A ministra Marina Silva, em entrevista à Globo News no dia 3, ao falar da tragédia do Rio Grande Sul (RS), ilustrou a tese de Dawkins. Ela disse mais ou menos o seguinte: a humanidade levou séculos a transformar a natureza em dinheiro. Agora precisa gastar mais dinheiro para ajudar a natureza a superar obstáculos.
Desde junho de 2022, com o banal assassinato de Dom Phillips, jornalista britânico, e do indigenista Bruno Pereira, comecei a pensar no valor da vida. O assunto voltou ao radar em agosto passado, com o assassinato da dona Bernadete Pacífico, líder quilombola, e, agora, com a catástrofe do RS. Não parece, mas a banalização da vida, como numa roleta russa, é um dos gatilhos de eventos climáticos extremos. E a roleta russa contra a natureza é uma aposta perdedora.
O valor da vida foi tema do doutorado de Richard Thaler, Nobel da Economia em 2017. Antes dele, Thomas Schelling, Nobel da Economia em 2005, num célebre e provocador artigo de 1968 (“The life you save may be your own”), enfatizou que o empenho em salvar vidas é fortemente influenciado por duas características comportamentais: da “vida identificada” - como a de um filho baleado em assalto - e da “vida estatística” - como as milhares de mortes no trânsito.
Os jornais têm dado merecido destaque à tragédia das enchentes no RS. Mas por que o desastre assumiu tamanha proporção? A resposta mais contundente está na própria fala da ministra Marina, já sublinhada no início deste artigo. Mas isso ainda não explica por que jogamos dados com a natureza.
Veja o caso de uma atividade de risco não desprezível. Suponha ser de 5 em 1.000 (0,5%) a probabilidade de um acidente fatal para alguém que, a serpentear no trânsito numa pequena moto, faz entregas em São Paulo. Quanto vale a vida dessa pessoa? Uma conclusão é imediata: essas pessoas se arriscam uma barbaridade e se dispõem a ganhar muito pouco.
Coisa semelhante ocorre com as famílias que vivem no Vale do Taquari, no RS, onde também viveram seus pais e avós. E às vezes pagam muito para permanecer nesse ambiente de risco. Numa espécie de autoengano, pensam que estão seguras.
A explicação é muito mais psicológica que econômica ou mesmo filosófica. Na falta de opção, o entregador sente como perda os R$ 20/hora que deixa de receber se não executar o trabalho. E a aversão a perdas é maior que a aversão ao risco, o que o torna mais propenso a enfrentar situações perigosas.
Isso também pode ser explicado pelo efeito dotação - quando é valorizado em excesso o que se imagina ser um bem. Para muitos, viver no Vale do Taquari, a origem de seus antepassados, é um bem valioso. Abrir mão desse “bem” tem um razoável custo, que, veja só, também vai na direção de desvalorizar a vida.
Aqui entraria a política pública, para minimizar os efeitos dessa propensão ao risco. Admita ser também de 0,5% a probabilidade de roubos com mortes em residências no bairro da Tristeza, região de classe média alta na orla do Guaíba. Mesmo com baixa possibilidade de latrocínio, muitos buscam proteção para suas casas e famílias. Instalam sofisticadas fechaduras e outras barreiras. A família é uma vida identificada.
Admita que é novamente 0,5% a possibilidade de, a cada 80 anos, ser superada a cheia do Guaíba de 1941. Como se comportaria o responsável pelos diques e bombas d’água? Nesse cenário, as autoridades percebem os eventuais danos, mesmo que fatais, apenas como estatísticas, isto é, como vidas estatísticas (como a dos entregadores nas ruas das grandes cidades).
O mais grave ocorre quando a autoridade despreza os alertas da ciência, incentiva o relaxamento da legislação e fecha os olhos para diferentes crimes ambientais. São decisões que, não tenha dúvida, tornam a vida mais vulnerável a eventos climáticos severos, como o de agora no RS. A autoridade, então, põe mais balas na arma com que faz roleta russa com a natureza.
As mudanças climáticas são, por tudo isso, consequências de uma arquitetura de escolhas, sobretudo políticas, nem um pouco racionais. E isso tem transformado tais escolhas numa típica tragédia dos comuns, quando decisões individuais prejudicam o bem-estar da coletividade. O caso concreto são as décadas sem investimentos, manutenção e atualização do sistema de controle de cheias de Porto Alegre.
Corre-se agora para gastar bilhões de reais em medidas de contenção dos danos das escolhas estúpidas. Ok. Mas são negligenciadas as ações para evitar a estupidez. Foi iniciada a maratona para construir infraestruturas que minimizam os efeitos das enchentes, mas não para evitar os recordes de chuva nos vales do Taquari e do Itajaí, Região Serrana do Rio, Litoral Norte de São Paulo ou na Grande Recife.
A notícia relevante não deveria ser a disposição dos governos em gastar bilhões para conter os efeitos dos danos já provocados, que até soará como propaganda eleitoral, mas sim o que não fizeram para evitar a causa dos danos.
A humanidade jogou dados com a natureza. E perdeu. Apostou contra a natureza, quando jogava contra si própria. A humanidade pôs mais balas no revólver da insensatez, quando deveria retirá-las. Agora, ficou muito mais caro retirar uma bala, depois outra e outra. E esse custo é medido pela sucessão de eventos como em 2023, com recordes de calor, e, em 2024, com inéditos 250 mm de chuva em Dubai num só dia, 300 mm em Nairóbi em sete dias e mais de 500 mm no Vale do Taquari em quatro dias, o gatilho para a tragédia gaúcha.
E o revólver da insensatez segue carregado.
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