Estamos todos chocados com a profusão de conteúdos desinformativos sobre a atuação do governo na crise humanitária no Rio Grande do Sul: informações distorcidas, exageradas, retiradas de contexto ou simplesmente falsas infestaram as mídias sociais e os aplicativos de mensagens. Segundo essas mensagens, os governos federal (PT) e estadual (PSDB) não apenas não fazem o necessário, como criam ativamente obstáculos para o auxílio às vítimas das cheias, retendo doações nos centros de distribuição e impondo entraves burocráticos à doação de remédios, à operação de barcos e jet-skis ou à chegada de caminhões com alimentos. Ao povo vítima das cheias, restaria apenas recorrer aos cidadãos brasileiros que lutam como podem para contornar os obstáculos criados pelos governos (“de esquerda”). Dados colhidos nas mídias sociais e em pesquisas de opinião sugerem que esse discurso pegou.
De onde partiram essas mensagens e como podemos lutar contra seus efeitos deletérios, que desestimulam doações e semeiam a desconfiança nos agentes públicos que promovem os resgates?
A resposta mais comum é que se trata de uma campanha orquestrada por políticos e influenciadores bolsonaristas para desacreditar os governos de Eduardo Leite e Lula e que a maneira adequada de se contrapor a essa campanha irresponsável e canalha é produzir desmentidos rigorosos, veiculados na mídia de massa.
Não está completamente errado, mas há um equívoco fundamental nessa abordagem. Ele consiste em supor que a opinião da população é puramente racional e indutiva, foi forjada a partir dos fatos apresentados: de tanto ver informações falsas ou distorcidas de que os governos atrapalham o socorro às vítimas, o cidadão adere ao discurso antigovernamental.
Há algumas décadas sabemos que não é assim que se formam opiniões e atitudes sobre temas carregados de afeto ou ligados a identidades políticas. Não formamos convicção sobre esses assuntos a partir dos fatos, mas, ao contrário, frequentemente selecionamos os fatos que respaldam as convicções que já temos. É o mecanismo conhecido como “viés de confirmação”.
Nenhuma campanha política organizada precisa convencer os brasileiros de que os governos não fazem o suficiente. Esse sentimento, geralmente justificado, certamente aumentou quando uma catástrofe de grandes proporções exigiu ainda mais ações de um governo que pouco faz ou pouco consegue fazer. É bastante razoável supor que, antes de qualquer exposição à desinformação no WhatsApp, a população já estava insatisfeita e irritada com a morosidade e a ineficiência dos governos.
Foi para respaldar essa insatisfação e indignação com os governos que os boatos se disseminaram. Não foram os fatos que formaram as convicções; foram as convicções que convocaram os fatos. E, uma vez convocados, esses fatos foram produzidos. Parte deles pela confusão e incerteza da situação, parte pela raiva do cidadão comum indignado, parte pela militância organizada bolsonarista.
Um fenômeno social dessa dimensão não pode ser inventado num gabinete de marqueteiro. Se houve uma campanha organizada pelos bolsonaristas, ela apenas ajudou a dar orientação e volume a uma disposição social que já estava lá, latente.
Por isso não devemos chegar para o povo indignado com a ineficiência da resposta do Estado e petulantemente dizer:
— Sua convicção é baseada em fake news.
Quando dizemos isso, imaginamos contestar os fatos que embasaram a convicção, mas, na realidade, apenas deslegitimamos a dor e a indignação justa. A reação do interlocutor não será mudar de ideia. Será rejeitar e afastar quem lhe desrespeita.
É preciso reconhecer a legitimidade dessa revolta e discutir com muita consideração as evidências que ela escolheu adotar. Esse respeito é devido não à liderança bolsonarista que dissemina a desinformação, mas às pessoas que a adotaram.
Não precisamos deixar de contestar a desinformação, mas precisamos contestar com postura diferente. A que temos adotado — de portadores de uma verdade rigorosamente estabelecida com critérios científicos e jornalísticos — não é apenas tremendamente ineficaz. É também arrogante, presunçosa e desrespeitosa.
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