sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A espécie da pós-verdade

Os humanos sempre viveram na era da pós‑verdade. O Homo sapiens é uma espécie da pós‑verdade, cujo poder depende de criar ficções e acreditar nelas. Desde a Idade da Pedra, mitos que se autorreforçavam serviram para unir coletivos humanos. Realmente, o Homo sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à capacidade exclusiva dos humanos de criar e disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá‑las e convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto, cooperamos efetivamente.


Assim, se você culpa o Facebook, Trump ou Putin por introduzir a nova e assustadora era da pós‑verdade, lembre‑se de que séculos atrás milhões de cristãos se fecharam dentro de uma bolha mitológica que se autorreforçava, nunca ousando questionar a veracidade factual da Bíblia, enquanto milhões de muçulmanos depositaram sua fé inquestionável no Corão. Por milênios, muito do que era considerado “notícia” e “fato” nas redes sociais humanas eram narrativas sobre milagres, anjos, demônios e bruxas, com ousados repórteres dando cobertura ao vivo diretamente das mais profundas fossas do submundo. Temos zero evidência científica de que Eva foi tentada pela serpente, que as almas dos infiéis ardem no inferno depois que morrem, ou que o criador do universo não gosta quando um brâmane se casa com um intocável — mas bilhões de pessoas têm acreditado nessas narrativas durante milhares de anos. Algumas fake news duram para sempre.

Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas acreditam durante um mês numa história inventada — isso é fake news. Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos — isto é uma religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). Observe, no entanto, que não criar ficções e acreditar nelas. Desde a Idade da Pedra, mitos que se autorreforçavam serviram para unir coletivos humanos. Realmente, o Homo sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à capacidade exclusiva dos humanos de criar e disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vá rios estranhos porque somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá‑las e convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto, cooperamos efetivamente.


Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas acreditam durante um mês numa história inventada — isso é fake news. Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos — isto é uma religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). Observe, no entanto, que não estou negando a efetividade ou benevolência potencial da religião. Exatamente o contrário. Para o bem ou para o mal, a ficção está entre os instrumentos mais eficazes na caixa de ferramentas da humanidade. Ao unir pessoas, credos religiosos possibilitam a cooperação em grande escala. Eles inspiram a construção de hospitais, escolas e pontes, além de exércitos e prisões. Adão e Eva nunca existiram, mas a catedral de Chartres continua linda. Grande parte da Bíblia pode ser ficcional, mas ainda é capaz de trazer alegria a bilhões, e ainda é capaz de incentivar os humanos a serem compassivos, corajosos e criativos — assim como outras grandes obras de ficção, como Dom Quixote, Guerra e paz e Harry Potter.

De novo, algumas pessoas podem se ofender com minha comparação da Bíblia com Harry Potter. Se você é um cristão com mente científica poderia minimizar todos os erros e mitos na Bíblia alegando que nunca se pretendeu que o livro sagrado fosse lido como um relato factual, e sim como uma narrativa metafórica que encerra profunda sabedoria. Mas isso não vale para Harry Potter também?

Se você é um cristão fundamentalista é mais provável que isista em que cada palavra da Bíblia é verdade. Suponhamos por u momento que você tem razão, e que a Bíblia realmente é a nfalível palavra do único e verdadeiro Deus. O que, então, você faz com o Corão, o Talmude, o Livro dos Mórmons, os Vedas, o Avesta, o Livro dos Mortos egípcio? Você não fica tentado a dizer que esses textos são elaboradas ficções criadas por humanos de carne e osso (ou talvez por demônios)? E como vê você a divindade de imperadores romanos como Augusto e Cláudio? O Senado Romano alegava ter o poder de transformar pessoas em deuses, e depois esperava que os súditos do império cultuassem esses deuses. Isso não era ficção? De fato, temos pelo menos um exemplo na história de um falso deus que reconheceu a ficção numa declacração por sua própria boca. Como já observado, o militarismo estou negando a efetividade ou benevolência potencial da religião.

Exatamente o contrário. Para o bem ou para o mal, a ficção está entre os instrumentos mais eficazes na caixa de ferramentas da humanidade. Ao unir pessoas, credos religiosos possibilitam a cooperação em grande escala. Eles inspiram a construção de hospitais, escolas e pontes, além de exércitos e prisões. Adão e Eva nunca existiram, mas a catedral de Chartres continua linda. Grande parte da Bíblia pode ser ficcional, mas ainda é capaz de trazer alegria a bilhões, e ainda é capaz de incentivar os humanos a serem compassivos, corajosos e criativos — assim como outras grandes obras de ficção, como Dom Quixote, Guerra e paz e Harry Potter.

De novo, algumas pessoas podem se ofender com minha comparação da Bíblia com Harry Potter. Se você é um cristão com mente científica poderia minimizar todos os erros e mitos na Bíblia alegando que nunca se pretendeu que o livro sagrado fosse lido como um relato factual, e sim como uma narrativa metafórica que encerra profunda sabedoria. Mas isso não vale para Harry Potter também? Se você é um cristão fundamentalista é mais provável que insista em que cada palavra da Bíblia é verdade. Suponhamos por um momento que você tem razão, e que a Bíblia realmente é a infalível palavra do único e verdadeiro Deus. O que, então, você faz com o Corão, o Talmude, o Livro dos Mórmons, os Vedas, o Avesta, o Livro dos Mortos egípcio? Você não fica tentado a dizer que esses textos são elaboradas ficções criadas por humanos de carne e osso (ou talvez por demônios)? E como vê você a divindade de imperadores romanos como Augusto e Cláudio? O Senado Romano alegava ter o poder de transformar pessoas em deuses, e depois esperava que os súditos do império cultuassem esses deuses. Isso não era ficção? De fato, temos pelo menos um exemplo na história de um falso deus que reconheceu a ficção numa declaração por sua própria boca. Como já observado, o militarismo japonês na década de 1930 e início da de 1940 apoiava‑se na crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Após a derrota do Japão, Hirohito proclamou publicamente que isso não era verdade, e que ele afinal de contas não era um deus.

