente ao longo dos últimos anos. Os serviços de repressão, de inteligência e de investigação sigilosa continuaram a funcionar normalmente mesmo depois da queda dos governos militares. O presidente Fernando Collor acabou com o Serviço Nacional de Informações (SNI), e todos dados contidos nos seus arquivos foram entregues a pesquisadores que se interessavam pelo assunto. Porém, os serviços secretos militares, de cada uma das três armas, continuaram a funcionar, pesquisar e guardar seus segredos. Seus informantes persistiram ativos. Eles comandaram a pressão contra a abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel e avançada pelo presidente Figueiredo, que, aliás, assinou o decreto da anistia política, que é, até hoje, tema de polêmica.

O governo Bolsonaro resgatou essa turma dos serviços de inteligência que, na verdade, nunca se dissolveu. Continuou a existir de maneira mais ou menos clandestina dentro das organizações militares. Os torturadores mantiveram situações excepcionais, como a Casa da Morte, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, onde os prisioneiros eram torturados, mortos e depois esquartejados. Seus corpos aos pedaços, sem as falanges dos dedos nem as arcadas dentárias, eram jogados em rios, lagos e em alto mar. A questão da anistia é, portanto, mais profunda, porque perdoou torturadores que, por sua vez, não admitem que os chamados terroristas tenham sido abrangidos pela iniciativa.

Quem quiser ter mais e melhores informações sobre a ação comunista no Brasil e a violenta repressão realizada pelos militares precisa ler o impressionante relato contido no livro cujo título é Cachorros, a história do maior espião dos serviços secretos militares e a repressão aos comunistas até a Nova República, de Marcelo Godoy, editora Alameda. É um trabalho de fôlego, que consumiu 10 anos de pesquisa para que o autor chegasse às 548 páginas do livro, que recebeu vários prêmios.

Esse grupo de militares, que envolve as mais diversas patentes, se inspirou na guerra da Argélia, a guerrilha urbana que foi violentamente reprimida pelo governo francês. E também aprendeu com as ideias de Antonio Gramsci (Cadernos do cárcere), que propôs a revolução comunista por meio de tomada de poder nas universidades, no serviço público, no setor artístico, na imprensa, com objetivo de dominar a opinião pública. Com base nessa possibilidade, um grupo de militares brasileiros torturou e matou à farta.

Esse grupo, que foi distinguido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, proporcionou o vexame de conspirar contra a democracia brasileira e, no momento mais insano, planejar o assassinato do presidente da República, do vice-presidente e do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Tudo isso de maneira quase ingênua, mal traçada, e, pior, com o apoio de pessoal especializado do Exército. E com base no velho argumento anticomunista, quando o comunismo já saiu da vida e entrou para os livros de história.

É oportuno lembrar Ulysses Guimarães, no seu histórico discurso ao final da Constituinte: "Nosso desejo é o da Nação: que este plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte (....) O Estado autoritário prendeu e exilou, a sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram".

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