terça-feira, 30 de abril de 2019

Gente fora do mapa


Assina, Bolsonaro!

Aconteceu num sábado no Rio, ano passado, uma semana antes do segundo turno eleitoral. O candidato Jair Bolsonaro anunciou uma de suas “primeiras medidas”, promessa repetida desde o início da campanha: “O que eu pretendo, tenho conversado com o Parlamento também, é fazer uma excelente reforma política para acabar com o instituto da reeleição, que no caso começa comigo, se eu for eleito.”

Oito dias depois, estava eleito. Perguntaram-lhe sobre a reeleição e ele fez a primeira ressalva: “A possibilidade de não concorrer à reeleição é se conseguir fazer um acordo para aprovar a reforma política. Não é apenas ‘eu não vou concorrer à reeleição.’”

Já completou 120 dias no poder mas, até agora, ninguém viu ou sabe o destino da promessa, uma das “primeiras medidas” de governo.

Por gestos e palavras, sugere ter se rendido à síndrome do Planalto — transe no qual o presidente, já no primeiro dia, se incorpora num novo mandato. Assim foi com Fernando Henrique, Lula e Dilma. Com Bolsonaro não é diferente.

“A pressão está muito grande para, se eu estiver bem (de saúde), me candidatar à reeleição”, ele contou dias atrás ao repórter Augusto Nunes. Com três décadas na política, e tendo garantido a dinastia na folha do Legislativo, Bolsonaro dissimula sobre a origem da “pressão” para descumprir sua promessa — se íntima, familiar ou dos acólitos.

Deixa escapar alguma culpa ao sugerir que vestígios da jura de candidato ainda pairam na sua memória. Talvez aflito com a possibilidade de que negligência o deprecie, continua a falar em “uma reforma política”, mas salteia a reeleição. Projeta uma redução do tamanho da Câmara, do Senado e, por consequência, das assembleias estaduais e câmaras municipais. Arremata, como se falasse para si mesmo: “Se essa proposta me custar a reeleição, eu assino.”

Contratos verbais não valem a tinta com que são assinados, ensinava o lendário produtor hollywoodiano Samuel Goldwyn (nascido Schmuel Gelbfisz em 1882). Não custa estimulá-lo: assina, Bolsonaro!

Lava-Tudo

A Operação Lava-Jato conseguiu o grande feito de despertar uma consciência nacional contra a corrupção no comportamento dos políticos brasileiros. Mas ainda não houve um verdadeiro despertar da consciência nacional contra as outras formas de corrupção.

Já prendemos políticos que desviaram para seus bolsos o dinheiro que deveria ser destinado ao gasto com a população, mas não condenamos políticos que cometem a corrupção nas prioridades, desviando recursos públicos sem consequência social. O gasto de quase dois bilhões para um estádio de futebol em Brasília, a poucos quilômetros de distância de onde vivem dezenas de milhares de pessoas sem saneamento, foi um ato de corrupção, mesmo que não tivesse havido pagamento de propina e roubo de dinheiro para o bolso de políticos.


Mesmo obras necessárias e urgentes implicam corrupção quando seus gastos são elevados pela monumentalidade desnecessária. A maior parte das edificações no Legislativo e no Judiciário carrega a corrupção do desperdício pela ostentação. O mesmo pode-se dizer dos luxuosos prédios do Ministério Público, instituição que luta contra a corrupção no comportamento dos políticos, mas tolera a corrupção nas prioridades e a corrupção do desperdício.

E o que dizer de uma obra necessária que, embora austera, carrega a corrupção da ineficiência pelo descaso com os assuntos e gastos públicos? As ferragens, areia, cimento de obras paradas formam esqueletos da corrupção da ineficiência. Da mesma maneira, há corrupção no relaxamento dos serviços que não atendem bem ao público, por culpa do mau funcionamento da máquina ou pela má postura de servidores.

Há corrupção nos desperdícios para atender a mordomias e privilégios que desviam dinheiro público para beneficiar servidores do topo de carreiras do Estado. Além de se apropriar de dinheiro público, para atender a interesses privados, a corrupção das mordomias e privilégios corrói a credibilidade do Estado, provocando perda de credibilidade na democracia e no Estado.


A Operação Lava-Jato trouxe a consciência e a indignação com a corrupção no comportamento da classe política, que rouba para seus bolsos, mas não desnudou a corrupção da deseducação que compromete o futuro do país ao deixar o Brasil com um dos piores sistemas educacionais, e o mais desigual no mundo, e por termos ainda dez milhões de adultos analfabetos, no máximo 20% dos nossos jovens terminando o ensino médio com razoável qualidade.

A corrupção da deseducação rouba cruelmente, ao comprometer a eficiência econômica e impedir a justiça social. Essa é a pior das corrupções porque incinera o futuro de nossas crianças e por elas o futuro da Nação; e ainda esconde as outras corrupções pela falta de consciência.

A corrupção ecológica vandaliza o futuro ao devastar nossas matas, sujar nossos rios, poluir nosso ar. A corrupção monetária pela inflação, que seduz os populistas, rouba o assalariado do valor de seu salário, pago com dinheiro falso e desorganiza o empresário que fica sem um padrão para o valor nominal dos insumos que compra e dos produtos que vende.

O Brasil descobriu a corrupção no comportamento de políticos que roubam, mas é preciso perceber e acabar com as demais formas de corrupção que comprometem o bom funcionamento e o futuro do país, nas prioridades, nas mordomias, na ostentação, na ineficiência, na irresponsabilidade, na deseducação, na ecologia e na inflação.

Mais do que uma Operação Lava-Jato, precisamos de uma Operação Lava-Tudo para todas as formas de corrupção.
Cristovam Buarque

Uruguai multiplicado por quatro na rua

No primeiro trimestre do ano, ele atingiu 13,4 milhões de pessoas, ou 12,7% dos trabalhadores.

O número de subutilizados foi o mais alto da série histórica: 28,3 milhões de trabalhadores.

O que é o bolsonarismo?

Essa pergunta se tornou frequente desde que me lancei a uma série de artigos em que tento radiografar a força antipolítica que preside o Brasil. A resposta não é banal, embora facilitada pelo estudo da ascensão do que se pode chamar de nacionalpopulismo mundo afora. Está claro, a propósito, que o sumo bolsonarista deriva mais da cepa populista corrente na Europa, notadamente a húngara, do que da singularidade do que exprime Donald Trump, em favor de quem sempre haverá a rede de proteção democrática americana.

O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou a atividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.

O bolsonarismo tem meios e códigos próprios. Como desdobramento do desprezo pela democracia representativa, despreza a instância partidária — descartada como base por meio da qual se aglutinar e financiar, ao contrário da relação entre PT e lulopetismo. A forma bolsonarista de lidar com o PSL é eloquente. O partido consiste numa estrutura para fins meramente utilitários, esvaziado da mais mínima chance de ter caráter e identidade, condição fundamental para futuro despejo. Em matéria de objetivo, porém, o bolsonarismo em nada difere daquele do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado.

Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual, de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente — do conflito constante — em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.

O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.

A revolta dos caminhoneiros, de maio de 2018, ilustra essa efusão pelo caos. O bolsonarismo é a revolta dos caminhoneiros, levante que soube distinguir e que encampou com engenho, e por meio do qual testou hipóteses sobre até onde se poderia esticar a corda da pressão popular em rede e instrumentalizá-la contra o establishment. Aquela mobilização criminosa, evento pré-eleitoral, foi destacado componente na cesta de insatisfações e falências que resultaria na eleição de Bolsonaro.

Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar — sob tal conformação — que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.

Insisto, no entanto, em que não se deve observar o que está em curso com os olhos engessados do século XX, como se estivéssemos diante de uma marcha ditatorial que suprimirá liberdades e fechará o Congresso. O bolsonarismo avança para comprimir, e sempre precisará do que comprimir, de resto porque promove a insólita limpeza que aparelha para desaparelhar. Este é seu modus operandi: como o cupim, mina as bases, corrói os pilares, mas sem desarmar a carcaça. Precisa do aparato democrático em modo de segurança, em versão econômica, tão somente funcional, para emparedar e subordinar tudo quanto possa ser apregoado como musculatura autônoma e ameaçadora.

Para dar corpo à mentalidade e figura às práticas: Carlos Bolsonaro é mais bolsonarista do que Jair Bolsonaro; Eduardo Bolsonaro, idem — e é a ação deste filho, respaldada pela guerrilha daquele, que será lastreada pelo bolsonarismo.

