Nenhum deles apoiou a ditadura: tudo não passou de patrulha ideológica. À Elis, por cantar o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército, em 1972; ao Drummond e à Clarice, por supostamente serem “alienados” (uma espécie de “isentões” da época).
De alienada ou isentona Clarice não tinha nada: manifestou-se contra o arbítrio e esteve na linha de frente da Passeata dos Cem Mil. Elis já havia gravado “Dois na bossa”(com Jair Rodrigues, e repleto de canções “engajadas”); mais tarde não só participou de shows para arrecadar dinheiro para o Fundo da Greve do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo como deu voz a “O bêbado e a equilibrista”, hino informal da campanha pela anistia.
Nessa mesma época, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Glauber Rocha também foram tachados de “alienados” por acreditar na abertura democrática, mas não chegaram a ir para a cova.
Henfil se retratou parcialmente: “Eu só me arrependo de ter enterrado duas pessoas — Clarice Lispector e Elis Regina. (…) Eu não percebi o peso da minha mão.” Talvez não tenha tido tempo de tornar a mão mais leve e se redimir também pelo Drummond, o autor da “Rosa do povo” — livro anterior à ditadura e que animou muita gente na luta pela redemocratização.
O cartunista que decretava mortos em vida os artistas e intelectuais que ousassem não ser assumidamente de esquerda acabou por sepultar a si mesmo (ainda que por outros motivos) nessa necrópole virtual administrada pelo Cabôco Mamadô — suspeitíssima entidade que já havia aspirado a massa encefálica de Marília Pêra, Paulo Gracindo, Nelson Rodrigues, Bibi Ferreira, Rachel de Queiroz e outros tantos supostos simpatizantes do governo.
Na biografia desses enterrados sob sete palmos de desprezo, a passagem pelo Cemitério dos Mortos-Vivos é uma nota de rodapé. Diz muito mais a respeito daquele momento de radicalização que sobre a importância de cada um na cultura brasileira, incluindo o genial Henfil (e sua mão pesada quando o assunto envolvia política).
“Esse é tempo de partido / tempo de homens partidos”, escreveu Drummond.
“Os dias eram assim”, cantou Elis.
Os dias agora são outros, mas a patrulha é a mesma. É como estar reféns de um “feitiço do tempo”, o tempo de homens partidos num país dividido. Até o cemitério, que se imaginava fechado para todo o sempre, foi ressuscitado pelo filho do seu criador, com as exéquias de Nana Caymmi.
Nana (como Roger, do Ultraje, ocupante do jazigo ao lado), não defende ditadura ou barbárie. Apenas votou no candidato de sua preferência, como se faz em qualquer democracia. E não tem papas na língua, nem medo de desafinar o coro dos que acham que artista bom é artista de esquerda.
Em condições totalmente diversas das de 50 anos atrás, a persistência das patrulhas mostra como a polarização acaba por nos tornar bipolares — ou, pelo menos, desconexos. E dá-lhe querer combater o (suposto) fascismo com métodos fascistas, defender a liberdade de expressão na base do cala-boca. Achar que “nós” somos o lado certo da História, e “eles”, a escória. Que nossas ilegalidades são mais legais. Que nossa alma é a mais honesta; nossa causa, a mais justa, e que isso nos coloca acima da lei. A “nós”, o poder; a “eles”, o cemitério. Se Deus (ou seu equivalente humano) está conosco, quem “eles” acham que são para estar contra “nós”?
Não vamos chegar a lugar nenhum enquanto levarmos a sério o que Millôr disse com “democracia é quando eu mando em você; ditadura é quando você manda em mim”. E o artista, como qualquer cidadão, não puder escrever sobre o que bem entender, apoiar quem quiser, falar o que lhe der na telha, sem ir direto para o Céu ou para o Inferno.
O cubo, que é um sólido geométrico relativamente simples, tem seis lados. O Brasil, com toda a sua complexidade, parece condenado a ter só dois.
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