Assim, restringe-se ou mesmo se elimina a liberdade de imprensa; perseguem-se e até se encarceram opositores; combate-se a independência dos centros de produção intelectual autônoma - como as universidades e as artes; deslegitima-se a oposição, apontando-lhe como formada por traidores da pátria - não existiria, como no Reino Unido, uma oposição “de” Sua Majestade, mas apenas “a” Sua Majestade. O modus operandi da democracia iliberal passa por sufocar as divergências e subalternizar as minorias não alinhadas à linha dominante, personificada pelo líder máximo e amparada plebiscitariamente no apoio de uma maioria baseada em critérios identitários - como valores, etnia, religião ou um conjunto de todas essas coisas.
O caráter “democrático” das democracias iliberais residiria unicamente em seu plebiscitarismo, na expressão da vontade majoritária em eleições e outras votações nas quais a competição política é prejudicada porque a oposição é sabotada ou reprimida, bem como o debate público aberto é substituído pelo oficialismo dos discursos governamentais e pela retórica voltada a deslegitimar discordâncias. Dessa perspectiva, jornalistas são categoria em extinção e devotada a produzir “fake news”, universidades são lugares de balbúrdia e ideologização, educadores não alinhados são doutrinadores pervertidos, artistas dissidentes são sórdidos e mentirosos, opositores são bandidos e traidores.
Diferentemente de suas antecessoras da antiguidade clássica, as democracias do século XX se notabilizaram por serem, justamente, liberais. Não houve uma única democracia passível de ser chamada por tal nome que não tenha contido o elemento liberal - ou seja, competitivo e limitador do poder. Em sua célebre obra, “Poliarquia”, Robert Dahl observou que os regimes democráticos realmente existentes (chamados por ele de poliarquias), eram a combinação de participação política ampliada (direito ao voto e à elegibilidade) e competição política plural.
O processo de democratização contemporâneo, portanto, significaria avançar em dois eixos de um plano cartesiano: o da participação/inclusão (com contingentes cada vez maiores da população detentores de plenos direitos políticos, tendendo à universalização) e o da liberalização (com uma competição política cada vez mais intensa e diversa). A ideia de poliarquia, portanto, é justamente essa: a do poder plural. Logo, o pluralismo e a competição que dele decorre são características inescapáveis do regime democrático que só é democrático sendo liberal.
Daí se depreende que a ideia de democracia iliberal é um oxímoro, ou seja, uma contradição nos termos. A expressão foi cunhada originalmente por Fareed Zakaria para descrever sinteticamente esses regimes em que competição e pluralismo são suprimidos, dando lugar apenas ao apoio majoritário, seja nas ruas, seja nas urnas. Antes dessa formulação de Zakaria, tecida por ele criticamente a esse tipo de regime, o jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt, já concebia a democracia de forma antipluralista - porém, para defender esse formato. Dizia ele: “Em toda a verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado igualmente, mas que, como consequência inevitável, o não igual seja tratado de modo diferente.Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar, ter homogeneidade e, em segundo - se for preciso - eliminar e aniquilar o heterogêneo”.
E quem seriam os não iguais, os heterogêneos? Ora, os opositores, os dissidentes, os infiéis, os seguidores de modos de vida dissonantes daqueles da maioria, os críticos à linha dominante. A eles o que cabe? A eliminação e a aniquilação, como apontava Schmitt. Foi o que, durante o Terceiro Reich, se abateu sobre judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e todo tipo “heterogêneo”. É o que pregam hoje os “democratas iliberais” como Orbán, Putin, Erdogan, Maduro e Bolsonaro.
Além dos ataques repetidos de seu governo à imprensa, à comunidade científica, aos professores e aos artistas - estes desferidos preferencialmente por seu lugar-tenente na área cultural, Roberto Alvim - Bolsonaro também deixa claro, repetidas vezes, o viés schmittiano (ainda que provavelmente sem tê-lo lido) de sua concepção de democracia. Disse ele em 2017, na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Contudo, para não irmos tão longe no tempo, tomemos uma declaração de dezembro último, diante do Alvorada: “Não tem essa história de branco e negro. Somos iguais e ponto final. Cultura é para maioria, não é para minoria, não”. Ou pouco antes, em novembro, num culto evangélico em Manaus: “Se nós somos a maioria, por que cedemos à minoria? O senhor é professor de Direito Constitucional, mas eu entendo que a lei tem que ser feita para atender às maiorias e não às minorias. Respeitamos as minorias, mas nós, a maioria, o povo é que deve conduzir o destino de uma nação”.
Equiparando povo à maioria, Bolsonaro exclui os grupos minoritários da condição de membros desse povo, vedando-lhe a legitimidade de participar da condução dos destinos da nação. O respeito às minorias aí enunciado torna-se, portanto, mera escusa retórica: respeitamos as minorias, desde que caladas e subalternas. Essa é a própria negação do pluralismo, que não respeita apenas minorias caladas e submissas, mas considera legítimos também seus pleitos e é capaz de conviver com a diversidade.Cláudio Gonçalves Couto
Nenhum comentário:
Postar um comentário