Pensamento do Dia


O presidente das pequenas coisas

Até as pedras sabem que o sucesso do governo Bolsonaro dependerá da economia, mais especificamente da reforma da Previdência e de outras medidas que destravem o crescimento. Não obstante, o mandatário prefere dedicar suas energias a uma cruzada moralista e a assuntos que, embora não sejam desimportantes, jamais deveriam ocupar o topo da escala das prioridades presidenciais.

Jair Bolsonaro está se tornando o presidente das pequenas coisas. Na semana passada, ele censurou uma peça publicitária do Banco do Brasile fez observações pouco congruentes sobre o turismo gay. Isso foi até a quinta-feira. Na sexta, manifestou apoio a um plano do ministro da Educação de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”.

Uma coisa se pode dizer em favor de Bolsonaro. Ele não comete estelionato eleitoral. Tenta cumprir todos os desatinos prometidos durante a campanha. Não dá para reclamar de ele ser conservador. Ele foi eleito com essa plataforma e, numa democracia, se a sociedade decide coletivamente caminhar para trás, caminha-se para trás.

Só que o presidente perde a razão quando se apoia em erros factuais para justificar suas idiossincrasias. Não é verdade, por exemplo, que exista uma centralização de investimentos em faculdades de filosofia e sociologia. Como mostrou análise de Sabine Righetti e Nina Stocco Ranieri, as matrículas em filosofia ou sociologia representaram apenas 0,6% do total de inscrições em 2017. São ainda cursos incomensuravelmente mais baratos que os de áreas tecnológicas, o que significa que é preciso ter tomado um ácido para imaginar que exista concentração de verbas nessas carreiras.

Como dizia o senador americano Daniel Patrick Moynihan, aliás, uma rara combinação de pessoa que deu certo na política e na academia (sociólogo), “você tem direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos”.

Gênio da lâmpada de Bolsonaro se chama Olavo

Suponha que você se chama Jair Bolsonaro e preside um país chamado, digamos, Brasil. Você tomou posse há quatro meses. Embora você admita que não entende bulhufas de economia, já assimilou a avaliação de que a crise fiscal é feia. Porém, você ainda dispõe de três anos e oito meses para mudar o rumo das coisas.

Suponha que você está caminhando pelos jardins do Palácio da Alvorada e tropeça numa lâmpada mágica. De dentro da lâmpada sai um gênio. Ele diz que quer ajudar você a salvar o país. O gênio pergunta quais são suas quatro prioridades. Ele não costuma atender a mais de três pedidos por pessoa. Mas foi com a sua cara. E decidiu conceder-lhe um bônus.

Você responde rapidamente: "ma escola sem partido, sem filosofia e sem sociologia; uma publicidade estatal sem tatuagens, sem cabelos compridos e sem transexuais; um turismo sem o paraíso gayzista, aberto apenas a estrangeiros que prefiram fazer sexo com mulheres; e, por último, um vice-presidente sem língua."

O gênio se irrita. Faz cara de nojo. E volta para o interior da lâmpada resmungando: "Você não precisa de mim. Creio que a alegada genialidade do Paulo Guedes tampouco lhe será útil. Tente repatriar o Olavo de Carvalho."

A esse ponto chegou Jair Bolsonaro. Tornou-se escravo mental de um guru amalucado. Prometia nomear um ministério de craques e entregar aos brasileiros o básico: educação, saúde e segurança. Para atingir seus objetivos, tocaria um governo sem viés ideológico e priorizaria na largada as reformas econômicas.

Súbito, descobre-se que cultivava uma prioridade secreta: converter o futuro do Brasil numa Antiguidade sem Sócrates, Platão e Aristóteles. Mas com muito viés ideológico e doses cavalares (com duplo sentido, por favor) de Olavo de Carvalho. Não há gênio que resolva.

O Novo Governo mofou

E é um mofo grudento, mal cheiroso, o tipo de bolor difícil de erradicar. Vivemos num país ensolarado e dizem as donas de casa de antigamente que a luz do sol é a grande inimiga do mofo. Nosso sol é forte e dourado. Se essa lição fosse verdadeira, no Novo Governo o mofo não deveria prosperar. Mas prosperou.

Fiquei intrigada e fui pesquisar. Acho que matei a charada.

O Novo Governo começou em 1º de janeiro de 2019. Em 1º de maio, Dia do Trabalho, estaríamos comemorando quatro meses de trabalho se tivesse havido trabalho. Houve muito furdunço, muito salsero, muita fofoca e muita intriga, mas trabalho: onde? quando? feito por quem?


Quem votou em Jair Bolsonaro, votou acreditando que votava num militar que saiu das fileiras como capitão e de lá sentou-se numa das cadeiras do Congresso Nacional, lá bem no fundo do plenário, onde permaneceu apagadinho durante sete mandatos e nove partidos e conseguiu sair sem deixar marca alguma. Talvez seja o recorde do Nada, mas não posso garantir. 

O que posso garantir é que os eleitores dos Bolsonaros foram muito bem embrulhados. Explico: eles votaram num homem que passara pelo Exército e pelo nosso Congresso. Que se casara três vezes. Que teve quatro filhos homens e uma menininha. Que afirma ser católico apostólico romano mas frequentou a Igreja Batista por dez anos, que foi batizado no Rio Jordão e teve seu casamento com sua terceira mulher celebrado pelo pastor Silas Malafaia. Sua mulher e seus filhos são evangélicos. Quer dizer, experiências não lhe faltaram.

Quais os planos desse homem para o Brasil? Alguém sabe? Não creio. Talvez seu eleitor achasse que sabia alguns, tipo Armas Para Todos, Estradas Livres de Quebra-Molas, Ruas Livres de Pardais, Escolas Sem Partido, Abaixo o Marxismo Cultural (seja lá o que isso signifique).

Agora, muito recentemente, o capitão que diz não ter nenhum preconceito contra LGBTs, pronunciou a seguinte pérola: "Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay". Como disse muito sabiamente Paulo Coelho, é preciso deixar bem claro que as mulheres brasileiras não são uma commodity para o Bolsonauro oferecer assim sem mais aquela.

Pois esse embrulho muito bem feito e luxuosamente amarradinho, não é da autoria do capitão. Segundo ele mesmo afirma e sempre que pode confirma, ele ocupa o cargo que ocupa graças ao seu garoto Carlos e seus irmãos. Quer dizer, os bolsonaristas votaram no Zezinho, no Huguinho e no Luizinho. Nele Jair, não. Nos seus três Zeros. Ele é só um Zero à esquerda.

O capitão faz questão de dizer que não se vê como de direita. Insiste em afirmar que seu governo é o Novo, aquele que não se deixará vender, nem comprará ninguém. O governo que não será, como os demais, de coalizão. Tudo Novo. Brilhando de Novo.

Rodin do Brasil


O Poder briga com a sombra

O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.

Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens. Persigo um quadro um pouco maior.

Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.

A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.

Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice. Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um vice decorativo.

Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se preparava para substituir Dilma.

No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.

Mas a política não se faz apenas com teorias. Ela é mediada por nossas paixões humanas. Sem combinar suas posições, agindo desorganizadamente, acabaram caindo na armadilha de sempre: até que ponto o vice pode ser protagonista?

No princípio da campanha, Mourão parecia tão ou mais conservador que Bolsonaro. Com o tempo, foi abrandando seu discurso, voltado para o mercado financeiro, a imprensa, a diplomacia.

Até que ponto Mourão quis apenas manter a amplitude da frente que elegeu Bolsonaro, até que ponto seu protagonismo é a maneira de se diferenciar dele, mostrar-se como uma alternativa?

Isso dá margem para tantas nuances interpretativas que prefiro avançar um pouco na tese inicial. Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas, sobretudo pela ausência de uma forte oposição. Um efeito colateral dos confrontos entre alas do governo é o tiroteio contra as Forcas Armadas. O que se diz sobre os militares em posts e lives da direita, não se dizia nem nos panfletos da extrema esquerda no tempo da Guerra Fria.

Não me importo com textos que tentam interpretar o golpe de 64 como algo realizado pelos civis, muito menos com a afirmação de que os militares destruíram os políticos de direita.

O mundo da internet é recheado de interpretações, eletrizado por teorias conspiratórias. Por que perder tempo em desfazê-las?

As coisas mudam de figura quando os ataques às Forcas Armadas são postados na conta do próprio presidente da República.

