sexta-feira, 25 de março de 2022

O que a medalha indigenista de Bolsonaro revela

O cara pálida que ocupa a Presidência da República teve seu momento de esplendor plumário em cerimônia no Ministério da Justiça, quando lhe foi entregue (e a membros do seu governo) a Medalha do Mérito Indigenista. O governo condecorou-se.

A cerimônia, no entanto, teve aspectos antropologicamente interessantes e reveladores, não só por ser uma usurpação cultural da imagem do índio por brancos anti-indigenistas. Faziam-se de índios, que não são nem sabem o que são. Mas também os teve nos detalhes das fotos oficiais que chegaram aos jornais.

As revelações vêm do inesperado. A começar da fotografia centralizada pela figura secundária da criança indígena que o presidente, de cocar na cabeça, segurava no colo. A criança tenta tomar distância para ver melhor a cara de quem o carrega. A direção de seu olhar e sua expressão são de “O que é isto?!”.

O ponto de impacto da foto, o que captura imediatamente o olhar de quem a vê, não é um presidente de cocar, mas o olhar de espanto da criança. Aquele olhar de inocente que no afastamento espontâneo afasta-se do propósito manipulativo da foto. O sociólogo Henri Lefebvre interpreta uma ocorrência dessas como crítica na própria ação. Não é preciso dizer nada nem é preciso querer para que a ação se construa a si mesma como ação crítica.

Na literatura sobre a fotografia como modalidade de conhecimento, “punctum” é como Roland Barthes denomina o inesperado na imagem fotográfica, a que atrai o olhar de quem a vê para o ponto que é diverso do ponto de referência do fotógrafo. Fotógrafos profissionais, em fotos não posadas, escolhem o que Henri Cartier-Bresson define como instante decisivo, aquele que faz da foto uma obra autoral.

Como neste caso: o fotógrafo que a fez provavelmente quis fazer uma foto idílica do governante, a da centralidade de um pai da pátria, que governa acima das diferenças culturais e sociais. O olhar de espanto da criança, porém, “roubou-lhe” a fotografia. O ver da criança é o “punctum” da foto, o inesperado invasivo, a mediação que diz o que Bolsonaro é, e não o que o fotógrafo quis fotografar e com sua fotografia dizer.

As consequências antibolsonaristas da foto no imaginário social constituem o que Edgard Morin define como efeito bumerangue da comunicação imprópria. O espanto da criança chama a atenção de todos para o impróprio do cocar na cabeça imprópria, na cerimônia imprópria, no governo impróprio.

O impróprio, isto é, o fora do lugar da pessoa que justifica a imagem (e fora da cabeça de quem tem direito a cingir o significativo diadema plumário), está na extensa lista de manifestações de Jair Bolsonaro contra as populações indígenas e seus direitos reconhecidos desde o período colonial. Como o direito ao respectivo território e à respectiva diferença cultural, na língua e nos costumes.

A jovem líder indígena Txai Suruí apresenta, a propósito da cerimônia, em artigo na “Folha de S. Paulo”, uma lista de ações anti-indigenistas do presidente e de membros do governo também condecorados na ocasião.

São demonstrações de que Bolsonaro ignora completamente o que é o Brasil oposto ao do nós bolsonarista, um país marcado por elenco extenso de diferenças linguísticas. São 274 as línguas faladas por mais de 800 mil brasileiros das diferentes nações indígenas que têm direito histórico e constitucional à sua diferença e ao seu território ancestral.

Na fala presidencial, no Ministério da Justiça, Bolsonaro declarou querer que os povos indígenas se sintam “como nós” e façam em suas terras “exatamente o que fazemos com as nossas”. A verdade é a de que os indígenas brasileiros autênticos, em sua maioria, não querem ser como nós. Querem ser como eles são e ainda podem ser.

Em grande número de grupos indígenas, tem havido movimentos, nos últimos 50 anos ou mais, pela tomada de elementos da cultura branca para ampliar e fortalecer as culturas indígenas. Jovens estão sendo mandados às universidades brasileiras nesse sentido. Portanto, cabe perguntar a Bolsonaro e coadjuvantes: “Nós, quem, cara pálida?”. Nossos povos indígenas são o nosso nós. É uma questão antropológica que não se resolve na lógica redutiva da cultura de quartel.

A expressão jocosa teria surgido no começo dos anos 60, baseada nas histórias americanas sobre o Zorro, dos anos 1930, que aqui chegaram como histórias em quadrinhos e filmes. Zorro era o Lone Ranger, o cavaleiro solitário, um justiceiro, sempre acompanhado de um índio servil conhecido como Tonto. Em certa ocasião, ambos foram cercados por índios hostis. Não havia saída para os dois. Zorro disse a Tonto: “Nós estamos perdidos, Tonto”. O índio fez que não o conhecia e respondeu: “Nós, quem, cara pálida?”.

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