sábado, 18 de maio de 2024

Israel não chora mais

Khirbet Khizeh, de S. Yizhar, a história ficcional da expulsão dos palestinos de seu povoado pelas forças do proto-Estado judeu, na guerra de 1948, foi publicado no ano seguinte. "Atirar –e, depois, chorar": o remorso do narrador, um jovem soldado que cumpre a ordem de remoção dos habitantes, pertence ao mito nacional de Israel. Hoje, porém, sob um governo controlado por extremistas, Israel não chora mais: atira e, depois, tortura.

Tortura não é novidade na Terra Santa. Agentes israelenses torturam prisioneiros palestinos. Policiais da Autoridade Palestina torturam prisioneiros do Hamas e vice-versa, na Cisjordânia e em Gaza. O Hamas cometeu abusos sexuais contra reféns israelenses. A novidade, porém, está na motivação.


Uma investigação da CNN, baseada em fotos e depoimentos de funcionários israelenses anônimos, lançou luz sobre o centro de detenção estabelecido na base militar de Sde Teiman. É uma Guantánamo no deserto do Neguev. Os prisioneiros, manietados em ambientes contaminados por fezes e ratos, impedidos de se locomover durante dias inteiros e proibidos de falar, sofrem abusos e sevícias intermitentes. Direito humanitário? Convenção da ONU contra Tortura? Nada disso existe naquele inferno.

A tese da bomba-relógio, um cenário que só aparece no cinema, forma a base lógica da prática estatal da tortura. Contudo, não funciona em Sde Teiman: no cárcere para supostos combatentes de campo, não há dirigentes do Hamas ou da Jihad Islâmica que possam guardar segredos sensíveis. Tortura-se, ali, por vingança.

O soldado do romance de Yizhar cumpre ordens terríveis. Sua disciplina resignada sintetiza o conceito que fabricou Israel: um país seguro para judeus expulsos de suas pátrias originais por meio século de perseguições que culminaram no Holocausto. A Nakba palestina emergiu de uma guerra, não de uma deliberação genocida. Se perdessem, os judeus é que seriam expulsos, conforme prometiam os líderes das forças árabes. Mas o soldado chora porque reconhece a humanidade de suas vítimas.

O escritor Amos Oz, autor do ensaio "Como curar um fanático", inflexível defensor da solução de dois Estados, combateu nas guerras do Sinai, dos Seis Dias e do Yom Kippur. Ele captou o dilema moral inscrito no "atirar –e, depois, chorar": "Fiz muitas coisas que lamento ter sido obrigado a fazer, mas nenhuma de que me envergonhe". O antissemita de plantão (disfarçado ou não no manto conveniente do "antissionismo") dirá que são lágrimas hipócritas –e, como sempre, estará errado.

Khirbet Khizeh entrou no currículo escolar oficial judeu em 1964, tornou-se best-seller e inspirou uma série de TV. Numa palestra a estudantes, ninguém menos que Moshe Dayan, ministro da Defesa na Guerra dos Seis Dias, recitou cada um dos nomes dos povoados palestinos destruídos e enterrados sob povoados israelenses. A mais completa descrição da extinção da paisagem material e simbólica palestina e sua substituição pela paisagem israelense deve-se não a um árabe-palestino, mas a um judeu israelense: Sacred Landscape, de Meron Benvenisti, que foi vice-prefeito de Jerusalém.

As lágrimas, porém, secaram. As provas estão em Sde Teiman e na guerra de punição coletiva conduzida em Gaza, duas faces de uma mesma moeda, coisas que envergonhariam Oz, se ele estivesse vivo para contemplá-las.

Haverá, sempre, um propagandista disponível para racionalizar os massacres de civis e as torturas de prisioneiros, atribuindo-os ao trauma criado pela barbárie do 7 de outubro. A tentativa de, por essa via, justificar as ações estatais israelenses, é historicamente falsa. O "atirar –e, depois, torturar" reflete a natureza do governo de Netanyahu e deita raízes na prolongada ocupação, que corrompe a alma do Estado judeu. Os judeus israelenses precisam da paz em dois Estados tanto quanto os árabes palestinos.

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