É algo tão grave, em termos políticos, como a postagem do golden shower. Não creio que Bolsonaro compartilhe realmente da tese de que as Forcas Armadas no Brasil são uma nulidade. Todo os que viajam pelo Brasil podem testemunhar a ação positiva do Exército. Se quiser reduzir o aprendizado a duas situações, basta ir à fronteira com a Venezuela, ou mesmo às cidades mais secas do Nordeste, onde o Exército organiza o abastecimento de água.

Quem gosta de ler também pode ter acesso às obras que militares têm publicado. Outro dia, resenhei o livro do coronel Alessandro Visacro sobre “A guerra na era da informação”. Acabo de receber o livro “Direito internacional humanitário”, do coronel Carlos Frederico Cinelli. Um estudo sobre a ética em conflitos armados.

As Forcas Armadas não divagam sobre filosofia ou política, mas cuidam de temas ligados à sua atividade principal.

Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro. Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se for candidato.

A comparação das fotos de posse de Fernando Henrique e Bolsonaro é sintomática. No carro de FH, Marco Maciel obcecado em ser discreto; no carro de Bolsonaro, a ausência. Em seu lugar, Carlos Bolsonaro, protegendo o pai.

O protagonismo de Mourão foi suprimido no ritual. Naquele momento, o drama, como dizia o poeta Drummond, já se precipitava sem máscaras. Era só olhar.
Fernando Gabeira

'Pulhas' acima de tudo

Há pouco mais de três anos, numa entrevista na varanda de sua casa no Rio - à vontade, de chinelos, bermuda da Nike, camisa polo da Adidas e relógio Casio no pulso - o então pré-candidato a presidente Jair Bolsonaro afirmava que pediria, "pelo amor de Deus", a seus eleitores para que votassem, dali a dois anos e meio, nos nomes que indicasse a senador e deputado federal. Se não tivesse um grupo parlamentar de apoio no Congresso - como ainda não tem - Bolsonaro antevia duas alternativas, ao reconhecer a radicalidade de suas ideias. "Vão cassar o meu mandato ou vou ser um pulha - como a Dilma é pulha, como Lula foi pulha, e como FHC foi também um... vendido", dizia.

Por "pulha" Bolsonaro entendia os presidentes da República que têm necessidade de formar aliança, em sistemas multipartidários como o brasileiro. Antes mesmo de adotar os chavões da "velha política" e do "toma lá dá cá", já antecipava o comportamento refratário que dispensaria aos parlamentares, equiparados à figura de sequestradores. O eleitor deveria votar nos seus candidatos, tão radicais quanto ele: "Se não, vou ser refém desses caras".

Na tremenda onda conservadora, Bolsonaro viu suas preces atendidas, ao se eleger ao lado de uma bancada do PSL que, de nanica, tornou-se a segunda maior da Câmara, com 54 integrantes. Algo muito insuficiente, porém, para lhe dar maioria diante da extrema fragmentação do Congresso, ainda mais elevada nessa legislatura. A fatia do PSL é de meros 10,5% dos deputados e 5% dos senadores.


Em quase quatro meses de governo, Bolsonaro oscila entre o destemor com o precipício e a figura do "pulha" que imputa aos antecessores. O apoio de legendas do Centrão à aprovação da reforma da Previdência, na Comissão de Constituição e Justiça, na terça-feira, é sinal de que a crista empinada tem limite. A ideia de governar à margem dos partidos - com bancadas temáticas, como a ruralista, a evangélica ou a dos agentes da área de segurança - se mostrou um fracasso. Bem previsível, uma vez que a distribuição de poder e toda lógica interna do Congresso é partidária. Bolsonaro tentou inventar a roda e viu que a ideia o levaria a dar com os burros n'água. E, no caso do governo atual, não são poucos os jericos pelo caminho.

O presidente nem precisaria ser o "pulha", o refém do Congresso, pois já tem problemas o suficiente diante da confusão e clima de beligerância entre os principais grupos que o sustentam. O duelo entre seu filho Carlos Bolsonaro e o guru Olavo de Carvalho contra o vice Hamilton Mourão beira à sandice mas expõe o nível de conflagração entre olavistas e militares, a despeito das tentativas - raras - de apaziguamento. Bolsonaro nunca foi e nunca será um pacificador. A neutralidade não é possível, já deixou claro, quando um dos lados é "sangue do meu sangue."

Maquiavel afirmava que uma coisa é conquistar; outra, diferente, é manter o poder. Olavistas foram importantes na primeira etapa; os militares são a base da segunda fase, e estão presentes em vários postos da administração federal. Nesse conflito insanável, Bolsonaro se desgasta e mostra falta de liderança. Sua palavra não é respeitada pelo rebento que prefere seguir o ideólogo defensor da guerra contra um suposto marxismo cultural. De birra, depois de uma bronca, Carlos barra o acesso do pai à própria conta do Twitter presidencial.

As coisas se tornaram mais complexas para Bolsonaro e vão muito além de ser - ou não ser - o "pulha" perante o Congresso. O presidente já é refém - não propriamente dos profissionais da política - mas dos amadores, da enorme turma de voluntariosos que instalou no governo e que pretendem tutelá-lo. Não bastasse a fragmentação parlamentar, o partido não orgânico, com políticos inexperientes, a instabilidade é fomentada por atores ligados ao próprio Executivo e ao filho incontrolável.

Há um sequestro psicológico, emocional. Bolsonaro atribui a vitória eleitoral a Carlos - que fez as vezes de marqueteiro de sua campanha nas redes sociais. E foi, entre os três filhos que seguiram carreira política, o que aceitou a missão dada pelo pai, em 2000, de derrotar nas urnas a mãe e então vereadora Rogéria Bolsonaro. À época, com 17 anos, Carlos era o único dos três que morava com Jair Bolsonaro, a madrasta e o meio-irmão caçula, Jair Renan, enquanto Flávio e Eduardo viviam com a mãe. A política nacional não é mais analisável sem a ajuda da psicanálise. O (des)governo Bolsonaro não quer apenas "tirar Paulo Freire do pedaço". Requer deixar de lado premissas da escolha racional.

Mas a balbúrdia e a desorganização favorecem o enredo geral desenhado pelo presidente que é o de confundir mais do que explicar, o de personalizar mais do que apresentar ideias e propostas concatenadas. A queda de braço entre olavistas e militares, entre Carlos e Mourão, não traz uma única substância em termos de política pública. Está no nível das acusações mútuas de traição e de ingerência descabida no governo. É espuma para a falta de conteúdo que caracteriza um mandatário hiperdependente da aprovação da reforma da Previdência e, em menor medida, do pacote anticrime de Moro.

Resta saber o que será de Bolsonaro quando, e se, a reforma passar e não houver mais a âncora que atrai os liberais ao seu governo. Se partirá para novas reformas - como a tributária - ou, se autoisolado, mergulhará na agenda de costumes. O posto Ipiranga de Paulo Guedes terá sido apenas o "pit stop" para voltar à caravana dos confrontos eleitorais, na estratégia de manter seus simpatizantes mobilizados até 2022.

Bolsonaro chegou ao poder num cenário de anomia - de descrédito com os partidos, com as elites, com "o sistema" - e nele se sente bem. Pinto no lixo. O bruxo da Virgínia ajuda a desmoralizar instituições, até mesmo as Forças Armadas, e o estrato superior delas, os generais.

Militares de alta patente tendem a acreditar menos em teorias da conspiração - como a hegemonia gramsciana da esquerda. O risco é a cooptação e politização de praças e oficiais em início de carreira. A Venezuela, com sinal invertido, pode ser aqui.

Começou e nem notaram!

Estou esperando para que o governo comece logo
Sérgio Etchegoyen, general e ex-Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional

Nós, os patos

A certa altura de sua entrevista à GloboNews, o ministro da Economia Paulo Guedes soltou uma pérola: “A minha interpretação é que está ficando muito claro para o brasileiro comum o seguinte: tem cinco bancos, tem seis empreiteiras, tem uma produtora de petróleo, tem três distribuidoras de gás e tem 200 milhões de patos. Os patos somos nós.”

Paulo Guedes tem razão. A cidadania brasileira é feita de patos que pagam a conta do privilégio de poucos. Temos uma carga tributária injusta e excessiva, recebemos serviços de baixa qualidade e aceitamos o privilégio das aposentadorias milionárias pagas pelo erário.

Aceitamos pagar um dos maiores spreads bancários do mundo. O nosso é cinco vezes maior que o da quebrada Argentina. Em novembro passado, os juros do crédito rotativo dos cartões de crédito no Brasil chegaram a singelos 305% ao ano.

