domingo, 1 de março de 2020

Um país que precisa de memória

Não basta ter ódio e nojo da ditadura, como expressou Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição, em 1988. É preciso ter presente na memória coletiva os males que um regime totalitário, intransigente e macabro gera nas pessoas, nas famílias, nas coletividades, nos bairros, nas cidades e nas nações. É preciso que os mais jovens, os que não viveram sob a ditadura, tenham por ela o mesmo ódio e o mesmo nojo. É preciso que a memória seja viva e tangível. Que se possa tocar nas feridas para saber como elas doem.

No Brasil, parcela importante da população não consegue enxergar o passado porque é pequena a exposição de quem foram e o que fizeram os facínoras que, em nome dos ditadores, perseguiam, prendiam ilegalmente, sequestravam, torturavam, matavam e faziam desaparecer pessoas. Sem isso na cabeça, manifestantes pró-Bolsonaro vão para as ruas e pedem a volta da ditadura. Como farão no próximo dia 15. Desprezam os Poderes Legislativo e Judiciário e acreditam que a mão armada de fuzil e porrete é capaz de colocar ordem na casa.

A História prova o contrário. Além das barbaridades que cometem, e no Brasil não foi diferente, regimes autoritários erram muito mais justamente por não admitirem o contraditório, não se abrirem para o pluralismo de ideias e inovações que verdadeiramente mudam as coisas para melhor. Fora alguns bons livros e documentos históricos importantes como o “Brasil: Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, pouco resta para escancarar para as pessoas o que foi a ditadura brasileira.

O Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em janeiro de 2009, é o único museu brasileiro que mostra como se operava a violência do Estado contra seus cidadãos. Ele está instalado numa parte do prédio em que funcionou o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), principal centro de tortura do estado, e que hoje também abriga a Pinacoteca. Situado no Parque da Luz, em pleno coração de São Paulo, o temido e famigerado Dops operou barbaridades desde a instalação da ditadura brasileira, em abril de 1964, até a sua extinção, em março de 1983.

Em 2015, a Argentina abriu um museu para expor de maneira organizada e de modo permanente como foi brutal e sanguinária a sua ditadura militar. O Museu Sítio de Memória foi montado no Casino de Oficiales de la Escuela de Mecánica de la Armada (Esma), mesmo local onde funcionou por anos o maior centro clandestino de detenção, tortura e extermínio de inimigos políticos do regime. Naquele conjunto militar plantado dentro de Buenos Aires, a 20 minutos de Palermo, mais de 5 mil argentinos foram brutalizados. A maioria morreu ou desapareceu.

Esses museus são mobilizadores e deveriam ser abertos em todas as cidades, em todos os quartéis e delegacias onde cidadãos foram detidos ilegalmente pelo aparelho do Estado, torturados e assassinados. Apalpar a História, tê-la sempre próxima, este é o melhor caminho para não se esquecer das atrocidades que nossos irmãos mais velhos sofreram enquanto a Justiça e o Legislativo permaneciam amordaçados ou fechados. Se você conhecer alguém que está pensando em vestir a camisa da seleção e ir a Copacabana no dia 15, tente fazê-lo antes imaginar como estarão seus filhos e seus netos no futuro se de fato sua mobilização conseguir fechar os parlamentos e os tribunais brasileiros.

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