sábado, 19 de agosto de 2017

Os autômatos de esquerda não sangram em Caracas

Que uma tragédia vinha sendo gestada na Venezuela, era evidente. Pelo menos desde 2004, era mais do que evidente. Em dezembro daquele ano, a Assembleia Nacional da República Bolivariana aprovou a “Ley de Responsabilidad Social en Radio y Televisión”, conferindo às autoridades o poder de punir emissoras que difundissem mensagens que incitassem ao “descumprimento do ordenamento jurídico vigente” ou que impedissem ou oferecessem obstáculos contra a “ação dos órgãos de segurança cidadã”. Traduzindo: a partir de dezembro de 2004, o governo mandou avisar que estava disposto a fechar o tempo contra toda divergência.

O que é “incitar ao descumprimento do ordenamento jurídico”? Resposta: aquilo que o regime resolver que é. Com sua “Ley de Responsabilidad Social”, o chavismo intimidou os que acreditavam na liberdade de expressão. Qualquer coisa poderia ser considerada, legalmente, uma tentativa de impedir “a ação dos órgãos de segurança cidadã”. Qualquer coisa poderia ser punida.


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É bem verdade que, dois anos antes, em 2002, o presidente Hugo Chávez, que tinha sido eleito legitimamente, sofreu um golpe de Estado covarde, urdido por grandes empresas de comunicação e por um punhado de múmias de uma casta parasitária que vampirizou a sociedade ao longo de décadas. O golpe, porém, foi um fiasco. Apoiado por um setor das Forças Armadas, Chávez escapou com vida e voltou à Presidência. E com raiva. Desde então, em vez de fortalecer a ordem democrática, optou pela força. De 2004 adiante, o Estado venezuelano foi se transformando gradualmente numa ditadura.

Agora, o resultado está aí, na cara do mundo inteiro. Os que conseguem fogem do país. Só no Brasil, estima-se em 30 mil o número de venezuelanos em situação irregular (segundo dados da Acnur, agência da ONU para refugiados). A Polícia Federal já contabiliza 6.400 pedidos de refúgio na fronteira entre Roraima e Venezuela. Quanto aos que ficam, apanham ou morrem. Em Caracas e outras cidades, as manifestações públicas são reprimidas à bala (possivelmente porque, no olhar das autoridades, as passeatas atrapalham os órgãos de “segurança cidadã”). Mais de 100 pessoas já morreram nas ruas. Das mais de 5 mil que foram presas por motivos políticos, cerca de 1.000 seguem encarceradas.

A ONU já se manifestou contra o uso excessivo da violência e apontou torturas nas prisões. A inflação descontrolada, a escassez generalizada de gêneros de primeira necessidade e a disparidade cambial absurda completam o cenário de caos, de desamparo e de desespero. A Venezuela está à beira de uma catástrofe total, numa escalada da violência que pode desembocar em guerra civil. Todo mundo vê, todo mundo sente, todo mundo sabe, só alguns autômatos da esquerda brasileira ainda não se deram conta – é a tragédia da ideologia.

Há poucos meses, no dia 3 de abril, ainda antes do agravamento definitivo da crise venezuelana, o Partido dos Trabalhadores divulgou uma nota acusando a política externa do “governo golpista” (o do Brasil) de “encabeçar uma campanha da direita contra a esquerda no continente” e de ter assumido “uma postura belicista, particularmente contra a República Bolivariana da Venezuela”. Depois disso, a coisa piorou muito. O ditador Nicolás Maduro convocou uma “Assembleia Nacional Constituinte” unilateral, sem ninguém da oposição, num claro golpe populista para esvaziar o Parlamento, que tinha forte representação oposicionista. O que fez o PT? Voltou à carga. Há poucos dias, a atual presidente da sigla, senadora Gleisi Hoffmann, foi contundente: “O PT manifesta seu apoio e solidariedade ao governo do PSUV, seus aliados e ao presidente Nicolás Maduro frente à violenta ofensiva da direita. Temos a expectativa que a Assembleia Constituinte possa contribuir para uma consolidação cada vez maior da revolução bolivariana...”.

Em nota oficial, o PSOL foi na mesma direção: “O PSOL sabe que numa situação de confronto, a neutralidade significa apoio tácito ao lado mais forte. Por isso, manifestamos apoio ao processo constituinte proposto pelo governo Maduro e ao aprofundamento das transformações sociais naquele país”.

PSOL quer dizer “Partido Socialismo e Liberdade”. Só no nome. Há liberdade na Venezuela? Há justiça social? Não, mas os recitadores de palavras de ordem veem em Maduro o novo guia genial dos povos. Maduro, quem diria, é o farol do socialismo. Haja ridículo. Em sua ortodoxia desumana, os maduristas sem espírito esqueceram que a chama do socialismo é a solidariedade humana. Esqueceram tudo. Os autômatos de esquerda não sabem o que é solidariedade.

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