Aceitamos um Estado burocratizado, que cria dificuldades para vender facilidades. Nós nos humilhamos nos postos de saúde e nos acotovelamos nos transportes públicos de baixa qualidade. E, quando temos carro, vamos desviando dos buracos ou ficamos paralisados em engarrafamentos.

Partidos políticos são sustentados por cofres públicos e não por seus militantes. E, até há bem pouco tempo, os sindicatos de trabalhadores recolhiam compulsoriamente contribuições, além de manterem “monopólios” por região. Agora, após a Operação Lava Jato, a presunção da inocência deixou de existir. Todos são culpados até que se prove o contrário. Na burocracia, tal assertiva já valia há tempos: o cidadão é sempre penalizado com montanhas de pré-requisitos. Quase diariamente a burocracia produz normas e atos num imenso redemoinho de exigências. No Brasil, a papelada aumenta para atender o crescimento da própria burocracia.

Nos tribunais administrativos da Receita Federal, o voto de minerva é de quem jamais votará contra a redução de seus bônus, decorrentes de multas bilionárias. Certidões são penosamente extraídas, mesmo que as obrigações do cidadão estejam em dia. Gastamos horrendas 2 mil horas por ano para pagar impostos, enquanto a média mundial é de apenas 250 horas.

O Brasil pune quem quer gerar emprego com um dos piores ambientes de negócios do mundo. Entre 190 países, estamos no 109º lugar. O País é um imenso paradoxo sustentado por nossa mansidão. Trata-se de uma lógica muito louca, que revela que aceitamos os absurdos apenas por sempre ter sido assim. E se é assim, o verdadeiro absurdo está em nós.

O País é um paradoxo sustentado por nossa mansidão. Aceitamos os absurdos apenas por acreditarmos que é assim que as coisas são.
Murillo de Aragão 

Paisagem brasileira

Carlos Oswald

Bolsonaro quer um país que não amarrota e não perde o vinco

As gotinhas da Esso eram brancas e as crianças Dulcora mais ainda, alvíssimas, chupando eufóricas a felicidade dos drops embrulhados um a um. Não havia diversidade, essa palavra fundamental em 2019, e lá estava nos comerciais da TV a Neide Aparecida anunciando a peruca kanekalon. Sem tatuagem, sem piercing e acima de tudo com uma virgindade à espera do casamento com Cyll Farney, conforme anunciava a Revista do Rádio, ela balançava a cabeça para mostrar que o adereço capilar estava firme. Essa propaganda das perucas Lady é das caricaturas mais risíveis da história. Não era só o cabelo, não era só a virgindade. Era tudo falso.

O Brasil da propaganda, não faz muito tempo, era a mentira mantenedora dos preconceitos nacionais, um país inteiro de cabelos lisos, gente com uma carinha assim fofa, sem homem usando piercing como na propaganda do Banco do Brasil que Bolsonaro proibiu. Preto na propaganda só os soldadinhos feitos com palitos dos fósforos das marcas Olho, Pinheiro e Beija-Flor.

Era um país em que mulher não abria conta em banco e nos comerciais só aparecia cuidando das prendas do lar, como a Dona Ermelinda, a velhinha que saía correndo feito uma louca pelas ruas do Rio porque precisava aproveitar a liquidação de flanelas, lãs e cobertores das Casas Pernambucanas. Mulher de verdade posava sorridente ao lado do novo orgasmo daquele ano, um pote de gelatina framboesa da Royal. Não fazia cara de "diva irritada", como pede a propaganda censurada do Banco do Brasil. Mulher de família fingia-se de mãe extremada e bibelô. Mentia a depressão.


O governo Bolsonaro desconhece todas as boas novidades sociais das últimas décadas, e agora quer mostrar que desconhece também as da propaganda. Pretende uma volta ao tempo em que o único produto oferecido aos negros na televisão era o henê Cilin, aquele com jingle do Moreira da Silva: "Para tingir/ para alisar/ Henê Cilin o Morengueira vai usar". Breve, proibirá comerciais de absorventes femininos.

A propaganda que Bolsonaro tirou do ar falava em tom atualizado com as novas diversidades - com exceção da que está surgindo em algum lugar neste exato momento. Tinha uma mulher careca e outra ainda, negra também, com tranças que acentuavam o orgulho africano, tudo num jeito ostensivo de afirmar que cada um faz o que quiser com o que lhe cresce na cabeça. Respeito à família é isso. O presidente achou o Banco do Brasil liberal demais na sedução à clientela jovem - onde já se viu pedir selfie fazendo "biquinho de vem cá me beijar"? Bloqueou.

O grande problema da propaganda do BB, que reunia ainda transexuais, gays e afins, era o fato de a peça - muito bem produzida - ter custado R$ 17 milhões aos cofres públicos. Sobre isso nada foi espantado. Bolsonaro, depois de atirar despropósitos em todos os cantos da atividade nacional, agora quer presidir agência de publicidade e dirigir comerciais com os valores acanhados de sua caserna moral. A propaganda oficial é o seu novo sonho de governo.

Ele busca um país onde todo mundo tenha a mesma cara de macho-hétero-branco de anúncio de Tergal, aquele tecido que não amarrotava, não perdia o vinco e que saiu do mercado pelo desinteresse de homens e mulheres se vestirem dentro desta mesma e insuportável assepsia. A moda, Bolsonaro não sabe, é o orgulho das diferenças - vidas que se vestem com um tecido que cada um amarrota do seu jeito.

Continua perda de tempo

Em outros tempos, discutir o alcance e o tom do discurso de Olavo de Carvalho era perda de tempo. Hoje, ele acalenta o núcleo duro do governo com doses supremas de bajulação virtual — e indicou quase vinte cargos no governo 
Ana Clara Costa 

O desalento começa a prevalecer

Não é mera coincidência o comportamento mais conservador adotado tanto pelo empresariado do comércio como pelo da indústria na gestão dos estoques. Esse comportamento observado recentemente parece antecipar sua percepção de que haverá queda nos negócios nos próximos meses. Têm sido pequenas, até agora, as variações dos índices que medem os estoques nos dois setores, mas elas mostram atitude mais cautelosa dos dirigentes das empresas. O economista Aloísio Campelo, superintendente de Estatísticas Públicas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), escolheu uma expressão um pouco mais direta, “desalentador”, para se referir ao cenário que vai se formando no ambiente de negócios a partir dos dados que vão sendo conhecidos.

O índice de adequação de estoques do comércio, calculado pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) registrou alta de 5,9% em abril na comparação com o resultado de um ano antes, o que indica que, nesse período, a economia ganhou fôlego. Mas a comparação com dados mais recentes mostra uma tendência menos brilhante. Em relação a março, o índice teve aumento de 1,5%, mas essa variação, como ressaltam os economistas da FecomercioSP, não se deveu à melhora do ambiente econômico. Os empresários do setor já não têm o otimismo que demonstravam no início do ano. O comportamento mais conservador se deve ao fato de que o comércio “já percebe sinais de arrefecimento das vendas”.



Também na indústria o cenário é de estoques ajustados e de pequena melhora na demanda interna, o que levou à alta de 0,4 ponto entre março e abril na prévia do Índice de Confiança da Indústria medido pela Fundação Getúlio Vargas. Mas as expectativas vêm se deteriorando. O resultado preliminar do índice que mede essas expectativas caiu 0,2 ponto entre março e abril, o que o economista Aloísio Campelo interpretou como “uma ducha de água fria” no humor do empresariado industrial.

Outra pesquisa confirma essa tendência. O Índice de Confiança do Empresário Industrial (Icei) calculado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) caiu 3,5 pontos em abril, após queda de 0,2 ponto em fevereiro e de 2,6 pontos em março. A queda deveu-se tanto ao recuo das expectativas como à piora da avaliação das condições de negócios.

O mau desempenho da economia no primeiro trimestre decerto afetou o humor do empresariado. O Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) caiu 0,73% de janeiro para fevereiro, depois de ter recuado 0,41% em janeiro na comparação com dezembro. São dados que, por anteciparem com razoável precisão os resultados oficiais do Produto Interno Bruto (PIB) calculado pelo IBGE, indicam desempenho negativo da economia brasileira no primeiro trimestre. As revisões para baixo nas previsões para o comportamento do PIB neste ano, por economistas de instituições financeiras privadas e do próprio governo, realimentam a desconfiança do empresariado. Ou o “desalento”, como prefere o economista do Ibre-FGV.

O quadro político-administrativo acentua esse sentimento. As expectativas positivas alimentadas após o conhecimento do resultado das eleições de outubro do ano passado foram sendo paulatinamente corroídas por confusões, retrocessos e notória desarticulação política do governo que tomou posse em 1.º de janeiro.

