Aliás, por falar em Platão, confesso que a melhor parte da sua "República" lida com questões educacionais (e os vitorianos, nesse quesito, sabiam do que falavam). Adaptando livremente o espírito do filósofo, seria importante começar pelo básico (ler, escrever, contar). Depois, cultivar a ginástica e a música (tradução: desenvolver o corpo e refinar o espírito).
As artes militares viriam a seguir (algo que poderia ser substituído, para os pacifistas, por serviço cívico obrigatório –limpar ruas, ajudar os mais pobres etc.).
Por último, e antes da filosofia, as ciências "duras" (matemática, geometria etc.).
As vantagens desse currículo são óbvias: o indivíduo chegaria à idade da razão –que, como se sabe, começa perto dos 30 – com o mínimo de doutrinação ideológica possível.
Além disso, o meu estudante ideal iniciaria os seus estudos filosóficos depois de ter sofrido algumas cicatrizes fundamentais que só a idade permite. Grandes paixões. Grandes perdas. A necessidade básica de ganhar a vida e pagar as contas.
O confronto pessoal com a coragem e a covardia, a bondade e o ressentimento. A doença –sua ou dos outros. A consciência plena da mortalidade.
Só então poderia iniciar a leitura e a conversa –sim, por essa ordem: leitura, conversa– com os textos filosóficos fundamentais que sobreviveram às modas do tempo.
E quando lhe perguntassem para que serve a filosofia, ele responderia com novas perguntas: "E para que serve a grande pintura? Ou a grande escultura?".
Citando o título, e apenas o título, do filósofo espanhol Daniel Innerarity, a filosofia seria vista como uma das belas artes. E, como acontece com a grande arte, a sua "utilidade" nunca poderia ser confundida com a utilidade da ciência ou da técnica. A filosofia vale por si própria –pelo prazer do conhecimento e do pensamento sobre a condição humana.
O contrário desse percurso, como hoje se vê, é chegar aos 30 anos com a cabeça em avançado estado de decomposição pela quantidade de propaganda política que é vendida como "filosofia" a crianças indefesas. Ainda estamos a tempo de evitar este crime.
2. As mídias sociais estão inundadas por notícias falsas. E notícias falsas levam os leitores a atos tresloucados –um deles, informa esta Folha, entrou numa pizzaria de Washington e começou a disparar. Parece que a pizzaria servia de fachada para uma rede de pedofilia liderada por Hillary Clinton, diziam as "notícias".
Felizmente, não houve mortes.
Leio sobre este admirável mundo novo e penso em Nelson Rodrigues. Eu sei: ando obcecado por ele. Paciência. Sou obrigado a repetir aqui o que não me canso de escrever em todo lado.
Nelson Rodrigues é admirável por muitas razões: a beleza da prosa, as obsessões do autor, os aforismos fulminantes e aquela deliciosa "escrita corretiva", que avança e recua ao sabor do pensamento –e das teclas da máquina.
Mas se tivesse que escolher um tema que ocupava e preocupava Nelson com a força de "uma tempestade de quinto ato de Rigoletto", seria a emergência e a onipresença do idiota.
Escrevia Nelson que, antigamente, o idiota conhecia a sua própria idiotia. Sentia certa vergonha. Caminhando pela rua, encostava na parede e, com deferência, deixava passar quem não era idiota.
Mas certo dia houve um membro da espécie que ganhou coragem, subiu no caixote e resolveu testar a humanidade com as suas proclamações idiotas.
Surpresa: os restantes idiotas saíram dos seus buracos e constataram que o mundo era deles. Numericamente falando, as existências clandestinas não tinham razão de ser.
Os idiotas tomaram conta de tudo –governo, empresas, hospitais, universidades. E os outros, que não eram idiotas, passaram a fingir-se idiotas por medo dos verdadeiros idiotas.
Nelson Rodrigues escreve essa epopeia com a força e a beleza de um Wagner. E eu só lamento que nunca tenha existido um compositor e um libretista para levar ao palco esta ópera fortemente visual, visceral, universal. E mais contemporânea do que nunca.
Pode ser que as notícias falsas sejam o estímulo que faltava.
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