Assim, mesmo se concordarmos que a Bíblia é a verdadeira palavra de Deus, isso ainda nos deixa com bilhões de devotos hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos e japoneses que durante milhares de anos depositaram sua confiança em ficções. De novo, isso não quer dizer que essas ficções são necessariamente desprovidas de valor ou danosas. Ainda podem ser belas e inspiradoras.

É claro que nem todos os mitos religiosos foram igualmente benevolentes. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de um menino inglês de nove anos de idade chamado Hugh foi encontrado num poço, na cidade de Lincoln. Mesmo sem Facebook nem Twitter, rapidamente espalhou‑se o boato de que Hugh tinha sido vítima de um assassinato ritual realizado pelos judeus locais. A história foi crescendo à medida que era recontada, e um dos mais renomados cronistas ingleses da época — Matthew Paris — criou uma detalhada e sangrenta versão de como judeus proeminentes de toda a Inglaterra reuniram‑se em Lincoln para engordar, torturar e finalmente crucificar o menino sequestrado. Dezenove judeus foram julgados e executados pelo suposto assassinato. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se populares em outras cidades inglesas, levando a uma série de pogroms nos quais comunidades inteiras foram massacradas. Posteriormente, em 1290, toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa do país.

A história não termina aí. Um século depois da expulsão dos judeus da Inglaterra, Geoffrey Chaucer — o pai da literatura inglesa — incluiu um libelo de sangue modelado na história de Hugh de Lincoln em seus Contos da Cantuária (“Conto da Prioresa”). O texto culmina com o enforcamento dos judeus. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se subsequentemente campo japonês na década de 1930 e início da de 1940 apoiava‑se na crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Após a derrota do Japão, Hirohito proclamou publicamente que isso não era verdade, e que ele afinal de contas não era um deus.

Assim, mesmo se concordarmos que a Bíblia é a verdadeira palavra de Deus, isso ainda nos deixa com bilhões de devotos hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos e japoneses que durante milhares de anos depositaram sua confiança em ficções. De novo, isso não quer dizer que essas ficções são necessariamente desprovidas de valor ou danosas. Ainda podem ser belas e inspiradoras.

É claro que nem todos os mitos religiosos foram igualmente benevolentes. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de um menino inglês de nove anos de idade chamado Hugh foi encontrado num poço, na cidade de Lincoln. Mesmo sem Facebook nem Twitter, rapidamente espalhou‑se o boato de que Hugh tinha sido vítima de um assassinato ritual realizado pelos judeus locais. A história foi crescendo à medida que era recontada, e um dos mais renomados cronistas ingleses da época — Matthew Paris — criou uma detalhada e sangrenta versão de como judeus proeminentes de toda a Inglaterra reuniram‑se em Lincoln para engordar, torturar e finalmente crucificar o menino sequestrado. Dezenove judeus foram julgados e executados pelo suposto assassinato. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se populares em outras cidades inglesas, levando a uma série de pogroms nos quais comunidades inteiras foram massacradas. Posteriormente, em 1290, toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa do país.

A história não termina aí. Um século depois da expulsão dos judeus da Inglaterra, Geoffrey Chaucer — o pai da literatura inglesa — incluiu um libelo de sangue modelado na história de Hugh de Lincoln em seus Contos da Cantuária (“Conto da Prioresa”). O texto culmina com o enforcamento dos judeus. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se subsequentemente componentes básicos de todo movimento antissemita, da Espanha medieval à Rússia moderna. Pôde‑se ouvir um eco distante disso na fake news de que Hillary Clinton chefiava uma rede de tráfico humano que mantinha crianças como escravas sexuais no porão de uma pizzaria muito frequentada. Não foram poucos os americanos que acreditaram na história, destinada a prejudicar a campanha eleitoral de Clinton, e uma pessoa até veio armada à pizzaria e exigiu ver o porão (constatou‑se que a pizzaria nem tinha porão). Quanto ao próprio Hugh de Lincoln, ninguém sabe realmente como ele morreu, mas foi enterrado na catedral de Lincoln e venerado como um santo. Foi reputado como o realizador de vários milagres, e seu túmulo continua a atrair peregrinos até mesmo séculos depois da expulsão de todos os judeus da Inglaterra.

Foi somente em 1955 — dez anos após o Holocausto — que a catedral de Lincoln repudiou a versão do libelo de sangue, colocando uma placa junto ao túmulo, onde se lê: Histórias inventadas de “assassinatos rituais” de meninos cristãos por comunidades judaicas eram comuns em toda a Europa durante a Idade Média, e mesmo muito mais tarde. Essas ficções custaram a vida de muitos judeus inocentes. Lincoln teve sua própria lenda, e a alegada vítima foi sepultada na Catedral no ano de 1255. Essas histórias não redundam em crédito para a Cristandade.

Bem, algumas fake news duram apenas setecentos anos.
Yuval Noah Harari 

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