Há oportunidade e tempo, obviamente, para que aos poucos se vá recompondo a confiança do empresariado e das famílias com relação ao desempenho da economia nos próximos meses. É absolutamente indispensável para isso que avancem as propostas destinadas a assegurar o equilíbrio futuro das finanças públicas, sem o que o País não poderá crescer de maneira consistente. E isso depende do governo Bolsonaro, que precisa demonstrar mais firmeza de propósitos e mais competência política do que apresentou até agora.

A gargalhada

Sempre que tenho o prazer de ir ao leste europeu, ouço a mesma resposta quando conto que no Brasil a maior parte dos jovens “informados” e da classe culta em geral são simpáticos a regimes socialistas ou comunistas: uma gargalhada seguida de espanto. “Mas, eles não sabem o que aconteceu aqui nos países comunistas durante décadas?”, me perguntam.

Claro que esta adesão ao socialismo e comunismo como tara intelectual não é um pecado brasileiro. Por todo o ocidente, inteligentinhos brincam de socialistas e comunistas. Diante da violência e miséria que viveram, os habitantes dos países que padeceram sob o regime comunista de fato, só podem dar uma gargalhada como esta.


Arriscaria dizer que só agora começamos a ter a chance de tentar entender, em algum grau, nossa história política desde a guerra fria. O trágico período da ditadura (que nenhum inteligentinho de direita venha dizer que não houve ditadura no Brasil) foi seguido por outro período em que, ao invés de termos uma elite cultural que olhou para o país de uma forma um pouco mais realista (um filósofo diria, “empírica”), tivemos uma elite cultural monolítica que continuou presa a geopolítica da guerra fria. A polarização política no Brasil hoje é anacrônica. Direita e esquerda parecem pastar como jumentos na grama da guerra fria.

Se Bolsonaro e seus seguidores são uma espécie de cadelas hidrófobas que saíram do quarto escuro quase 30 anos depois (a imagem é inspirada em Nelson Rodrigues), nostálgicos de uma ditadura, a elite culta ativa nos “aparelhos culturais e educacionais” pós-ditadura se encastelaram numa narrativa atávica, presa a um “profetismo” marxista (e derivados) que logo estará na lata de lixo da historiografia.

Ao invés de propor uma análise mais complexa e ampla da política, grande parte de nós preferimos transformar as universidades, a mídia, a arte e a cultura em espaços de disputa política baixa, a serviço de interesses de classe, assim como se vê hoje em dia uma parte do poder judiciário fazer a mesma coisa: que se dane o país, contanto que seus privilégios de uma República das Bananas continuem a funcionar.

A historia do pensamento político é essencial para pensarmos qualquer política. A obviedade da afirmação acima é proposital. Referências existem por toda parte, cito aqui apenas uma delas: “On Politics” do professor Alan Ryan, que ensinou teoria política nas universidades de Oxford e Princeton, da editora W.W. Norton & Company.

O debate sobre como fazer a vida em sociedade um pouco menos ruim (porque é disso que se trata a política), desde a Grécia, tem alguns marcadores essenciais. Vou dar apenas dois exemplos importantes.

Um deles é a busca de “regimes mistos”, como buscava Aristóteles em Atenas e Cícero em Roma, ambos na antiguidade, e “Os Federalistas” (James Madison, John Jay e Alexander Hamilton) nos EUA, no final do século 18. “Misto” aqui significa um regime que integre minimamente uma “aristocracia” (não de sangue) competente a agentes que representem o “povo”, a maioria, de forma razoável. A busca dessa integração institucional visa evitar a ganância dos poderosos e o ressentimento dos mais pobres.

Política é o campo em que conflitos auto-justificados se organizam institucionalmente a fim de que esses conflitos não destruam a sociedade. Esta tradição atinge seu apogeu justamente nos Federalistas, com a criação de mecanismos práticos e institucionais de pesos e contrapesos que limitem o poder de todo mundo que tem alguma forma de poder.

Outro marcador essencial é o debate acerca da natureza humana (não vou debater com os inteligentinhos o conceito de natureza humana aqui). De um lado, Santo Agostinho, na antiguidade tardia, para quem o pecado faz de nós seres interesseiros que a qualquer hora podem destruir tudo para realizar seus desejos mais mesquinhos e que, portanto, necessitam de uma ordem mínima que os mantenham sob cuidado e atenção. David Hume, cético, já no século 18, pensava que seria uma máxima política justa supor que todo homem pode a qualquer hora agir como um patife, e por isso mesmo, se faz necessário confiar desconfiando, em bom português.

Do lado oposto, a tradição, grosso modo, iluminista, de Rousseau a Marx (e derivados) para quem os homens são vítimas históricas que um dia, libertos da opressão, serão anjos políticos.

Você também está ouvindo a gargalhada de Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, Federalistas e David Hume?

domingo, 28 de abril de 2019

Tudo ou nada

Apesar de ainda não ter edição no Brasil, recomenda-se a Hamilton Mourão, ao quarteto Bolsonaro e às vivandeiras políticas nacionais um livro de cabeceira de utilidade imediata: “First in Line: Presidents, Vice-Presidents and the Pursuit of Power” ("Primeiros da Fila: Presidentes, Vices e a Busca do Poder"), da jornalista americana Kate Andersen Brower. A obra analisa a trajetória malabarista dos 13 homens que ocuparam a vice-presidência dos Estados Unidos entre 1953 até hoje. Ela destrincha a natureza do cargo cujo primeiro ocupante, John Adams, definiu-se nos seguintes termos ainda no século 18: “Sou vice-presidente. E assim sendo, não sou nada. Mas posso ser tudo”.

A definição é mais atual do que nunca, tanto lá como cá. Nos Estados Unidos, pelo lançamento esta semana da candidatura democrata de Joe Biden, que pela terceira vez tenta chegar à Casa Branca — agora com o currículo acrescido de oito anos como vice de Barack Obama. A atenção geral também está voltada ao desempenho do atual ocupante do cargo, Mike Pence, devido à governança ciclotímica do presidente Donald Trump.


No Brasil, o foco da semana esteve em Hamilton Mourão. Ou melhor, nas intrigas e embates explícitos, quase psiquiátricos, que sua recente encarnação como “poder moderador”, ou “traidor”, tem gerado. Má notícia para quem avalia que as desconfianças intestinas haverão de serenar com o tempo. O livro citado demonstra que à exceção de um caso, em todos os governos dos EUA desde 1953 (Dwight Eisenhower/ Richard Nixon), as relações entre presidente e vice tendem a se deteriorar com o passar dos anos. O titular vive no presente, o vice opera com o futuro, e analisa o quanto as políticas do chefe afetarão suas chances de algum dia ocupar o cargo. Neste exercício contínuo de equilibrismo, todo vice-presidente traz à mente do presidente a sua mortalidade política. Ou a sua mortalidade física mesmo. Como comentou George W.H. Bush (vice de Ronald Reagan) em tom semi-ácido ao ser informado do falecimento de um chefe de Estado estrangeiro, “You die, I fly”( "Você morre, eu levanto voo"). Referia-se à função do vice de assistir a funerais oficiais de segunda classe.

A exceção à regra foi o duo Obama/Biden, cuja relação tanto pessoal como de confiança institucional cimentou-se com o tempo. Quase não se conheciam ao assumirem os cargos, e como Biden fora um dos concorrentes derrotados para a indicação democrata, o entrosamento inicial não foi suave. Segundo relato de Ron Klain, chefe de gabinete de Biden, Obama definiu o papel de cada um na Casa Branca nos seguintes termos: “Esta é a minha casa, Joe, e estas são as minhas coisas. Tenho grande interesse em seus pontos de vista, gosto de seus argumentos e quero que se sinta feliz aqui. Mas você é um hóspede na minha casa”. O grande diferencial neste caso foi a confiança mútua de lealdade, habitual centro nevrálgico de crises entre titular e suplente.

Em café da manhã com jornalistas esta semana, o presidente Jair Bolsonaro recorreu à surrada comparação das dificuldades de governança a um casamento. E acrescentou, não se sabe se em referência a Luís XIV, que “vice é sempre uma sombra e, às vezes, não se guia de acordo com o sol”. Só que na outra ponta da equação está um ocupante de cargo que não pode ser demitido, e aprecia o papel de indecifrável.

