sábado, 4 de março de 2017

Carnaval no escuro

No Carnaval de 1919, Nelson Rodrigues tinha seis anos e morava com sua família perto da Tijuca. Pouco antes, em outubro, o Rio fora devastado pela gripe espanhola, a epidemia que chegara nos navios vindos da Europa —causada, dizia-se, pelos mortos insepultos da recém-finda Grande Guerra. A gripe matou 15 mil cariocas em 15 dias. Raras famílias foram poupadas. De repente, passou —as pessoas haviam desenvolvido anticorpos. E, também de repente, já era 1919 e o Carnaval estava às portas.

A guerra e a espanhola alertaram toda uma população para a realidade da morte. Com isso, quem não morreu sentiu-se no dever de celebrar a vida, brincando o Carnaval como nunca antes. A cidade saiu em peso para os corsos, ranchos e batalhas de confete. Os pierrôs e caveiras não se contentavam em pular —invadiam as casas e arrastavam os renitentes para a folia. Pela primeira vez, o samba superou os outros ritmos nas ruas. E, numa dessas, o menino Nelson viu, dançando no alto de um carro, na praça Saenz Peña, uma moça fantasiada de odalisca, com o umbigo à mostra.



Ninguém de sua família tinha umbigo —ele próprio só agora descobria o seu. Para Nelson, o dito umbigo, chocante e inédito, simbolizou aquele Carnaval, tido como o maior de todos até então.

Bem, isso foi há 98 Carnavais e, desde então, os umbigos abundaram e ninguém lhes dá mais atenção. Mas o gigantismo e a euforia com que o país pulou este Carnaval de 2017 fazem lembrar o de 1919. Por que, de repente, todas as ruas do Brasil —inclusive as que, até outro dia, eram virgens em Carnaval— foram tomadas pelas multidões?

Só pode ser porque, ainda em meio à pior recessão da história, os 24 milhões de desempregados e subempregados brasileiros não querem esperar pela luz no fim do túnel. Resolveram pular no escuro, mesmo.

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