Em condições normais de temperatura democrática, ensina a autora de “First in Line”, o mais difícil para um vice em exercício é concorrer e vencer uma eleição para presidente quando expira o mandato do titular. Dos 14 que chegaram à Casa Branca em mais de 200 anos de história dos Estados Unidos, apenas 4 conseguiram essa passagem direta através das urnas — os demais assumiram o poder por morte ou renúncia do ocupante do cargo, ou foram eleitos quando já não eram mais vices. No Brasil, não há caso de vice em exercício que tenha obtido o aval do presidente a quem serve para sair candidato, e ser seu sucessor.

No fundo, a job description de um vice cabe na definição sumária do historiador Arthur Schlesinger Jr: “Um cargo de frustração espetacular e, a meu ver, incurável”. Para presidentes inseguros com filhos vigilantes, um perigo.

Brasil transparente


Um delírio ambiental

Não tem risco de dar certo a intervenção policial-militar do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com a nomeação de um coronel, dois tenentes-coronéis e dois majores da Polícia Militar de São Paulo para comandar a instituição. A transformação do tema da sustentabilidade num caso de polícia, por capricho pessoal do ministro, não tem precedentes na história das políticas públicas ambientais do país, inauguradas no governo José Sarney, quando foi lançado o programa Nossa Natureza, do qual resultou a fusão de vários órgãos e a criação do Ibama.


Nada contra os militares individualmente, até porque são homens que atuaram intensamente no policiamento florestal. Entretanto, a área exige interdisciplinaridade para uma boa gestão, o que a formação policial simplesmente não garante, embora seja importante para combater os crimes ambientais. Como diria o falecido astrofísico norte-americano Carl Sagan, é o tipo de decisão que somente pode ser atribuída ao “analfabetismo científico”, que está em alta em razão dos conceitos estapafúrdios do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, com repercussão mundial desde a saída do governo norte-americano do Acordo de Paris.

A propósito de um comentário de Platão sobre o ensino de matemática às crianças do Egito Antigo, Sagan dizia que a ignorância em ciência e matemática nos dias atuais é muito mais danosa do que em qualquer outra época. A raiz dos problemas ambientais brasileiros é uma cultura atrasada, que estimula e protege agressões ao meio ambiente, muitas vezes insanáveis, tanto no meio urbano como no rural. É por isso que muitos ignoram e negam o aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo e o desflorestamento da Amazônia.

É óbvio que a linha adotada pelo governo em relação aos problemas ambientais provocará novos desastres, como os já ocorridos em razão de ações governamentais realizadas na marra, contra pareceres originais dos órgãos ambientais, como é o caso da Usina de Belo Monte, no Pará. Sem falar das licenças ambientais, da fiscalização e do controle que deveriam ter evitado as tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, nas bacias do Rio Doce e São Francisco, respectivamente. A agenda ambiental do governo está com sinal trocado; em vez da busca de soluções em base científicas, a opção é pela truculência administrativa contra pesquisadores e cientistas.

Há inúmeros exemplos históricos de resultados desastrosos em consequência de políticas que, por razões ideológicas e religiosas, trataram a ciência como caso de polícia, como a perseguição do Colégio de Roma aos matemáticos italianos, porque consideravam uma heresia o cálculo infinitesimal, que foi fundamental para o desenvolvimento da Ciência e a Revolução Industrial na Inglaterra. O mesmo aconteceu com a medicina europeia na Idade Média, com a perseguição aos médicos seculares e o desprezo pela cultura judaica e islâmica por parte da Inquisição espanhola. O fundamentalismo ideológico preside decisões como a tomada na intervenção policial-militar no ICMBio.

Bolsonaro, trapalhão com bilhões e xerife sem noção

Trezentos ou quatrocentos bilhões de reais – quem se importa com isso? Em mais uma trapalhada bilionária, o presidente Jair Bolsonaro abriu uma espécie de liquidação de outono-inverno e antecipou o desconto para a negociação da reforma da Previdência. Na mesma ocasião, um café com a imprensa, ele rejeitou a ideia – jamais proposta – de se transformar o Brasil num país de turismo gay. Poderá ficar à vontade, acrescentou, quem “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher”. Estará pensando em alguma nova regulamentação federal para motéis? Ainda no café, ele tentou disfarçar a relação complicada com o vicepresidente, Hamilton Mourão, frequentemente atacado por seus filhos. Não convenceu, obviamente, até porque nunca aceitou a ideia de enquadrar seus herdeiros e mandá-los deixar de se meter nos assuntos do Palácio do Planalto.

A trapalhada com maior repercussão foi a referência ao efeito fiscal da reforma. O ministro da Economia, segundo o presidente Bolsonaro, aceitará um ganho de apenas R$ 800 bilhões em dez anos, mas nada abaixo disso. Não precisava e muito menos devia fazer essa declaração. A negociação mal começou e a comissão especial ainda vai iniciar seu trabalho. Mas o presidente já disse até onde os parlamentares poderão desidratar o projeto – até R$ 400 bilhões, se for tomada como ponto inicial a meta de US$ 1,2 trilhão recém-anunciada pela equipe econômica.

No mesmo dia o presidente ganhou destaque por mais uma façanha incomum: mandou o Banco do Brasil suspender uma campanha publicitária e demitir do posto o diretor de Marketing. Foi uma nova intervenção numa estatal de capital aberto. Desta vez, a intromissão foi obviamente motivada por preconceito e por sua bem conhecida homofobia, sem a mínima fundamentação técnica. A campanha, centrada na diversidade, era parte de uma estratégia de aproximação do público jovem. Publicidade é assunto profissional, mas um presidente iluminado por Deus e empenhado na defesa da moralidade e no combate ao marxismo cultural está acima dessas ninharias. A propósito, ainda no café com a imprensa ele se declarou, novamente, aliado do presidente Trump. Poderia ter dito “alinhado”.

Antes de intervir no Banco do Brasil, o presidente Bolsonaro já se havia intrometido na administração da Petrobrás, e por motivação mais prosaica: atender a exigências de caminhoneiros, aqueles mesmos apoiados por ele, ainda candidato, quando bloquearam estradas, cometeram violências e impuseram enorme perda a empresas e consumidores.

Ao invadir o comando da maior estatal brasileira, ele impôs à Petrobrás uma perda de R$ 32,4 bilhões em seu valor de mercado. Esse efeito foi produzido com um simples e baratíssimo telefonema. Bastou chamar um diretor da empresa e mandá-lo abandonar, ao menos por alguns dias, o então recém-anunciado reajuste de preço do diesel. Errou perigosamente, naquela ocasião, quem imaginou ter o presidente mostrado toda a sua capacidade de comprometer bilhões. O presidente da Petrobrás, assim como o do Banco do Brasil, aceitou com aparente alegria a intromissão do presidente da República. Qual será a reação se ele quiser ditar a política de juros do Banco Central?

Mas convém voltar às trapalhadas do café com jornalistas, quando o presidente falou sem pensar – ou pensando segundo seus padrões – sobre os efeitos fiscais da reforma da Previdência. Pela avaliação inicial da equipe econômica, a reforma da Previdência permitiria evitar um gasto de R$ 1,1 trilhão em dez anos. Pela última estimativa, a economia poderá passar um pouco de R$ 1,2 trilhão.

De acordo com a margem de negociação indicada pelo presidente, o desconto máximo poderá ficar em torno de R$ 400 bilhões. Nesse caso, corresponderá a cerca de um terço, ou 33%, do ganho máximo projetado pelos técnicos do Ministério da Economia. Ao admitir essa perda, o presidente antecipouse aos negociadores, complicou seu trabalho e aumentou o risco de empobrecimento da reforma. Depois do café ele pareceu arrepender-se de ter avançado na discussão.

Não existe um “dado mínimo”, corrigiu-se o presidente, na saída. Ele ainda lembrou o valor “em torno de R$ 1 trilhão” citado várias vezes pelo ministro Paulo Guedes. Mas alguma perda ocorrerá no Congresso, admitiu, e será preciso mantêla em nível tolerável.

Quando o presidente Bolsonaro ensaiou essa autocorreção, sua fala sobre o piso de R$ 800 bilhões já havia sido divulgada por agências de notícias, portais da imprensa, rádios e televisões. Esse número predominou, ainda, nas informações publicadas nos jornais no dia seguinte e nas programações matinais de notícias. A trapalhada era sem conserto.

“Se Bolsonaro falar menos sobre a reforma até ela ser aprovada, vai ajudar bastante”, disse à Rádio Eldorado o recém-escolhido presidente da comissão especial formada para analisar a proposta, deputado Marcelo Ramos (PR-AM). “Cada vez que Bolsonaro fala sobre a reforma, retira alguma coisa.” Com isso ele dificulta o trabalho da equipe econômica, acrescentou o deputado. Essa equipe, segundo ele, é uma exceção no governo federal, por ter “uma visão clara de projetos e propostas para o Brasil”.

A avaliação do deputado é ainda um tanto generosa. De fato, o governo, excluído o time econômico, tem sido incapaz de apresentar ideias parecidas com algum plano para o País. Mas poderia apresentar? O presidente Bolsonaro fala ocasionalmente sobre a Previdência, quando é pressionado para mostrar algum interesse, mas pouco se ocupa de suas funções. Gasta mais tempo com exibições de homofobia e de moralismo, interfere na gestão de estatais, faz desaforos a parceiros comerciais importantes e dá vexames internacionais, como quando atribuiu à esquerda as barbaridades nazistas.

Já completando quatro meses de mandato, parece ainda longe de entender a função presidencial e o significado de governar. Entenderá, algum dia?

Múltipla escolha

As autoridades brasileiras ou são ignorantes, ou imbecis, ou manipuladoras
Régine Robin, historiado do nazismo na Universidade do Quebec

Cultura depende do afeto e do acesso para não esmorecer

Não sei se alguém lê ainda o romance “Salomé”, que Menotti Del Picchia publicou em 1940. Embora desigual, tem momentos fortes. Lembrei-me dele por causa de uma passagem acalorada. Alguém exclama: “Não compreendem o século. Há muita coisa que mudou. Isso entra pelos olhos. Querem que o operário, ao voltar da usina, ponha-se a ouvir a morte de Isolda?”.

Outro personagem retruca: “Então não haveria mais lugar para os requintados da sensibilidade? Tudo que a vida tem de mais profundo e mais belo terá realmente morrido?”.

A conclusão melancólica é que sobrarão poucos e que esses poucos serão acossados: “Vamos ser perseguidos como os cristãos sob Nero... Viveremos em catacumbas...”.


Esse mesmo sentimento tornou-se mais tarde o tema do poderoso “Fahrenheit 451”, que Ray Bradbury publicou em 1953 e que François Truffaut transformou em uma de suas obras-primas no ano de 1966.

Situando o debate de “Salomé” entre administradores de uma rádio, Menotti Del Picchia traz, de modo indireto, o problema da difusão cultural. Contra as catacumbas, talvez haja um recurso: levar a cultura às “massas”.

Hoje, a cultura é atacada de modo frontal: cortes de verbas, desdém do poder público, formação escolar precária. Isso faz com que ela tenda a se restringir, mais e mais, ao grupinho das catacumbas.

Essa forma de agressão, porém, tem ao menos a característica de ser clara e, com efeitos maiores ou menores, pode ser objeto de revides. Há pouco, vimos como as ameaças contra o projeto Guri provocaram um forte protesto tanto em redes sociais como em manifestação de rua. Eles forçaram o governo do estado de São Paulo a voltar atrás.

Mas há outro tipo de agressão, mais perigoso porque insidioso e deletério. É possível chamá-lo de demagogia cultural. Obras parecem difíceis, complexas. O projeto é, então, facilitá-las.

Há belos modos de fazê-lo e pessoas capazes disso. Sem cuidado, porém, descamba-se e desnaturam-se as obras culturais a ponto de destruí-las.

Vi um cartum no qual o primeiro violino de um quarteto de cordas, num ensaio, diz a seus companheiros: “Temos que tocar isso de um jeito que possa bombar no Twitter!”.

Excelente se um quarteto de Mozart ou de Beethoven fizer sucesso nas redes sociais. É bem evidente, no entanto, que, se forem distorcidos, perderão sua verdadeira natureza.

Há tempos, eu dei uma palestra para alunos do ensino médio sobre “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Nenhum deles, e era esperado, havia lido esse livro que não é lá muito acessível.

No final, um perguntou se não seria possível reescrever “Os Sertões” de modo simples para todos, de maneira que não se tropeçasse nas palavras bizarras e na ordem retorcida das frases. Minha resposta foi negativa, porque, se fizermos isso, “Os Sertões” deixará de ser a grande obra que é.

O estilo não vem como um aposto arbitrário sobre o conteúdo: ele é um modo próprio de pensamento, sem falar na força e na beleza que contém. Forma uma entidade única com aquilo que narra.

Lembra aquela história, não sei se verdadeira, mas muito boa, do editor norte-americano que, diante das enormes dificuldades do tradutor com a linguagem de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, propôs que alguém passasse o texto para um português claro e neutro, fácil de ser transposto para o inglês.

A questão, portanto, é: como divulgar a cultura para o maior número de pessoas sem desnaturá-la? Alguém pode dar um tratamento de rock para a morte de Isolda. O resultado será bom ou ruim, conforme o talento do músico, mas Wagner não estará mais presente, e quem ouvir essa versão passará longe da obra original.

As artes plásticas também sofrem com isso. Muitas vezes, exposições são concebidas com estratégias destinadas a criar efeitos na mídia e no público. O marketing e muitos profissionais da comunicação, com frequência indiferentes aos fenômenos da cultura, encarregam-se desses processos corruptores.

A cultura, quando não se nutre de convicções empenhadas, de crítica, de rigor e sinceridade, quando não é posta no centro, esmorece.

Tenho para mim que são essenciais duas coisas.

A primeira é permitir o máximo possível e ao maior número de pessoas o acesso às obras culturais. Esse é um direito que deveria ser garantido a todos e uma obrigação do poder público. A segunda é tratá-las com afeto verdadeiro e com respeito. Só assim se cria o contágio que se ramifica e se amplia. Acesso e contágio; não creio que haja outras saídas.

Paisagem brasileira

Praia do Hospício, Araruama (RJ), Carlos Augusto

Chimpanzé, Maquiavel e Gandhi

A democracia é um jogo de cooperação e oposição. No certame de cooperação, as regras são a persuasão, a negociação, os acordos, a busca de espaços de consenso. Já no jogo de oposição, procura-se medir forças, confrontar o adversário, provocar tensões, impor a vontade pela força. Ultimamente, o jogo das oposições não tem sido bem jogado, tanto em função da derrota por elas sofrida no último pleito como pela reclusão do seu principal jogador.

Mas, no Brasil, as manobras divisionistas acabam se superpondo às táticas de cooperação. Veja-se o governo Bolsonaro. Pela vitória obtida por ele, as reformas deveriam estar em situação adiantada. Mas caminham devagar, quase parando.


E não se pense que esse andar se deve à oposição, aos chamados partidos de esquerda, PSOL, PT, PSB. O confronto mais forte provém de grupos incrustados no próprio governo. Os partidos do centrão, todos com um pé atrás, olham para onde caminha o governo, lutam por espaços de poder e influência.

Pinço a analogia do sociólogo Carlos Matus, em seu ensaio “Estratégias Políticas”. Impera entre nós o “estilo chimpanzé” de fazer política, que se baseia no projeto de poder pessoal, de rivalidade permanente. É assim o chimpanzé. Cada partido quer ser melhor e com mais força que outro. Já o presidente Bolsonaro e seu entorno militar parecem optar pelo “modelo Maquiavel”, onde o personalismo do Príncipe se subordina a um projeto de Estado.

Presenciamos uma luta entre os dois estilos. De um lado, os políticos, inspirados no lema “o poder pelo poder”, usam a arma do voto no Congresso para ampliar territórios. Disparam processos de tensão, ameaçam o governo com retiradas de apoio. Assim, a natureza política se assemelha ao instinto chimpanzé, para quem a luta tem como foco a conservação da própria espécie (“o fim sou eu mesmo”).

Já o presidente está mais para o estilo maquiavélico. Ele não é o projeto – o projeto é o Brasil. Todos os meios devem se adequar ao objetivo: livrar o Brasil das esquerdas, do PT, do comunismo, das forças que atrasam o país. Ele só vê amigos nos aliados militares, nos grupos evangélicos, nos núcleos de direita, nas massas de apoio e nos filhos. Todos os outros são inimigos.

Para governar, a conduta maquiavélica fará concessões ao estilo chimpanzé dos políticos, e estes abocanharão fatias de poder. Já nas margens reina expectativa. Os pobres grudam-se ao Bolsa Família. Cultivam laços de amizade entre si, buscam cooperação. E têm a honestidade como valor. São mais afeitos ao “estilo Gandhi”. Choram a morte dos seus, depositando sua fé no divino, indo às igrejas, rezando, implorando aos céus.

É assim que o país está fatiado: entre chimpanzé, Maquiavel e Gandhi. Os tempos exigem diálogo, elevação dos espíritos, negociação, convivência, um pacto por causas coletivas. Difícil. A onda chimpanzé se alastra.

Mas o Brasil carece muito do estilo Gandhi. Assim, os cidadãos sentiriam mais vergonha de cometer atos ilícitos. O fato é que a sem-vergonhice aplaude o estilo chimpanzé. Sob as bênçãos de Maquiavel.

Inveja da Bolívia

Em 1980, cada brasileiro ganhava, em média, 56% mais do que um peruano. Hoje, a diferença é só de 14%. Neste período, todos os ex-presidentes do Peru foram presos, estão foragidos ou se suicidaram para evitar a prisão por crimes de corrupção.

Em 1980, o brasileiro ganhava, em média, 79% mais do que o colombiano. Hoje, a diferença é só de 7%. Neste período, a Colômbia foi abalada por uma duríssima guerra contra o tráfico de drogas e o terrorismo.

Estes dois exemplos deixam claro pontos importantes. O Brasil não viveu apenas uma década perdida. Há quatro décadas nossa economia patina, com desempenho pior até mesmo que nossos vizinhos latino-americanos. Há duas gerações,somos um país submergente.


Além disso, ao contrário do que acham muitos, corrupção e violência não são os únicos problemas fundamentais brasileiros que, se resolvidos, garantirão o sucesso do País. Enfrentá-los, obviamente, é fundamental, mas sem encarar também outros problemas ao menos tão graves quanto, nosso futuro não irá mudar significativamente. Países com problemas de corrupção e violência tão graves ou piores que o Brasil tiveram desempenho econômico bem melhor. Fica claro que há outras áreas também muito importantes nas quais eles têm se saído melhor do que nós.

Sem reverter a incompetência na gestão da economia – que privilegia regulamentações como a recente suspensão do reajuste dos combustíveis, que parece ajudar, mas na realidade criará pobreza — e combater os que se apropriaram do Estado em busca de privilégios — como todos os que recebem benefícios previdenciários maiores que as contribuições que conseguem bancar –, o Brasil continuará condenado ao subdesenvolvimento.

Sem reduzirmos substancialmente o tamanho do Estado, seu peso sobre o setor privado e melhorarmos substancialmente nossa educação básica, em breve, nós brasileiros ficaremos para trás de praticamente todos nossos primos latino-americanos em termos de renda per capita. Chilenos, uruguaios, mexicanos e argentinos já ganham mais do que nós. Colombianos e peruanos devem nos ultrapassar nos próximos anos, paraguaios e equatorianos, na próxima década, assim como os bolivianos daqui menos de 20 anos, se mantidas as tendências. Inveja da Bolívia?! É este o futuro que queremos para nossos filhos e netos?

O oposicionismo retórico e os democratas

Em política, quem está contra não é necessariamente oposição. Pode bloquear um adversário, dificultar sua ação, mas não organizar ou fornecer diretrizes à sociedade. Estigmatiza e produz atrito, mas não demarca um campo de luta.

Faz tempo que estamos sem oposição. Durante os anos petistas, o domínio do governo foi tão intenso que paralisou o PSDB e tudo o que se contrapunha ao PT. Havia um só bloco, por mais que existisse a sensação de que um bloco alternativo sobrevivia. No período FHC o PT foi a voz da contestação intransigente, mas não teve poder de fogo para direcionar os cidadãos: limitou-se a mobilizá-los em torno de cláusulas genéricas que não continham uma proposição capaz de suportar chuvas e trovoadas. Venceu em 2002 graças à fadiga de material dos tucanos. Quando Dilma foi levada ao impeachment, a oposição veio das ruas, de modo desorganizado e sem saber o que pôr no lugar. Foi essa oposição caótica que elegeu Bolsonaro.

Oposição mesmo – com ideias claras, força magnética, capacidade de articulação e lideranças plurais efetivas – só houve na fase final da luta contra a ditadura, entre 1978 e 1985, quando o MDB foi o mar aberto em que desaguou a ampla frente democrática que dissolveu a credibilidade do regime autoritário e preparou o caminho para a volta da democracia.


Dado o estado calamitoso da política nacional e do governo Bolsonaro, deveriam estar todos buscando empreender uma ação que recomponha a sociedade e o Estado, dando um eixo aos cidadãos. Será difícil confrontar a onda bolsonarista – que é “societal”, ideológica e digital, desdobrando-se numa obra de intensa deseducação política – sem uma oposição democrática consistente, ao mesmo tempo serena, firme e contundente.

Percebendo que falta articulação, lideranças de esquerda falam em criar uma “Unidade Progressista” que arregimente os que são contra Bolsonaro e mostre que há um campo de forças alternativo com capacidade de interpelação. A ideia, porém, esbarra num vício recorrente da política brasileira mais à esquerda: a de só olhar para o próprio umbigo, excluindo segmentos que poderiam dar à frente pretendida uma envergadura especial. Em vez de trabalhar para unir os democratas, a “Unidade” dirige-se somente aos “progressistas”, sem deixar claro o que entende por isso. Ainda que seus propositores digam o contrário, a manobra visa a fornecer oxigênio ao PT e a seus satélites, se possível subalternizando lideranças como Marina Silva e Ciro Gomes. Sua meta é adquirir competitividade para enfrentar as eleições municipais de 2020, mais que contribuir para a formação de um arco de forças que se oponha ao governo atual.

Só pode haver oposição se houver visão política e programa de atuação com claros princípios éticos, morais, teóricos, que expliquem a realidade aos cidadãos e os auxiliem a interpretar as opções que se tem pela frente, mostrando que há como escapar da tragédia que ameaça o Estado Democrático de Direito, a articulação cívica da sociedade, as instituições políticas e a própria estrutura da economia. Como a tarefa é enorme, não será viabilizada de forma seletiva, com vetos e exclusões, ou com foco concentrado em “movimentos sociais” e nichos identitários.

Sem tal inflexão, ter-se-á esperneio e cálculo eleitoral, mas pouca eficácia e organização política.

Parte expressiva do dilema atual é que não há uma oposição ao governo Bolsonaro. Quando muito, há mal-estar e resistência. A medíocre base governista não sabe o que quer e mal consegue defender o governo, que se queima com o fogo amigo. O “centrão” não se opõe, mas se reposiciona e busca obter vantagens. Desgasta o governo sem se apresentar como opção a ele. Os oposicionistas mais à esquerda comemoram quando o governo mostra desarticulação e recua, como no caso das discussões sobre a reforma da Previdência. Aplaudem quando os governistas atiram nos próprios pés. Levam ao extremo o direito de obstruir votações e barrar uma reforma que julgam errada. Valem-se do jogo regimental e da agitação, como faz toda oposição, denunciando as injustiças e pondo-se em defesa do povo pobre.

Em nenhum momento, porém, oferecem uma visão alternativa da Previdência, não explicam a real situação da área, se há ou não privilégios a serem corrigidos, se a crise existe ou não, resumem todo o problema a um expediente “neoliberal” para sacrificar os mais frágeis.

É um oposicionismo retórico, inócuo, que vive da estridência e gira em círculos, sem sair do lugar. Ele amplia a confusão nacional, em vez de reduzi-la.

Cabe aos democratas, de centro e de esquerda, liberais e socialistas, agir para que se saia dessa agonia. A derrota da democracia em 2018 se deveu ao aguçamento das polarizações e à diluição dos consensos que poderiam direcionar a sociedade. Polos extremados pouco farão para promover as recomposições necessárias e desenhar uma agenda futura sustentável.

Quanto mais tempo levarem os democratas para romper a letargia que os tem paralisado, pior ficará. Eles estão obrigados a cavar fundo, reconhecer erros, compreender os efeitos políticos e culturais da globalização, da revolução tecnológica e da conversão “líquida” da vida. Devem trocar a retórica combativa, militante, indignada, mas romântica e ingênua, pelo duro amassar de barro da política realista. Precisam de coragem para ir além da terra conhecida, partindo dela para abrir novos horizontes e resgatar os náufragos da vida.

A obra da redemocratização está sendo dilapidada. Chegamos a um ponto em que nos falta o fundamental: unidade política, consensos democráticos, responsabilidade cívica e boas estruturas de ação (partidos).

Não é um problema só de excesso de autoritarismo, despreparo e reacionarismo grosseiro, essas pragas que corroem a sociedade. Também estamos sendo vitimados pela escassez de coordenação democrática.